sexta-feira, 22 de outubro de 2021

A minha visita ao Centro de Religiosidade Marítima

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A entrada

No dia 8 de Agosto, abriu ao público o Centro de Religiosidade Marítima. Depois de ter conhecimento do seu percurso expositivo, de ler lido e visto algumas apreciações na imprensa escrita e televisiva (Programa Ecclesia, na RTP 2), só o pude visitar no princípio de Outubro. Expõe ao público um espólio valiosíssimo, com diversas origens. Na entrada, sobranceira à exposição temporária da colecção de santos de porcelana da Vista Alegre (a que já dediquei um “post” especial), como seu guardião, encontra-se a estátua monumental do “Homem do Gabão”, do escultor ilhavense Euclides Vaz, legada ao Município em 1991 e só agora exposta, depois de bem restaurada. Símbolo do pescador ilhavense, com o seu gabão de burel e grande fateixa ao ombro, parece ter um olhar vago, em direcção ao mar.

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Homem do Gabão
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Como, em relativamente pouco espaço, nos é fornecida uma assombrosa quantidade de peças e de informação, vou-me deter naquelas que me chamaram mais a atenção.

Os objectos aqui presentes vieram da colecção do Museu Marítimo, alguns de privados e a maioria, da Igreja paroquial de Ílhavo, principalmente os que não estão a uso, provenientes da Capela das Almas de Ílhavo., demolida em 1910.

Ao cimo das escadas, a máquina do relógio da torre da Igreja com os seus pesos e o sino da ronda, que veio da Capela das Almas. Em contraposição, a bússola e bitácula de navio bacalhoeiro.

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Tempo de terra… rumo de mar

 

Sino da Capela das Almas
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Na sala contígua, domina um painel encomendado ao artista ilhavense Júlio Pires, que representa vários momentos da vida desta terra – tempestade no mar, mágoa das mulheres que ficam em terra, procissão do Senhor Jesus dos Navegantes. Muito colorido, preenche completamente o espaço.

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Painel de Júlio Pires
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Começo a ficar cansada e ainda há tanto para ver. Recordo os objectos que me chamaram mais a atenção. Prometi a mim própria, visitar de novo o CRM, começando pelo segundo andar para apreciar melhor as peças que já não foram devidamente apreciadas.

A viagem ainda vai, agora, começar – “Ora bamos lá cum Deus”. Na parede da direita, a enxárcia executada com a prestimosa colaboração do Capitão Marques da Silva, com cabos, escadas e nós de marinharia específicos.

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Representação de enxárcia
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Encantou-me um nanquim de João Carlos, a “Nau Catrineta”, que já conhecia bem, duas belas “carrancas”, a roda do leme do lugre “Senhora da Saúde”, que sempre me apaixonou.

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Duas “carrancas” e caravela
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Roda do leme do lugre “Senhora da Saúde”
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Passando aos ex-votos, que testemunham a fé ilhavense e devoção ao Senhor dos Navegantes, já ladearam o altar do Senhor Jesus, na nossa Igreja Matriz, já se exibiram no Museu Marítimo de Ílhavo, até que voltaram à fonte (espólio da Igreja Matriz). Podem ser pictóricos, jarras de porcelana ou prata, flores artificiais em papel, tão características de Ílhavo, feitas por Jorgelina Vaz, ou até de ouro. Também podiam ser partituras musicais, como as que estão expostas, do compositor, João da Rocha Carola, escritas para missa dos navegantes, em 1884.

O lugre “Navegante”, que vai sempre no andor do Senhor Jesus, em tempo de procissões, foi um ex-voto de Domingos Pena, executado, a bordo, em 1919.

 

O ex-voto lugre “Navegante
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Que bem que conhecia, passaram-me pelas mãos, as bandeiras, bordadas a seda e a ouro, oferta dos oficiais e dos marinheiros, expostas em móvel adaptado e construído para o efeito, de modo a protegê-las da luz.

Bela colecção de faixas igualmente bordadas e destaque para um nanquim do artista João Carlos, auto-retrato, com a mulher, Silvina e o filho, em devoção ao Senhor Jesus.

