sábado, 19 de agosto de 2017

Homens do Mar - José Duarte Oliveira - 35

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José Duarte Oliveira
Já pouco ou nada escrevinho, já pouco ou nada pesquiso, mas não deixo passar em vão nenhum episódio da Faina Maior a que vá tendo acesso. Alimenta-me a alma, mesmo no seu negrume doloroso.
Encontrei, em meados de Maio, Noémia Ribau, no Museu, para mim, pessoa desconhecida.
Mas, alguma empatia brotou entre nós que nos levou ao diálogo. A Noémia – afável, agradável, simpática, de 70 anos, pele lisa e cuidada, olhos azuis cristalinos e transparentes, da cor do mar, cabelo encaracolado, farto e branco puro, tipo espuma de vaga na rebentação – parece que tinha alguma mensagem para me passar. E tinha.
Revelou-me com uma dor ultrapassada, mas ainda não esquecida, que o pai, «pescador-especial», morrera no mar, no pesqueiro, tendo desaparecido para sempre, ele, o bote, o bacalhau apanhado, em segundos: na campanha de 1952, enquanto contramestre do lugre-motor Dom Denis, pertença da empresa Pascoal & Filhos, Lda. Tinha algumas fotografias (aguçou-se-me o interesse) e recordava tão forte e vivamente o dia da chegada da notícia, mesmo nos seus 5 aninhos, que era capaz de pintar um quadro das empolgantes e tristes cenas, que vivera e a que assistira.
Uma criança, com duas irmãs mais velhas, marcada sobretudo pelo desgosto de sua mãe, que acompanhou toda a vida, embiocada em roupas negras como negra não mais deixou de ser a sua alma. Conversarmos mais – era o nosso objectivo –, mas naquele dia e àquela hora, não era oportuno.
Vim para casa, e na minha curiosidade natural, interrogava-me:
– Como se chamaria o pai, nome completo? Nascido onde?
– Idade? Cédula marítima de que data?
– Quem teria sido o capitão do navio Dom Denis, nesse ano, que teria passado pelo desgosto de perder um homem bom, um bom pescador, um homem novo e pai de crianças, deixando uma jovem mulher, viúva?
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Procurei estes elementos junto da sua ficha de inscrição no Grémio e das fichas biográficas complementares. José Duarte Oliveira, de alcunha Zé Pinto, nasceu na Gafanha da Nazaré, a 2 de Setembro de 1913. Casou com Palmira Janicas Martins em 10 de Janeiro de 1936, sendo possuidor da cédula marítima nº 19.907, passada pela Capitania do Porto de Aveiro, em 3 de Abril de 1927.
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A bordo, em pé, de camisa clara, junto à pilha de botes
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Tendo começado cedo a vida marítima como moço, de 1936 a 1940, inclusive, foi um óptimo pescador no lugre com motor Rainha Santa Izabel, tendo mudado de 1941, até à fatídica campanha de 1952, para o lugre Dom Denis, em que foi sempre pescador especial e, contramestre, nos anos de 45, 49, 51 e 52. «Partiu para o fundo do mar florido», sem retorno, em Agosto de 1952, com 38 anos.
O capitão fora, nesse ano, João Fernandes Parracho (o Vitorino), que bem conheci, ali da Rua Direita.
Um mês depois, numa terça-feira, a Noémia voltou a procurar-me, para conversarmos mais demoradamente, tendo-me trazido algumas fotos do pai, que estavam danificadas na sua maioria pelo bolor do tempo, com excepção de uma, pequenina, que tinha vestígios de ter andado colada, no interior da amura do navio, junto ao beliche do pai, como era hábito – ele e a sua Palmira.
Escolhi as possíveis.
A Noémia continuou com as suas naturais lamúrias, contando-me que pela Senhora do Pranto, tinham vindo até à festa, a Ílhavo, onde já constava o acidente fatal do pai, embora ninguém tivesse coragem de lhes dar a trágica notícia. Davam-se muito bem com a senhora do capitão, mas…
De dia em dia, o tempo foi passando e familiares e amigos, na Gafanha d’Aquém, sentiam-se na obrigação de dar a conhecer à família, tão terrível notícia. E assim aconteceu. Já todos em redor, por fins de Agosto, estavam preparados para consolar, amparar e animar, se é que há ânimo possível, nessas condições…
Tum! Tum! Tum! – bate à porta um tal João dos Bois.
– Abra a porta que o seu home morreu afogado nas ondas do mar! – Ecoou…
A Palmira, incrédula, gritara, caíra, desmaiara. Foi-lhe prestada a assistência possível pelo Sr. Dr. Balseiro (pai). Durante quase um mês, a recém-viúva de um homem perdido no mar, não vivera, vegetara, semiadormecida, tendo perdido a fala. Tinha três meninas do seu rico Zé Pinto, para criar. E assim o foi fazendo, à custa do seu trabalho, ajudas e amor, numa mágoa infindável, mas com uma força anímica que sempre vai tendo uma mãe, mesmo viúva.
Outro episódio chocante, ainda em pleno luto – recordou a Noémia – foi a entrega dos sacos de lona com as roupas de bordo e da tal fotografia do casal, que, na amura do navio, alimentava o seu sonho de amor. Na altura em que o navio entrou a barra e atracou no cais da Gafanha, a quem entregar aquelas sobras doridas?
Outra tormenta – o contacto físico com cada peça de «roipa do seu home» que ela beijocara, numa dor sem fim! Para não falar na dita fotografia pequenina e carinhosa, que ainda hoje existe e é testemunho de tão grande amor e de tão grande perda…
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Na amura interior do Dom Denis, junto ao beliche
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Falou-me a Noémia dos alvos cabelos encaracolados e de olhos de um azul cristalino, como o mar, que Bernardo Santareno, não sabia em que livro, narrara um sonho, que só podia ser premonitório. Não me era estranho, e de volta a casa, agansei-me aos Mares do Fim de Mundo, em que, rapidamente, localizei o belíssimo texto de Santareno, que passo a memorar: – O Sonho
Corria pelo fundo do mar, perfeitamente livre, como que alado, respirando sem qualquer esforço: apanhava flores lindíssimas, jamais admiradas antes, e escolhia conchas, azuis ou róseas, de formas encantadoramente bizarras. Sentia-se leve e feliz.
E quando, por acaso, se mirou numa estrela de oiro que, cadente, lhe passava em face do rosto, ficou estupefacto: era muito mais jovem, agora.
(…) A certa altura, porém, lembrou-se dos filhos pequeninos e quis levar-lhes as flores e as conchas: tentou por isso voltar à superfície. Em vão: sempre que experimentara nadar para terra, o mar tornava-se duro e impenetrável. Angustiado, repetiu a tentativa uma, duas… cem vezes: impossível. (…) Queria chorar, mas só podia rir. Foi neste momento, no auge da angústia, que o vigia o veio acordar…
Que sonho mais esquisito! Credo! Deus nos livre das tentações do demónio. Sempre há cada uma. (…). E logo foi contar ao Francisco Urze, seu mais íntimo amigo. Foi este último quem agora mo reproduziu. Oh, que alívio ao acordar… Livra! Mentiras, sonhos são mentiras.
Vestiu-se. Madrugada. Estava um dia sereno e belo, um mar doce e sem rugas, logo palhetado por preciosos cristais solares. Nem vento, nem nevoeiro, Gronelândia, no «Store».
Tempo ideal para a pesca à linha!
Arriados os botes (mais de cinquenta!), os pescadores lá foram para a faina, cada qual remando para o pesqueiro preferido, todos eles, no entanto, perto do navio-mãe, o lugre Dom Denis. À vista, muito próxima, a costa nevada.
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Dom Denis

