Há
textos que gostamos de guardar, partilhar e exibir no Marintimidades. E este,
com que o Amigo Senos da Fonseca nos brindou na apresentação do nosso último
livro, no MMI, é um deles. A saber:
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De
Sal, pouco conhecimento tenho para além do seu ajuste ao tempero. Dizem ter mão
pitosa.
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O sal materializado ou
imaterializado, está permanentemente na vida de cada um. Alguém que ame sem sal
qb, não ama: vive de tédio. Alguém que sonhe sem sal qb, não sonha: vive na
glória da desilusão…
Ai de quem não dê pela
sua presença. Sal da vida, sal da alma, sal dos olhos. Sem o sal qb, não há
objectividade no sentir, não há clareza no mundo externo.
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De
sal, observo as doutas palavras desse príncipe de letras portuguesas: – Padre António Vieira. Há sal que não
salga…
Ou
porque o sal não salga; ou porque a terra não se deixa salgar, ou porque quem
prega diz uma coisa e faz outra.
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Haveria, pois, mil e
uma maneiras de abordar ao que vim…ora o que me foi pedido é bem mais simples.
Do sal que salga mesmo…
Mas,
lembrei-me, então…
Certo
(e quem sabe ter sido esse o motivo) ter em tempo publicado o título «O Homem e
o Sal». E aí ter dito (permitam-me citar o dito, que fez parte de setenta
títulos publicados).
(…)
Há vários milhares de anos, caíram as janelas do Palácio do Céu… Ficaram
intactas as vidraças nos respectivos caixilhos, porque as janelas caíram sobre
o terreno macio. Hoje são as salinas…
(Almada Negreiros)
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O
Homem aqui venceu…
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Delas
disse Unamuno: são, de facto, como que exemplares de uma espécie, em outras
partes, já extinta.
Seja
qual for o motivo por que estou aqui a perorar, espero não vos maçar.
Entremos,
pois, na curiosa história de «A Janela para o Sal».
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Aqui há uns anos, não
muitos, a Ana Maria cirandou em minha volta quando me fazia companhia para os
minhas inquirições do livro Bateiras & Artes, tentando-me engajar para um
plano conjunto, de trabalho sobre o Sal.
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Era
minha opinião: sobre o sal e a sua feitura, do ponto de vista técnico, era matéria
esgotada. Depois de o nosso conterrâneo, Manuel da Maia Alcoforado, ter
publicado o seu rigoroso tratado sobre o ouro branco retirado da Laguna de Aveiro.
Do
sal, tempero de vitualha, procurado desde a mais longínqua e profunda noite dos
tempos, para simples sobrevivência, ou tempero de povos mais adocicados, celebrado
por reis, consagrado aos deuses, credor de vassalagem de povos e imperadores antiguidade.
Sobre
o Sal, outros trabalhos (livros e álbuns) foram sendo por aqui publicados. Parecia-me
(a mim!), pois, esgotado o filão salícola para o prelo. Como morta estava desde
há muito a sua produção por estas bandas. O Sal desde o século passado
desapareceu na planície alagada lagunar; que não da nossa mesa, vindo de outras
paragens onde a extracção dispensa o esforço braçal humano. E onde a máquina, substituiu
o ugalho; e o comboio, o burrico do almocreve: o saleiro, logo na
pia baptismal, ajoujado de sal – não o da
sabedoria, mas o do carrego.
Do
Sal, da sua dorida e suada feitura, pouco mais resta que a lembrança registada
em esses inúmeros trabalhos, alguns já repetitivos, já gastos ao nascer para o
relembrar. Mas, sim! – é verdade. Há a Troncalhada, Marinha- museu para o
mostrar aos turistas. Ao longo do tempo recuperou-se o léxico decalcado da «bíblia»
de Maia Alcoforado; métodos e glossário, quase sempre, pouco ou nada
acompanhados do exercício de um metódico trabalho de campo.
E
aqui faço um parêntesis, para me dirigir às autoras; o glossário n’ «A Janela
para o Sal» contradiz a intenção de que falaremos adiante. Era perfeitamente
dispensável (em nossa opinião).
Outros
livros dados à estampa, insistiram nas fotos «mudas», quase sempre bem felizes
– é facto – pois as cãs e as rugas
provocadas pela desaforada faina salícola, a isso bem se prestam. Mas de todo
pobres no texto que não ultrapassa a simples legenda.