No acesso à sala dos tesouros, talvez porque já cansada, andei um pouco perdida. Mas, de repente, dei com ela. Destaco a extraordinária custódia renascentista de 1575, encomendada por D. Pedro de Castilho, então prior de Ílhavo.

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Brilhante custódia renascentista
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A direita, um retrato de D. Manuel Trindade Salgueiro, pintado por Rui Pedro Pacheco.

 

Diversos
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Nas vitrinas que circundam a sala, vemos tesouros espirituais, objectos selecionados de D. Manuel Trindade Salgueiro, de D. Júlio Tavares Rebimbas, do arcebispo Pereira Bilhano e de D. Celeste Maria Santos, benemérita de Ílhavo. Até umas famosas arrecadas em ouro, esmaltadas a verde e branco, com aljôfres!...

Chegada à sala das devoções da Vila de Ílhavo, surpreendi-me pela grandiosidade das enormes imagens, como que suspensas no ar, no contexto de procissões e da Semana Santa.


Exposição de andores
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Chamou-nos a atenção, uma colecção de alminhas, o belo altar de calcário, dignamente restaurado e a quantidade e qualidade de paramentos bordados a ouro.

Apesar de já ter conhecimento de algumas peças, não diria que o espólio da Igreja Matriz era tão imponente, rico e grandioso.

Parabéns a toda a equipa do MMI., que se viu, durante alguns meses, envolvida neste trabalho e aos técnicos de restauro. Parabéns a Hugo Calão, curador do Centro de Religiosidade Marítima, que, com o seu saber e bom gosto, protagonizou o deleite dos visitantes.

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Fotos da CMI., de H Calão e J. Parracho, a quem agradeço.

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Ílhavo, 22 de Outubro de 2021

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Ana Maria Lopes

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sábado, 16 de outubro de 2021

Galeria de arte a céu aberto está concluída

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Ainda não tive o prazer de passar por ela, pronta, mas o Diário de Aveiro de 15 de Outubro de 2021 encarregou-se de me informar. De acordo com a Câmara Municipal de Ílhavo, a entidade que encomendou a intervenção artística, “estão concluídos os painéis que decoram parte do nó viário da Praia da Barra, alusivos à realidade e identidade patrimonial, histórica, social e cultural da terra e das gentes do Município de Ílhavo, com a assinatura criativa do artista plástico António da Conceição”. Era para mim um motivo de interesse passar por lá e apreciar, ao passar, com muita cautela, “o estado da arte”, já que considero o sítio perigoso, para quem conduz, não permitindo uma análise adequada à beleza da obra.

O convite da autarquia ao artista vem no seguimento do trabalho que António Conceição desenvolveu na Gafanha da Nazaré, com as pinturas de vários painéis alusivos à realidade da Faina Maior e da secagem do bacalhau, trabalho duros, mas de uma beleza inaudita. Foram mais de oito meses de labor intenso, com o pintor a retratar os marcos, as pessoas e as profissões da ria e do mar, as praias, o surf, a gastronomia, as emoções, o trabalho e o lazer. Em entrevista dada ao mesmo jornal, de 10 de Março de 2021, o artista referiu que estava a dar o seu melhor, ouvindo mesmo alguns palpites de passantes, porque a arte, neste caso, é de quem a passa a usufruir, depois de concluída. Quando se caminha para a Costa Nova, do lado esquerdo da via, ultimamente, foram acabados os últimos painéis que, apesar de muito belos e fortes, de algum modo, repetem o tema desenvolvido na Gafanha da Nazaré – a Faina Maior –, lançando mão das mesmas tonalidades entre os brancos cinzas, pretos e amarelados. A meu ver, estes escusavam de existir, porque já estão retratados, geograficamente, muito perto.

Grande falta, na minha modesta opinião, faz a representação de um “barco do mar” de proa erguida ao céu, com as suas artes de arrastar para terra, numa azáfama colorida e estonteante. Se este tipo de arte já hoje não se pratica na Costa Nova, esteve na origem deste belo rincão de areia, que, hoje, dá pelo nome de Costa Nova do Prado. A saber:

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Dois exemplos

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Para o leitor, aqui fica uma amostra de algumas das imagens que decoram o nó viário da Costa Nova/Barra, que devo à destreza de quem as tirou, já que não tinha meios de as conseguir pessoalmente, devido ao receio do trânsito, no local.

