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Manuel Cecílio do Bem (Paulo)
Sempre
foi minha conhecida e vizinha, a Silvina Paula, por aqui por entre as ruas
Ferreira Gordo e João de Deus. Noutro dia, ao cruzarmo-nos no passeio, aqui de
Espinheiro, dirigiu-se-me e entabulou
conversa. Nesse dia, o assunto tinha a ver com os «Homens do Mar», que O Ilhavense tem publicado. Como filha de
marítimo, de quem muito se orgulha, e possuidora de pequenas fotos do Pai, a
bordo, tinha muito empenho em que eu pudesse dedicar um dos meus
despretensiosos trabalhos ao Manuel do Bem, de alcunha, o Paulo.
E
porque não? Se as imagens fossem elucidativas e ela me orientasse naqueles
primeiros dados que só a família sabe, então, soltar-me-ia, percorrendo
caminhos habituais (jornais O Ilhavense,
Jornal do Pescador, fichas pessoais
do Grémio, fichas de navios, de cada campanha, tripulações, etc.), que percorro
com gosto.
Além
disso, em 1992, juntamente com os colegas cozinheiros António Gordo, João
Labrincha e João Barreirinha, tinha ido algumas vezes ao Museu, aquando da
preparação da lembrada Faina Maior, ajudando-nos a identificar algumas peças do
gigantesco trem de cozinha trazidas das secas, bem como dar umas dicas sobre o
seu «papel» de cozinheiro, a bordo. Do cozinheiro e seu ajudante, dependiam
todo o «combustível» da tripulação, trabalho nada fácil, exaustivo,
preocupante, mas rotineiro. E Ílhavo também fora pródigo em fornecer bons cozinheiros
para a pesca.
A
Paula, mesmo ali, no passeio, recordou alguns dos navios em que o Pai andara
embarcado e também os seus capitães – Quim
da Graça, Mário Paulo do Bem, Valdemar Aveiro e capitão Pascoal, entre
outros. Claro, o seu desejo despertou-me interesse e fiquei, ansiosamente, à
espera das fotografias. Da cozinha de bordo, propriamente, não tinha esperança
que aparecesse alguma, pois as condições de luz do espaço não eram favoráveis e
dificultavam o registo dos desejados cenários reais. Um dia, de posse das
mesmas, a Paula, em conversa, ali na sua casa do típico beco ilhavense, nº 11,
à Rua João de Deus, tirou-me algumas dúvidas, forneceu-me mais uns dados e daí
em diante, eu que me desvencilhasse.
Manuel
Cecílio do Bem, de alcunha Paulo,
filho de José Paulo do Bem e de Maria de Jesus Calçôa, em Ílhavo tinha nascido
em 27 de Maio de 1921 e por aqui se criara.
Portador
da cédula marítima nº 22601, passada pela Capitania do Porto de Aveiro, em 7 de
Março de 1939, terá ainda jovem, sido levado para o mar, por algum amigo ou familiar,
como moço de câmara.
Do
casamento com Silvina Marques da Silva, em Novembro de 1952, nasceram a Silvina
Paula (mais velha) e António Augusto Marques do Bem, também marítimo, com o mar
a correr-lhe nas veias.
Depois
que termos acesso aos registos do Grémio, Manuel Paulo, terá feito o seu baptismo de mar como moço, no navio-motor de ferro, Santa Maria Madalena, nas safras de
1939 e 40. Continuou no mesmo navio, construído em 1939, para a Empresa de
Pesca de Viana, nos estaleiros da Companhia União Fabril (CUF), até 1943, tendo
passado a ajudante de cozinheiro. Sempre sob o comando de Joaquim Fernandes
Agualusa (1901-1983), mais conhecido por Quim
da Graça, de Ílhavo.
À nossa direita, a bordo
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Nas
safras de 1944 e 45, perde-se-lhe o rasto, que, talvez se venha a encontrar.
Esperemos. Surge-nos, ainda como
ajudante de cozinheiro, nas campanhas de 1946 e 47, no lugre Ilhavense Segundo.
