A Casa dos Faróis
na Costa Nova do Prado
Casa dos Faróis. Anos 70
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Quando nasci, ao sair da 2ª Guerra Mundial, o meu tio-avô paterno Manuel
Marques, de Azurva, já tinha comprado a Casa
dos Faróis, o refúgio estival da família.
Pela parte que me toca, as recordações directas e conscientes estendem-se muito
aproximadamente por um curto período, de1949 a 1952. Ou seja, entre os meus
quatro e sete ou oito anos. Mas, a magia daquela casa era tal que dela me
recordo em pormenor, no que diz respeito ao ambiente, aos materiais e aos
móveis, únicos no seu género. Além disso, soube-o muito depois, a moradia em
questão tornara-se uma das referências da Costa Nova.
Para quem vinha da Barra, ou seja do Norte, único acesso terrestre da
terreola, a primeira casa da Costa Nova era o palheiro do José Estevão. Seguiam-se,
na avenida que lhe presta homenagem, a garagem do Samuel (actualmente
devoluta), com uma fachada muito curiosa, e outras moradias da primeira metade
do século XX que ainda lá estão. A Casa
dos Faróis fechava a marcha, à esquina de uma ruazinha de terra sem saída,
hoje rua dos Faróis. Mais adiante, antes do «Bico» subsistiam ainda alguns
palheiros. Infelizmente, nessa altura já poucos eram de madeira. Tanto quanto
sei, depois de um incêndio anterior à minha própria existência, a madeira fora
banida da construção e os que ainda restavam eram casas de pedra e cal com o
reboco das fachadas a imitar o revestimento tradicional. Verdade seja dita,
mais para Sul alguns tinham escapado. Na memória dessa época, dos elementos
urbanos marcantes, ficaram-me a pensão Pardal, o busto do Arrais Ançã e o
popular café homónimo (também conhecido por Coração da Praia). Uns metros à
frente o café Beira Ria, ponto de referência da burguesia veraneante, com um
mezanino onde os músicos tocavam, o Hotel Restaurante do mesmo nome e a «Mota»
(actualmente, posto de turismo) embarcadouro das barcas para atravessar a Ria e, depois da curva da convivial Marisqueira,
outro excelente restaurante, campeava o Mercado Municipal. Duas ruas na
direcção Norte-Sul e uma meia dúzia de transversais de nascente a poente constituíam
a «rede rodoviária» da povoação.
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É este o cenário urbanístico-arquitectónico que da infância herdei.
No final da década de 50, a Casa dos
Faróis saiu da família e, até 1962, as férias que na Costa Nova passei
foram na Pensão Pardal ou no Hotel Beira Ria. Esporadicamente, aquando de umas
festarolas que organizei na garagem, ainda voltei à mítica mansão familiar.
Da esquerda para a direita, identificados – Zeca
Vinagre, Alfredo, Margarida, Barreto e Abrantes
O que dela posso contar resulta sobretudo de farrapos de conversas
familiares e de lembranças «românticas» de uma infância radiosa. A Casa dos Faróis era, para nós crianças,
um mundo fantástico de imaginação,
onde tudo se tornava possível. Assente entre a Ria e o Mar, deste separada pelo
que chamávamos «a Selva». Para lá íamos, quais «cowboys e índios» que éramos (designadamente o Dinis, o João Manuel
e eu) e inventávamos todos os dias novas façanhas do Faroeste, com flechas de cana e revólveres de pau. Ou então, a
nascente, na Ria, onde apanhávamos caranguejos no lodo da baixa-mar, andávamos
de bateira ou lançávamos à água
barcos à vela de cortiça de fabrico próprio. De quando em vez, lá aparecia um de
nós com uma lancha ou um rebocador de folha com motor de corda, que acabavam
sempre por enferrujar.
A nossa casa, construída na primeira metade do século XX, muito
provavelmente por um «Calafão» (emigrante de retorno, com fortuna feita na
Califórnia) cujo amor da Ria e do Mar o levou a erigir os dois faróis, réplicas
reduzidas e fiéis do Farol da Barra, ao pé dos lanços de escada Norte e Sul a
acolher quem naquela casa entrava. Mas, sobretudo, o mais marcante era a
decoração e o recheio, de que só a família e alguns amigos poderiam testemunhar.
Raros são ainda deste mundo e o que aqui revelo aos leitores, ainda que muito
incompleto será, para quem a não conheceu, o pouco que gostaria de deixar.
A Casa dos Faróis foi erigida no
terreno com três estremas que rematava o quarteirão a Sul. Ainda hoje
delimitado pela Avenida José Estêvão, a rua dos Faróis e a Avenida da Belavista,
esta última um mero sendeiro a poente. A Norte, o limite era então uma ruazinha
de terra, de acesso ao já citado palheiro do José Estêvão, actualmente rua da
Nossa Senhora da Encarnação.
Construção de planta rectangular, de alvenaria, com a fachada principal a
nascente a altaneira Casa dos Faróis, com o telhado de duas águas, encimado por
uma águia de asas abertas, não passava desapercebida. Quem lá entrava era
recebido no terraço de cerca de quatro metros e a toda a largura da fachada, onde
se chegava por um dos dois lanços de escada, com os míticos faróis por
sentinelas. Dali, a vista para a Ria, sobretudo nas noites de lua cheia e de praia-mar
era um encanto.
O muro de cerca, com balaústres arqueados a partir de um metro de altura, delimitava
o terreno a nascente e a Sul. Deste lado ficava a entrada de serviço, um
pequeno portão de madeira entre dois pilares. A nascente, um portão de madeira de
dois batentes abria para um terreiro, parcialmente atapetado de chorões, por
onde passavam os carros quando iam para a garagem. Na faixa central de cimento,
entre os pilares de betão armado de sustentação da casa, havia espaço para três
automóveis, uns atrás dos outros. À esquerda e à direita, o chão era de areia e
ali se guardavam enviesados os barcos, as bicicletas, os apetrechos de praia,
de navegação e algumas alfaias. Ao fundo da garagem, uma porta na fachada
poente, dava para o jardim e o quintal. No muro de cerca das traseiras, de
alvenaria maciça, com uns dois metros de altura, havia um outro portão inteiriço
de madeira, que dava directamente para a «selva». Por uma estreita trilha ia-se
até ao Mar. A Norte do terreno, o muro meeiro com o vizinho separava as duas
propriedades.
Patacão (de costas),
Abrantes, Amélia Campos e Jorge (autor do texto)
No vão da escadaria da fachada principal, de parte e de outra, havia um
canil de abrigo para os vários cães da família. Acabado o defeso, os caçadores
da casa iam às galinholas e aos mergulhões. No Verão, punham-se as bateiras-caçadeiras e o vouga na Ria, para passear, pescar ou ir
à praia de «Biarritz» ou de «San Sebastian».
Bruxelas, Janeiro de 2014
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© Jorge Tavares da Silva
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Nota – Este texto e imagens foram-me enviados pelo Autor,
meu amigo, com a finalidade de vir a ser publicado no Marintimidades. Um hino à Casa
dos Faróis, demolida. Além do mais, também fui frequentadora de um ou outro
bailarico, nesta cave.
(Cont).
(Cont).
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