Os meus parabéns ao artista António Conceição e a quem lhe encomendou a obra, à parte o “esquecimento” da representação do” barco do mar”, imprescindível no mar da Costa Nova.

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Mar, gaivotas e o lazer do surf
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O artista em acção
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O farol, a musa e as dunas

Os mariscadores e moça a degustar uma ostra
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Cena marítima e característicos palheiros
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 Cenas da Faina Maior
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Ílhavo, 16 de Outubro de 2021

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Ana Maria Lopes

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quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Santos em porcelana da Vista Alegre

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Fruto da paixão e labor de toda uma vida, a colecção de imagens religiosas de Carlos Manuel Teles Paião, doada ao Município de Ílhavo, num gesto afectuoso, em Julho de 2021, revela-se como uma das mais importantes colecções conhecidas desta temática, em porcelana da Fábrica da Vista Alegre, fundada em 1 de Julho de 1824. Encontra-se patente ao público de 8 de Agosto a 30 de Novembro de 2021, no r/ch do “Centro de Religiosidade Marítima de Ílhavo”.

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Folha de sala
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O território de Ílhavo foi profundamente marcado pelos objectos aí produzidos, existindo nas casas e oratórios particulares imagens de santos de porcelana, habilmente modelados e pintados pelos artistas locais, onde as preces das mulheres se dirigiam quando as notícias dos homens a bordo dos bacalhoeiros tardavam em chegar. Sempre conheci na minha casa um Menino Jesus “mariola” e um S.  João Baptista. Mais tarde adquiri uma Virgem do Rosário de Fátima, em biscuit, branca, de pormenores estonteantes. Com pena minha, nunca cheguei a possuir, uma Virgem da Conceição, vidrada e policromada, existente com pequenas diferenças, fruto do artesão que a rematada, minha protectora, porque nascida em 8 de Dezembro.

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Entrada
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Carlos Manuel Teles Paião nasceu em Ílhavo a 10 de Novembro de 1932, filho de Francisco da Silva Paião (Almeida), capitão da antiga frota bacalhoeira portuguesa e pai do cantor Carlos Paião. Reunida ao longo de 55 anos, altura em que deixou a pesca do bacalhau, nos lugres “Creoula” e “Argus” e entrou para a os pilotos da Barra de Lisboa.

A primeira peça que adquiriu foi um Santo António de Lisboa, memória do tempo de menino, em que acompanhava a sua mãe a enfeitar e zelar pelo altar de Santo António da igreja de Ílhavo.

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Santo António
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Depois seguiram-se os Meninos Jesus “mariolas”, como lhes chama “por estarem abusacados numa almofada, sem nada fazer, as Virgens da Conceição e restantes santos, comprados em leiloeiras, antiquários e colecionadores, correndo Portugal de lés a lés, à procura das imagens mais raras.

Entre estas, exibe-se logo à entrada um magnífico e raro Cristo crucificado.

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Cristo de cómoda
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Mais adiante, um não menos raro, Senhor dos Passos.

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Senhor dos Passos
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Parabéns ao doador, bem com a sua esposa, pela rara e valiosa dádiva ao MMI, ao Hugo Calão, cuidador da exposição, pelo seu saber e bom gosto e à Fábrica da Vista Alegre, que colaborou na montagem da mesma, no cuidado expositivo e na cedência de algumas fichas que detém e que, normalmente, identificam a peça, com todas as suas características, medidas e, nome original.

Na minha opinião, merece uma visita longa e cuidada.

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Fonte – Folha de sala da exposição

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Ílhavo, 14 de Outubro de 2021

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Ana Maria Lopes

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sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Entrevistando o capitão do "IlhavenseI"

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As causas do sinistro – Uma tripulação inteira em riscos de perder a vida – O cemitério dos navios – Horas de tortura e de fome – Uma saudade e um sonho – Coragem, marinheiros!

 

Ao respigar Ilhavenses antigos, por outro assunto, passou-me pelas mãos no de 25/8/1929, esta entrevista que me interessou, ao Capitão do «Ilhavense I».