Este lugre-motor construído para a
Parceria Marítima Esperança, Lda., por Manuel Maria Bolais Mónica, na Gafanha
da Nazaré, em 1918, não participou nas campanhas de 1949 a 1952, tendo retomado
a actividade depois de reconstrução sofrida em 1952. Foi seu capitão, o ilhavense
Carlos Ançã.
À nossa esquerda, a bordo…
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E
na safra de 1948, o Paulo deu o salto
com o «saco da roupa» para o convés do Viriato,
aonde regressaria por muito mais tempo, sob o comando de Mário Paulo do Bem
(1907-1976).
Bota-abaixo do Viriato,
em 1945
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Depois
de uma passagem na safra de 1949, pelo icónico Gazela Primeiro, sob o comando do ilhavense João Simões Chuva, o Anjo (1901-1956), assentou arraiais no Viriato, durante mais oito viagens, com
o mesmo capitão, Mário Paulo do Bem, seu amigo e familiar, até 1955 e com Elmano
Pio da Maia Ramos, ambos ilhavenses, entre 1956 e 57, tendo alcançado o posto
de cozinheiro no ano de 1951. Este ano
de 1951, no Viriato, parece que me
diz mais alguma coisa. Ah!...
Por
mais que uma vez que ouvi da boca do Cap. Valdemar Aveiro que se fizera à pesca
do bacalhau, pela primeira vez, como moço, a bordo do lugre-motor Viriato, no
ano de 1951, no sentido de suportar as despesas da sua formação. Era isso! Acto
louvável!...
O
Manuel Paulo, como cozinheiro do
navio. conterrâneo e amigo do Valdemar, sempre lhe preparava uns «miminhos
culinários», à socapa, como era hábito em situações deste tipo – referiu-me a
filha.
A
principal peça da cozinha, incluída «no rancho» era o grandioso fogão, de
início, a carvão de pedra, ladeado de pequenas tulhas com os mantimentos que o
cozinheiro mais usava: feijão branco e encarnado, grão, arroz e açúcar, este,
fechado a cadeado. As grandes bailas, tachos, panelas, tabuleiros, passe-vites,
cafeteiras, penduradas nos vaus. Espaço acanhado…, mas, asseado, limpo e
arrumado.
Rente
à saída para os grandes bancos, vinha a fragata
dos mantimentos. Avisado o cozinheiro, ele conferia-os com ajuda de outros
companheiros – tudo com peso e medida!
No
dia seguinte, chegava o bote com
caixas de peixe: pescada, chicharro, pargo-mulato, peixe-espada, corvina… Vinha
logo o cozinheiro – vida difícil a deste homem –, estripá-lo com a ajuda da sua
mulher, da do contramestre e de um ou outro marinheiro. Salgava-se no porão, ao
lado do encerado com as alfaces, favas, ervilhas, cenouras, para os primeiros
dias de viagem. Mais perto da saída, vinha a fragata da água – o cozinheiro que
começasse logo a tenteá-la– era-lhe
recomendado.
O casal, a bordo do Viriato, em 1954
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A
foto anterior é mais um documento da presença das mulheres a bordo. Aqui, a do
cozinheiro, na sua vestimenta de época, com avental lavrado e embonecado com
folhos, calçada com as suas peúgas de lã e tamancos envernizados e solas de
madeira, comprados na feira da Vista Alegre.
Às
vezes, havia queixas - a sopa anda a sair salgada com’à pilha – reclamava a
companha.
Às
sete e meia da matina, saía o «almoço» – variava entre papas de feijão, feijão guisado ou assado no
forno, papas de farinha de trigo, açorda; – o «jantar», às onze e meia (sopa de
feijão branco ou vermelho, ou grão com arroz ou massa, temperada com toucinho
bem alto) e peixe cozido, só por só, com alguns temperos, se o cozinheiro estivesse bem amurado (de boa
disposição). À ceia, voltava o peixe acompanhado de feijão frade e grão de
bico.
E
o pão de bordo? Ah! Ah! De boa farinha de trigo americana, amassado em água
salgada, estava sempre em tabuleiros sobre a mesa. Se era igual e creio que
sim, àquele que nos mandavam a casa, ainda quentinho, sempre que entrava algum
navio da empresa: – Era de comer e
chorar por mais!
