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A entrada do n/m Novos Mares,
em 1964, para mim, teve um sabor especial.
Desde que me lembro, sempre fui
assistindo à entrada dos navios de bacalhau, pelo menos, os pertencentes a
Testa & Cunhas, com toda a carga emotiva que acarreta.
Na Meia-laranja, as mulheres, saudosas, ansiosas e adornadas nos seus
mais domingueiros trajares, bem arreadas de ouro, esperavam os seus homens,
que, na proa do navio, acenavam, igualmente comovidos, e ansiosos por calcar terra
firme e por abraçá-las a elas e aos filhos, que, por vezes, ainda nem
conheciam. Haviam nascido na sua ausência! Que longos seis meses!
Nesse ano, decidi passar para o lado
de lá e ter uma perspectiva diferente da entrada de um navio.
Numa manhã setembrina, de ria calma e
envolta numa doce neblina, embarquei no Cais dos Bacalhoeiros na lanchita da Empresa, conduzida por um
fiel servidor da casa, o Zé Vicente.
Propunha-me fazer um documentário,
filmado, em 8 mm (era o que se usava, então), com a minha maneirinha Bell & Howell.
Tem tudo menos grande qualidade, mas já fez 56 anos e foi filmado com grande ternura e curiosidade. Desculpem, pois,
as imperfeições e apreciem os aspectos positivos. Além de não ser “profissional”,
ainda tive o azar de ter de fazer a inversão obrigatória do filme, exactamente,
quando o Novos Mares se aproximava e
nos ultrapassou. Mesmo assim, valeu a pena.
Na viagem para a boca da Barra,
passaram, por nós, traineiras,
pujantes mercantéis à vela, graciosos
e esbeltos moliceiros, quer à vela,
quer à vara, a abarrotar com elevadas marés
de moliço, bateiras berbigoeiras,
para não falar de dragas e navios de carga, que não me despertam tanto a
atenção.
O nevoeiro lá fora, adensava, mas,
por bombordo, avistava-se, altaneiro, o nosso Farol riscado de vermelho e
branco.
Pela frente, o navio, imundo, bem
surrado e bem pesado (tinha sido um dos melhores anos de pesca), saúda a
população no seu silvo roufenho e profundo! Já entrou a barra e dirige-se a S.
Jacinto. Eis que se lê, à popa: NOVOS
MARES – AVEIRO.
Saltei para bordo.
Não tinha olhos para tanto movimento
e estrafego!
Os pescadores, já bem lavados,
barbeados e aperaltados, aguardavam, pelo convés, que era exíguo, para tanta tralha: sacos de lona das suas roupas, uma golpelha ou goropelha algarvia,
barricas que levaram 30
litros de vinho e traziam caras, samos e línguas (a
caldeirada dos pescadores), bidões de óleo, gasóleo e óleo de fígado de
bacalhau (brrrr!), sessenta e seis dóris atulhados de panas, bancos, ferros, remos, forquetas, etc., distribuídos por dez
pilhas, para sessenta e quatro
pescadores.
Entrava para bordo o encarregado da Alfândega, que marcava os sacos, um a
um, a giz vermelho.
De S. Jacinto, em bateiras, chegavam famílias de
pescadores de lá naturais, para aquele forte abraço entre marido e mulher e entre
pais e filhos!
O imediato, à época, Tibério
Paradela, junto da escada de portaló
dava andamento às diligências necessárias.
Por estibordo do navio, atracaram
dois possantes mercantéis, para onde
eram arriados, por um sistema de teques, os sacos já inspeccionados.
Pertenciam aos pescadores que moravam em localidades cujo acesso era fácil
através da ria: Murtosa, Gafanha da Encarnação, Costa-Nova, Vagueira e outras.
O Capitão, à época, António Pascoal, pomposamente fardado, localizado na asa da ponte, controlava todo o movimento do convés, assim como supervisionava
manobras e alcançava o horizonte, com amplitude.
Chegada a hora conveniente da maré, o
rebocador procura posição e passa ao navio o cabo de reboque.
Começara, para mim, a “grande” viagem
de S. Jacinto à Gafanha da Nazaré!
Avistam-se as instalações da seca, já
parcialmente remodeladas.
Homens, em botes, auxiliam, a atracação do navio, à proa e à popa.
Entretanto, o guarda-livros e
auxiliar entram para bordo, para proceder ao pagamento dos salários, de acordo
com a informação de pescado previamente fornecida pelo capitão.
No cais, as famílias, que, entretanto,
se deslocaram da Barra para a Gafanha, esperam com ansiedade, os seus entes
queridos. Ei-los que começam a sair, bem preparados, aos poucos, em botes, normalmente com duas lembranças,
uma em cada mão, quase sempre do mesmo género: um Cristo luzente e cintilante
para a parede do quarto e uma boneca, bem vistosa, para a sua menina, de quem
tinham tantas saudades.
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O Sr. Capitão Pascoal que, com os
seus 85 anos, na altura, foi-me explicando, ao visionarmos o filme, a sequência
das acções. Também consegui proporcionar-lhe uns agradáveis momentos, já que
não sabia da existência de tão modesto documentário.
Saboreiem-no, pois, que vale a pena,
apesar de alguns evidentes defeitos!
E assim terminou a campanha de 1964
do n/m Novos Mares, com um dos
melhores carregamentos!
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Ílhavo, 3 de Novembro de 2020
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Ana Maria Lopes
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