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A
salga é a última operação que o bacalhau sofre, a bordo, indispensável à sua
conservação e que é efectuada no porão.
Este
é o espaço do navio destinado à carga, limitado pela antepara da proa contígua
ao paiol de mantimentos e ao rancho, e pela antepara da ré, que, nos antigos
veleiros, era contígua aos aposentos dos oficiais (câmara ou salão). Neste
porão, aparecem prumos de madeira no sentido longitudinal e transversal, que
sustentam a estrutura do convés (os pés de carneiro) e ainda os vimes, que, no
sentido transversal, ajudam à travação da ossada do navio. É entre estes
prumos, que, por colocação de madeira, se fazem as divisórias do porão – as
panas. Estas ainda são subdivididas em três partes chamadas hinos,
dois à amurada (de bombordo e estibordo) e o hino do meio.
Na impossibilidade de expor um porão inteiro, limitámo-nos a apresentar meia secção de um porão de um antigo veleiro, desde a sobrequilha até meia altura.
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Quando
o navio se dirigia para os pesqueiros, o porão ia carregado de sal, só com uma
das divisórias, a pana de proa vazia; esta levava, por vezes, barricas de
farinha, amarras, apetrechos de pesca, remos, madeiras dos dóris, varas de
eucalipto, isto é, material que, em viagem, era distribuído para estrafego e
aliviava a pana.
Iniciado
o processo da salga, o peixe era passado do escorredouro do convés para o
porão, através de uma mangueira de lona, caindo na dala, onde era garfado pelo
passador de peixe para um dos hinos vazios, pronto a recebê-lo. Aí, dois
salgadores, vestidos de roupa oleada e botas de borracha, com os joelhos
protegidos da humidade por joelheiras, ajoelhavam-se sobre um encerado,
ligeiramente virados um para o outro, com o alfabuche entre os joelhos.
O
passador de sal (sempre sobre um hino com sal), gritava:” Sal! Sal! Sal!” e o
salgador instintivamente puxava o balde de sal e despejava-o no alfabuche.
O
garfeiro ou passador de peixe, junto à dala, gritava: “Peixe! Peixe!
Peixe!” e ia atirando o bacalhau para o meio dos dois salgadores. Estes gritos
de aviso facilitavam a mecanização do serviço e faziam com que os salgadores
quase instintivamente pegassem no balde do sal, sem olharem para ele e se
acautelassem no sentido de não apanharem com algum peixe sobre as mãos, o que
iria redundar por possível ferimento, em prejuízo do seu próprio trabalho. Os
salgadores, consoante a posição em que se encontravam, agarravam no peixe com a
mão direita ou esquerda e estendiam-no com os cachaços para as anteparas de
vante ou de ré do hino e começavam a salgar o peixe á mão (só mais tarde as
luvas de lã de cinco dedos, protegidas por luvas de borracha foram
introduzidas), com mãozadas de sal, do cachaço para o rabo. Seguidamente, a
meio da canja (primeira corrida da salga de peixe com cerca de meio
metro de altura por meio metro de largura), punham o peixe quer de cachaço quer
de rabo para a amurada, ficando todos os espaços; o peixe, ligeiramente mais
alto a meio, fazia com que a salmoura escorresse para os extremos da canja.
Acabada esta primeira canja, os salgadores limpavam o sal caído no encerado e
recuavam para fazer a mesma operação. Geralmente, faziam três canjas por
hino do meio (estamos a exemplificar com meio hino) e para
efectuar a terceira canja, passavam por cima do peixe salgado, viravam-se na
posição contrária à que estavam, tapavam o último terço do hino e elevavam-se
como se efectuassem, de novo, a primeira canja. Este hino ia subindo, subindo,
subindo, até cerca de dois metros de distância do tecto do porão. Safavam-se os
hinos da amurada, indo
o
sal destes hinos para as panas contíguas (serviço feito com o auxílio de pás) e
passavam a salgar os hinos da amurada…. E assim se ia repetindo sucessivamente
a operação.
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O
peixe ia abatendo bastante devido à dissolução do sal, por força do balanço e
sobrecarga de sal que levava em cima. Daí que, em anos de carregamento,
houvesse duas operações finais: o abarrote e o empanque. O abarrote
consistia em salgar o peixe até ao cimo da pana desde que houvesse
possibilidade do salgador trabalhar, muitas vezes já com a cabeça encostada ao
tecto do porão: o empanque consistia em encher uma pana já abatida com
peixe curado com bastantes dias de salga), de uma pana contígua.
Os
salgadores eram pescadores com mais vocação para a salga e que se iam mantendo
de uns anos para os outros. Formação especial ou técnica, não tinham; iam
aprendendo com a prática e essa escola ia-se aperfeiçoando durante a descarga,
a que os pescadores assistiam, e ao verem a qualidade da salga, contrariavam a
tendência de mais ou menos sal, no ano seguinte.
Por
mais arriscado que fosse o trabalho da pesca, por mais custoso e árduo que
fosse o dos escaladores, o pior ainda era o dos salgadores. Em algumas
povoações de pescadores, mulheres havia que diziam aos filhos pequenos, quando
faziam maldades: “Se não tens juízo, mando-te embarcar de salgador num navio de
bacalhau”. A posição incómoda, a frouxa claridade vinda da escotilha, umas
pobres velas, os efeitos da humidade, as consequentes feridas nas mãos, a
responsabilidade do trabalho controlado sistematicamente pelo capitão, faziam
do cargo uma tarefa extremamente penosa.
De
recordar os utensílios: mangueira, dala (que não se vêem na imagem), vertedouro,
garfo de meio cabo, touco de vassoura, balde, pá, galão, joelheiras, encerado, alfabuche,
tabuinhas e cachimbos, suportes de velas de estearina, com que se fazia a
iluminação do porão.
Ílhavo,
01 de Abril de 2023.
Ana
Maria Lopes
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