Os
comentários aos posts sobre a Casa dos Faróis conduziram-nos a um
romance de Sousa Dinis, Varandas para o
Atlântico, editado em 2000, esgotado, em que o autor evoca umas férias lá
passadas. Bem, vamos a elas, através de uns exíguos excertos respigados.
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(…)
Mas quando me sentia verdadeiramente
realizado, era com a partida para a Costa Nova. A banhos como dizia a minha avó,
apesar de nunca tomar banho de mar ou de ria, onde só molhava os pés. Para ela,
banho só na banheira.
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A partida tinha
lugar todos os anos no último dia de Julho.
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O velho carro do
avô, carregado de todos os precisos parra o mês e com a suspensão soltando sons
que tanto podiam ser gemidos como relinchos, lá ia estrada fora, os pistons
resfolgando em apoplexias até se deter na Casa
dos Faróis, com um último soluço asmático, jazendo depois, durante um mês,
ao lado da carcaça meio apodrecida de um barco moliceiro que tempo ali fizera
encalhar de vez.
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A Casa dos Faróis, que ainda há poucos
anos existia orgulhosamente decrépita e abandonada, era a casa de praia dos
Marnotos há várias gerações. Assim a baptizaram a gente da Costa Nova porque,
passado o logradouro murado, que desde o portão de entrada contorna toda a casa
até se espraiar num largo quintal nas traseiras, tem, de cada lado da escada de
acesso à varanda da entrada, duas réplicas do farol da Barra, colocadas
simetricamente.
Essa varanda era
lugar de cavaqueira de meus avós e amigos, ao cair das tardes de Verão.
Presenciei ali acesas discussões sobre se o farol da Barra pertencia a Ílhavo
ou a Aveiro, e onde, na opinião dos ílhavos, os de Aveiro os deviam meter… A
varanda dava aceso a uma sala de estar e de jantar. Seguiam-se para o interior,
quatro quartos, dois de cada lado, todos eles separados por acolhedoras paredes
de madeira, enfeitadas com redes, remos e outro motivos náuticos, até se chegar
ao fundo, à cozinha, reino exclusivo da avó Amélia. Aí, havia uma escada para o
sótão e uma porta para as traseiras que servia a casa de banho e o quintal,
onde umas couves raquíticas, crescendo na areia, lutavam teimosamente contra o
solo pobre e o ar salitrado do mar, que se ouvia ao fundo e se cheirava ali
mesmo, misturado com o odor dos arbustos das dunas.
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O meu quarto, de
tantas recordações, estava virado a norte e nele entrava, todas as noites, com
a precisão de um relógio, a luz familiar do farol da Barra – quatro pancadas
para o mar e quatro para terra. Entrava a luz, o cheiro da maresia, que sempre
me acompanhou desde que me recordo, e entrava o barulho das ondas, deliciosa
música de fundo para adormecer.
A cama tinha a
cabeceira e os pés em arcos, imitando a proa e a ré de um barco moliceiro a
quem a visse de lado. E a mesinha de cabeceira tinha um tampo de vidro que
mostrava, por baixo, uma bússola com a agulha virada para o lado do farol.
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Foi nesta
«cama-barco» que, por volta dos meus quinze ou dezasseis anos tive um sonho
esquisito. Ou então algo de insólito me aconteceu (…).
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Fiquemos
por aqui e sonhemos o que desejarmos…na projecção dos raios de luz do Farol.
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Foi
tudo quanto nos foi dado encontrar sobre a Casa
dos Faróis. Este nosso interesse fez com que nos chegasse às mãos o postal
que partilhamos, em que se identificam bem a Casa dos Faróis, entre tramagueiras, a casa do Dr. Diniz e a Casa
dos Leões, hoje em «obras de Santa Engrácia», em trio isolado, o que reportará
a imagem lá para os anos 30 do século XX.
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Mas,
e em primeiro plano? Na borda-d’água, mais uma bateira para a colecção! Uma prazenteira e elegante chinchorra, de breu vestida, com um
toldo protector para os seus dois ocupantes, em dias de surriada.
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À
cata de dados diversos – fotos remotas, depoimentos, escritos e postais antigos
– vai-se recompondo a «memória da Costa Nova», que nunca estará completa, mesmo
só em pouco mais de dois séculos de vida.
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Imagem
– Postal gentilmente cedido por Aníbal Paião
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Ílhavo,
30 de Março de 2014
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Ana Maria Lopes
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