E o Zé Pinto (chamava-se assim o homem do sonho) foi também, claro, com os demais. Era o contramestre do navio: marinheiro sabedor e prudente.
Cerca de uma hora depois da partida, houve ainda quem visse o seu dóri, já longe, reconhecendo-o pelo verde-malva da minúscula vela.
Depois… nunca mais.
Pela tarde, fora içada no Dom Denis a bandeira da chamada, todos, uns após os outros, foram regressando ao navio-mãe.
Todos, menos o contramestre.
Que lhe teria acontecido? Não há testemunhas, ninguém pode verdadeiramente explicar esta desgraça. O tempo continuava esplêndido, o mar mais plano que nunca, o céu azul e limpo, o vento apenas suave.
Então, o Dom Denis navegou em busca do homem, por todas as direcções; lançou, pela telefonia, apelos aos outros navios portugueses e estrangeiros; fez, desesperadamente, todos os sinais de chamada… Tudo inútil: o Zé Pinto desaparecera para sempre.
Mas, como?! Estranho naufrágio, este!
Que se teria passado, santo Deus?! Ninguém sabia. Com um mar assim, bom e ameno, nunca tal acontecera: não havia memória. Foi como se o barco e o homem, num instante, se tivessem feito em fumo e brisa; ou em música (…).
Ai, aquele sonho!... O Francisco Urze, dolorosamente não se cansa de murmurar: Era o aviso, era o anúncio! E eu penso também que sim, que seria: a morte tinha escolhido o Zé Pinto enquanto ele dormia: ficara marcado, não lhe podia fugir. Ela é implacável, não perdoa nem adia – com bom ou mau tempo, com névoa ou com sol, o jovem contramestre do Dom Denis, naquele dia, àquela hora, iria ouvir a música do fundo do mar, colher as suas flores maravilhosas, apanhar as suas conchas belíssimas…
Trinta anos volvidos, a sua filha Noémia encontrara o Chico Ramos, contramestre do lugre Brites, em Ílhavo, que lhe confessara que, ao longe, assistira ao afundamento do seu pai… mar chão, tempo límpido, mas aquela ganância de carregar mais o bote levara-o à morte, por submersão com o peso de mais uns belos peixes. Estava a dar!.... Terá sido? Faço minhas as suas palavras que dão que pensar.
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Fotos cedidas pela filha de José Duarte Oliveira
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Ílhavo, 14 de Agosto de 2017
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Ana Maria Lopes
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sábado, 12 de agosto de 2017