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Lugre «Ilhavense I»
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Catando-a, (…) Homem experimentado nas lides do mar, o nosso amigo Sr. João André Alão era o capitão, há já alguns anos, do lugre «Ilhavense I», naufragado no dia 15 de Julho passado nos Bancos da Terra Nova.

Chegado a Ílhavo na terça-feira pretérita, era nosso dever ouvi-lo sobre o sinistro que causou a perda do barco do seu comando que em 11 de maio havia deixado o porto de Lisboa, impelido pela leve brisa que no tope dos seus mastros cantava a canção dolente que aprendera ao roçar no dorso das vagas – brisa cantante e benéfica a cujo sopro adormecem os nautas portugueses, os nautas da nossa terra, cheiinhos de sonhos e de saudades, sonhos que são uma vida, saudades que são consolo para as suas almas de lutadores nevróticos.

À sua casinha da rua Direita nos dirigimos, pois, na manhã escaldante de 5ª feira.

E, em frente do arrojado marinheiro, de rosto tisnado e magrizela, ali nos dispusemos à entrevista, rápida, instantânea:

– Em que dia haviam chegado ao Banco?

– No dia 12 de Junho.

– Tinham, portanto…

– Já tínhamos perto de 500 quintais a bordo.

– E porque levantaram ferro?

– Porque o peixe falhou.

– A que atribui o sinistro?

– A névoa cerrada que apareceu cerca das dezanove horas e a um desvio de agulha, duas coisas frequentíssimas naquelas paragens.

– Houve falta de precauções?

– Não senhor; flutuávamos de acordo com as exigências de flutuação em tais casos.

– Queira contar-nos o que foi esse momento tremendo?

– Devia ser uma hora da madrugada quando fomos surpreendidos pelos gritos das vigias, anunciando terra na proa. Sentindo o perigo iminente, imediatamente mandei arribar. O barco rodou, mas a popa bateu no rochedo. Mandei largar ferro. O navio estava encalhado de popa à proa, rebentando grandes mares no convés.

– Havia possibilidades de salvar o navio?

– Não. Só havia a possibilidade de salvar a tripulação, que ali estava toda em riscos de perder a vida. Por isso, mandei proceder ao imediato desembarque.

– Que se fez…?

– Com grandes sacrifícios e enormes dificuldades. Foram arriados doze dóris, em que se recolheram todos os tripulantes, tendo eu deixado o navio somente depois de verificar que mais ninguém estava a bordo.

– Houve salvados?

– Quando saltei para o meu dóri, levava comigo todos os livros e documentos de bordo, incluindo dois diários do piloto, mas o meu dóri foi ao fundo, sendo eu salvo nessa ocasião, por outro dóri que veio em meu auxílio, perdendo-se os livros e os documentos.

– Depois…

– Às três horas da manhã, como visse que já nada se podia fazer, para salvamento do navio, mandei remar para terra, em busca de local para desembarque

– Que foi…?

– Perto de uma povoação chamada Saint Shotts.

– Não voltaram ao navio?

– Voltámos por um cabo de vaivém que se estabeleceu de terra para o barco.

– E fizeram, então, alguns salvados?

– Apenas alguma roupa dos tripulantes e alguns objectos de insignificante valor, pois o navio já estava raso de água e impossibilitava, em absoluto, os trabalhos de salvação. Vendo que nada mais se podia ali fazer, voltámos a terra e fomos, então, em busca das autoridades. De Saint Shotts, comuniquei para Trepassey, povoação distante daquela, cerca de vinte milhas. Telegrafou-se para o cônsul de Portugal em Saint John’s, Sr. João José Denis.

– O local onde encalharam é de boa navegação?

– Não. Até lhe chamam o cemitério dos navios. Dias antes de nós, naufragou um vapor inglês, que ainda lá vimos, morrendo toda a tripulação. Contam-se já perto de vinte, os barcos encalhados.

– Passaram muitas torturas?

– Muitas torturas e muita fome. Saint Shotts é uma povoação pequena, com cerca de 20 habitantes e onde não há recursos de espécie alguma. Havia de ser uma hora da tarde quando, extenuados, nos desjejuámos com uma chávena de chá.