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Ao meu desinteresse, a
Ana não desistiu.
E
ainda bem...Como lhe costumo dizer: ouve
o que Te digo, mas não faças o que Te digo... Hoje, constato, o SAL, foi
nela motivação obsessiva, motivação que teria de ser cumprida. Como o fazer (?!)...,
creio, ser essa a sua dificuldade.
Tinha
consigo um fantástico acervo fotográfico (que seu filho então um jovem
entusiasta do registo na caixa impressiva, acompanhante da mãe nas deambulações
pelo salgado lagunar, fixou com mestria). Hoje aqui bem patente. Fotografias
onde os artifícios hoje permitidos pelos hi-techs
digitais, ainda não existiam. Fixadas nos velhos diapositivos, sem acesso a photoshopadas que hoje permitem inserir
um pôr de sol em dia tristonho, uma alegoria de estranhos tons, numa exultante
sinfonia de cor roubada às quatro estações
de Vivaldi. Ana Maria era fiel depositária desse minucioso espólio – um tipo de herança a funcionar ao contrário
– sem dúvida lauto e esgotante cardápio de momentos
escolhidos, fixados para perdurar (ou renascer, um dia, como foi aqui o caso). Descritivo
em imagens, «vitualhas», que marcam cada momento alto do bodo sensorial que é a
fazedura da marinha, por entre
perfumadas maresias de flores silvestres a povoarem os ares, desde o nascer do
sol até ao encharcado crepúsculo nocturno.
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Um
belo dia chegou-se e deu-me conta:
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– Já arranjei companheira de jorna: – a
Etelvina...
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E,
passo a passo, fui acompanhando o início do escufenar
da marinha, o risco dos vieiros, depois
a entre safra...as molhaduras, e a botadela
etc, etc.
Rapidamente
me dei conta de que o trabalho ganhara um cariz muito diferente do modo como
até aqui se tinha falado do sal. O trabalho da parelha (duo) Ana/ Etelvina,
tinha escolhido, não o Sal como figuração central do seu livrinho, mas sim,
fixado e eleito, o marnoto, como
figura central da dorida feitura do sal. E deu a este quase todas as páginas. O
trabalho (hoje aqui livro) ganhou justificadas alvíssaras, pelo profundo
humanismo que espelha.
Uma
apreciação mais cuidada permitiu-me verificar 3 ou 4 singularidades que afastam
«As Janelas» do que foi feito até aqui. Note-se, não estou a dizer para melhor,
mas diferente. E isso é bastante para merecer elogio.
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Primeira singularidade:
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A
começar pelas imagens, e a prolongar-se num texto que está lá, para as servir. E
não como habitualmente, ao contrário. Creio não me enganar se disser que
alinhadas antes de tudo, as imagens, catalogadas de acordo com os pontos
marcantes da safra, só depois se contextualizaram as mesmas. O texto não é pois
uma descrição consecutiva. Corre como de acordo com a imagem. Com liberdade
diria: estamos perante uma banda desenhada poética. O que por norma é, exactamente,
o contrário, do que é costume fazer nestes trabalhos.
E
conta-nos, gota a gota o desalmado bulício do marnoto.
Não
me afasto muito da escriba, se o descrever a meu jeito:
Logo
que a ria punha a descoberto uma ruga, logo ele se lhe atirava sob torreira que
lhe ressumava o rosto em bagas de suor salgado. Pernas de ceroulas enroladas,
camisa arregaçada até aos sovacos, atira-se, sol a despontar, a um bulir
esfalfante. Figura central dos clichés
(na sua quase totalidade) este era o
irredutível marnoto... Que só tem medo que amanhã, numa volta de vento, imprevisível, o céu, em
vez de lhe cair em cima – coisa habitual do seu dia-a-dia – comece a chorar
copiosamente. E lá vai a sua esfalfadela.
Quase que me atreveria a dizer: a janela
do livro por onde somos convidados a espreitar, com um certo pudor, centra-se e
elege como a figura suada, por vezes quase mortificada. Um dos demiurgos
lagunares: o criador do sal. Que sem sudário que lhe acalme a aspereza da torreira
do vento aquilão (o seu sudário é a sua
pele brochada pelo iodado braseiro que o fustiga), leva a canastra ao calvário.
Que é aqui o cone alvo do malhadal...
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