quarta-feira, 22 de maio de 2013

O torpedeamento do lugre Gamo - 1918 - (Cont.)


E continua a relatar Costa Júnior:

(…)

Com a desilusão sofrida entrara o desânimo. Havia, entre os tripulantes, quem entendesse que não era necessário lutar mais, pois tudo lhes parecia inútil. Aqui e além avizinhavam-se prenúncios de revolta entre os náufragos, sem forças para suportar o peso enorme da sua tragédia. O capitão resolve então intervir e … mentir.
 É uma cobardia deixar de lutar pelo facto do iate não nos ter recolhido. Nós estamos apenas afastados 36 milhas da ilha do Faial, o vento é de feição, o mar plano, e se navegarmos como temos navegado até aqui, amanhã estaremos salvos…
A mentira – piedosa mentira essa – deu o melhor resultado. Os homens tomaram nova coragem, reanimaram-se, e perguntaram ao piloto se era certo estarem tão perto de terra, ao que o piloto (João Maria da Madalena) respondeu:
Pelo meu cálculo estamos a menos de 30 milhas do Faial.
A mentira surtira o efeito desejado, mas o pior seria no dia seguinte, pois em boa verdade a ilha do Faial estava afastada ainda, pelo menos 80 milhas. Que nova mentira seria possível inventar?


Ficha do Grémio do piloto
Entretanto, o tempo não pactuara com a mentira e tornara-se agreste e enevoado. Não se vendo o horizonte, os homens, desalentados, começaram a desconfiar do apelo do capitão, que, entretanto, fora interpelado.
(…)

Navegámos toda a noite, veio o dia e continuamos a navegar, e a ilha não aparece …
Ao que o capitão respondia, sem entrar em grandes pormenores:
Aparece sim … Rema sempre, ajuda a vela, que depressa chegaremos …
No dia 9, às 5 horas da manhã, clareou o horizonte repentinamente, e com grande alegria dos náufragos e maior espanto de muitos deles que já descriam da salvação, avistavam-se as ilhas Graciosa, Faial e Pico, tão claras que pareciam pintadas num quadro.
«Terra à vista! Terra à vista! Estamos salvos!» – gritavam todos a um tempo. No meio da maior alegria foi o barco do capitão acostado por todos os outros, indo os seus tripulantes um a um, debruçados na borda, abraçar o capitão, tendo havido quem dissesse:
Se nos tem dito a verdade não teríamos coragem para sofrer tanto e teríamos morrido todos …
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Mas, depois de ligeiros momentos de alegria, reviravolta nas emoções. Um calor intenso e as gargantas secas que nem fogo estaladiço! Eis que capturaram uma tartaruga, o que, por vezes, acontecia. Rapidamente degolada, largou o sangue para um sueste, aparado por um pescador. Tendo-o bebido de um trago, caiu inanimado. Só água salgada pela cabeça lhe revitalizou os sentidos.
(…)
O dia estava escaldante, o vento entrara em calmaria e ninguém tinha forças para remar. A terra estava ali, à vista de todos, mas entre aqueles 29 homens nem um só acreditava na salvação. Nenhum deles podia já, vencidos pela fome e pela sede, fazer o mais pequeno esforço …
Os dóris, a remos ou à vela, avançavam a passo de formiga, impulsionados por aquelas vontades de gigantes, e às 2 horas, após titânicos, o barco do capitão conseguiu dobrar a ponta dos Capelinhos, acompanhado por mais três. Nos restantes, os tripulantes completamente exaustos, não tinham forças para remar, certos que morriam à vista de terra sem a poder alcançar.
O capitão procurava inutilmente um lugar para desembarcar, difícil de encontrar no negrume da noite. Lá avistaram os náufragos o farol de um barco fundeado, e para ali se dirigiram todos. Era a canoa dum tripulante com o seu proprietário a bordo, e antes mesmo de lhe pedirem qualquer indicação ou auxílio, os pobres náufragos só puderam pronunciar uma palavra: Água! … Água!
(…)
Tendo-os o proprietário refrescado imediatamente, conduziu-os a casa, perto de um pequeno porto. A família do honrado pescador açoriano ajudou os náufragos do Gamo a sair, conduzindo-os a um poço, onde beberam até fartar.
(…)
Era uma hora da madrugada quando o capitão João Agualusa, amparado pelo caritativo pescador, foi até à da cidade da Horta onde vivia a autoridade marítima, participar-lhe o ocorrido e pedir-lhe auxílio para o salvamento dos barcos que se encontravam ao largo – sem que os seus tripulantes tivessem forças para se aproximar. Uma hora depois, saía da doca a lancha a motor Elite, em serviço na Capitania do Porto, fazendo rumo à ponta dos Capelinhos. Foi encontrado um dóri, que seguia rebocado por um barco de pesca que o socorrera, e mesmo sem acostar, o Patrão Mor atirou-lhes alguns pães e um garrafão de água; a viagem prosseguiu para rodear a ilha, e às cinco horas outro dóri foi encontrado, também já a reboque dum pesqueiro. Aprovisionado de água e pão, continuou a busca dos restantes náufragos que durou toda a madrugada e toda a manhã até às 13 horas, sem maior resultado, cruzando o mar em todas as direcções.
(…)
Em momento de tristeza, todos imaginavam os seus camaradas perdidos para sempre. Mas, entretanto ao passar a Elite junto ao porto de Castelo Branco, um homem gesticulava com desespero e ansiedade. Aproximaram-se e ouviram:
Os náufragos que faltam já estão todos em terra. O dóri do senhor piloto (João Maria da Madalena) arribou na costa norte, na praia do Almoxarife, e foi um automóvel buscá-los…


Piloto do Gamo

Satisfeitos com a notícia, os passageiros da lancha da capitania continuaram em direcção à doca, onde chegaram perto das 16 horas. No cais o bravo capitão João Fernandes Mano Agualusa era aguardado pelo governador civil, pelo director do Hospital da Horta, pelo director da Alfândega e outras autoridades e muito povo, cada um à porfia querendo saudar e homenagear o heróico comandante do Gamo que, comovido e envergonhado, não sabendo o que tinha feito para merecer aquele acolhimento carinhoso, chorava, as lágrimas caindo-lhe em grossas bagas pela cara abaixo. Quem, no momento de perigo defendera a vida de todos, e se portara como um valente; quem praticara feitos dignos dos velhos marinheiros portugueses que esmaltam de glória páginas antigas da história, chorava de comoção, envergonhado desse momento final de fraqueza. Disse depois: parecia-lhe que chorava de alegria por ver os seus homens salvos …
Passados dois dias foi encontrado o oitavo dóri pela lancha baleeira Amaral, que o trouxe a reboque para a doca do porto da Horta. Salvaram-se 34 dos 39 náufragos que tripulavam o bacalhoeiro Gamo, tendo aportado ao Faial em 8 pequenos dóris, de 13 pés de comprido por 5 de largo, navegando esses botes, quase sempre sem comer nem beber, 470 milhas à vela, a remo e a correr com as vagas.
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E assim Costa Júnior acabou o relato, que respiguei, provavelmente baseado, na narrativa escrita na primeira pessoa, por Capitão e Piloto do Gamo, a bordo do lugre Sílvia, aos quatro dias do mês de Julho de 1924.

Ficha do Grémio – Cedência do MMI e foto do piloto, do neto, João da Madalena Oliveira

Costa Nova, 22 de Maio de 2013

Ana Maria Lopes
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