– As autoridades fizeram-se demorar?

– Só passadas algumas horas depois que telegrafei é que chegaram ao local do sinistro o Juiz de Trepassey, o oficial da Alfândega e um polícia.

– E o nosso cônsul?

– Telegrafou imediatamente ao Juiz de Trepassey, pedindo que nos fossem dados imediatos socorros. Também o nosso conterrâneo Sr. Copérnico da Rocha* foi incansável e dispôs tudo para que nada nos faltasse. Fomos transportados para Trepassey em pequenos carros, por caminhos perigosíssimos, tendo ficado no local do naufrágio um polícia de guarda ao navio e aos salvados. De chegada a Trepassey, também lá estava o cônsul de Saint Jonh’s.

– Que providências tomou o cônsul?

– Averiguados todos os detalhes do naufrágio, e informado de que nada mais se podia fazer e vendo que os marinheiros estavam passando as piores privações, dormindo no soalho de uma sala e cheios de cansaço e fome e tendo ido ao local do sinistro comigo, com o piloto e autoridades verificaram a situação e posição do navio, ordenou, então, a nossa partida para Saint John’s, onde embarcámos a bordo do paquete «Nova Scotia» que nos transportou ao Havre, tomando neste ponto o vapor «Pancras», que nos desembarcou em Leixões.

– Vieram todos?

– Vieram 23 homens. Os restantes 5, em cujo número se contam o piloto, Sr. José Fernandes Matias de Melo e o contramestre Sr. Joaquim Fernandes Serrão, devem estar a chegar a bordo do vapor «Catalina»

– Quantos homens eram de Ílhavo?

– Seis. E outros tantos da Gafanha. Os restantes eram da Nazaré, da Figueira e do Algarve.

E o nosso entrevistado, sem dar mostras de aborrecimentos pelas nossas constantes e contínuas interrogações, cerrou neste momento os olhos.

Calámo-nos. Naquele instante, devia passar-lhe pela mente a recordação de um sonho feito saudade, evocando as horas tormentosas do naufrágio em que correndo da proa à popa, gritava aos seus homens:

– Coragem, marinheiros!

Antes fosse um sonho!

Mas, infelizmente, a perda do «Ilhavense I» fora uma dura e cruel realidade!

Degustem esta entrevista levada a cabo há 92 anos, tal como eu a saboreei, apesar de todo o seu dramatismo.

*Ainda conheci o Sr. Copérnico Rocha e sua Esposa, quando vinha a Ílhavo, irmão de Conceição e Rosa Rocha, tio de Maria da Conceição Rocha Mano e de José (Zeca) Mano.

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Ílhavo, 08 de Outubro de 2021

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Ana Maria Lopes

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domingo, 3 de outubro de 2021

Os Navios de Assistência à Frota Bacalhoeira

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Ontem, dia 2 de Outubro, a Fundação Gil Eannes deu ao prelo, depois de ter passado o pior do mau tempo, a obra, em três tomos, “Os Navios de Assistência à Frota Bacalhoeira”, da autoria de João David Batel Marques. Na senda das obras a que já nos tem habituado, estes volumes pressupõem a mesma qualidade dos anteriores, por fora e por dentro.

Por razões diversas, ir a Viana do Castelo, pelas 9 horas da manhã, isso era “uma madrugada”, que temia deixar-me muito cansada. Mas, fruto da amizade do Tito Cerqueira, eram 4 horas da tarde e já folheava os livros  – O “Carvalho Araújo” e o “Gil Eannes” ex Lahneck, tomo I, o “Gil Eannes” de 1955, tomo II e o “Gil Eannes” de 1955, tomo III.

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Tomos I, II e III
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Foram o meu entretém, ontem, e continuarão a sê-lo, hoje, texto e imagens.

Muitos nomes ilhavenses conhecidos, de pessoas e navios os perpassam, o que me dá mais entusiamo, numa primeira leitura. Será sempre, também, uma obra de consulta, todas as vezes necessárias.

Parabéns à Fundação Gil Eannes e, sobretudo, ao autor, João David Batel Marques, a quem felicito.

 

Ílhavo, 3 de Outubro de 2021

Ana Maria Lopes