Pequenas
regalias distinguiam a quinta-feira e o domingo: o queque, ao almoço e a carne
salcochada, ao jantar.
Também
a alguns «pitéus», tinham direito os pescadores, de vez em quando:
–
tartaruga, com carne muito apreciada, idêntica à da galinha, mas com sabor a
peixe, apanhada ali por altura das ilhas.
–
toninha, cozida ou guisada, ou em bifes frescos, apanhada, também, pelas bandas
das ilhas.
–
a lula excedentária, depois de primordialmente, servir para isca.
–
peitos e coxas de cagarra também constituíam um óptimo «pitéu».
Chegados
aos pesqueiros, o horário das refeições estava condicionado à pesca.
O
cozinheiro aviava o pessoal em refeição volante, que se misturava com gagins e anzóis, no foquim – pão,
umas postas de peixe frito, azeitonas, café, uma garrafa de água. Antes da escala, o jantar, com sopa e peixe
cozido – agora fresco, pescado e escolhido para o efeito.
Que belo troféu!...
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Depois
da escala, a famosa «chora», cozinhada com caras de bacalhau e arroz.
Horas
de descanso… poucas…, e de secar a roupa com o calor do fogão, que nunca se
apagava – «morria», mas quando o cozinheiro se levantava, dava-lhe uma mexedela
com o ferro, punha-lhe mais carvão e toca a andar.
Vida
dura que foi melhorando com a maior capacidade e condições dos navios. O Paulo do Bem, desde o Santa Maria Madalena, em 1939, passando
pelos já citados navios, também cozinhou, para as companhas dos navios-motor Novos Mares, entre 1958 e 1961, e S. Jacinto, entre 1962 e 64 e do arrastão João Ferreira,
em 1965 e 66. Por eles lidou com os capitães Weber Manuel Marques Bela, António
de Morais Pascoal, e Joaquim Manuel Marques Bela, todos de Ílhavo, e com João
Francisco Grilo, da Figueira da Foz.
Em
dias de brisa, com descanso a mais e falta de peixe, más caras, todos se
aborreciam.
O
pobre do cozinheiro é que alombava…comer sempre a horas certas. Lá se lhe iam os mantimentos, era mais a
refeição do meio-dia. Esta malta a bordo só fazia lixo e ainda tinha de a aturar
– pensava o cozinheiro.
As
mulheres, como já referido, também passavam algum tempo a bordo, antes da
largada, ajudando à baldeação e à limpeza. Até mandavam e habituavam-se a ver o
tempo…
O
Manuel Paulo também teve a sua
passagem pelo comércio, como atestam algumas fotografias. Entre fins de 1943 e
princípios de 1946, fez algumas viagens para o Brasil, no paquete pertencente à
Companhia Colonial de Navegação, Serpa
Pinto, que ficou conhecido pelo navio
da Amizade.
Paquete Serpa Pinto
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Já
após a carreira do bacalhau, por 1967, fez algumas viagens de cabotagem, no
navio Alger, em que naufragou por
encalhe, em 29 de Junho de 1969, tendo feito um telefonema para a mulher, ali
para a antiga loja do Sr. Lamarão, na rua, para a descansar e ouvir.
Em
1971, tirou o curso de cozinheiro no Alfeite, para poder embarcar, então, na
Marinha Mercante, tendo sido cozinheiro no «novo» Serpa Pinto, da Companhia Insulana de Navegação, bem como no Funchalense e Madeirense – informação do genro Fernando Gago.
Deixou
o mar por volta de 1980.
Depois
de um AVC de que recuperou bem, ainda passou uns aninhos cá pela vizinhança,
entre umas saídas com amigos, por casa e «dando uma mãozinha» nas lides
culinárias, em que chegava a cozinhar ementas diferentes, para satisfazer os
gostos de adultos e crianças. Cozinheiro era assim, em Ílhavo. Deixou-nos em 16
de Fevereiro de 2000, com 78 anos.
Fotos
cedidas pela filha.
Ílhavo,
4 de Junho de 2018
Ana Maria Lopes
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