Tributo a Capitães de Ílhavo


Prefácio
 
Este Tributo a Capitães de Ílhavo, de autoria de Ana Maria Lopes, não poderia ser dado à estampa e oferecido à comunidade ilhavense em melhor momento. No dia em que o Museu Marítimo de Ílhavo comemora os seus oitenta anos de vida, este livro generoso e quente, tecido delicadamente sobre memórias de família dos admiráveis Capitães de Ílhavo, constitui um presente emoldurado, um diálogo de gerações para dar corpo e espírito à memória futura.
Não escrever este livro seria muito mais cómodo. Mas não foi essa a decisão de Ana Maria Lopes, que aceitou de pronto o desafio que lhe lancei quando soube das notas biográficas que vinha alinhando para publicação informal no seu blogue.
O património e as dívidas da memória comportam uma dimensão ética que pede a generosidade do risco e o desassombro da partilha. Daí a importância deste livro e da iniciativa homónima que o Museu imaginou neste seu ano jubilar em que o território, a identidade local e os seus protagonistas se invocam sem freios. Bem sabem os leitores deste livro, quanto o Museu Marítimo de Ílhavo tem procurado pluralizar memórias e abrir o jogo das identidades a todos os protagonistas humanos da Faina Maior.
Esta herança cultural lendária faz-se de múltiplos heróis humanos, da proa à popa. Prestar tributo aos Capitães de Ílhavo significa reconhecer uma elite local cuja fama correu o país e o mundo e significa fazê-lo de maneira aberta e inclusiva, com os Capitães e os Pescadores, em companha. Basta lembrar que no mesmo ano em que promove esta iniciativa e a presente edição, o Museu Marítimo de Ílhavo editou o livro Portugal no Mar – Homens que foram ao Bacalhau e apresenta ao público um extraordinário portal, Homens e Navios do Bacalhau, quase um museu virtual.
«Tributo a Capitães» e não «aos Capitães», assim o quis intitular Ana Maria Lopes, sabiamente, evitando presunções e a ciclópica ideia de biografar todos os Capitães ilhavenses. Trata-se assim de um tributo profundamente humano, da invocação de uma parte significativa dos Capitães de Ílhavo. Trata-se de uma parte que fala e vale pelo todo, de uma amostra que representa um universo.
Aqui se reúnem trinta breves biografias de Capitães ilhavenses já desaparecidos, conjugando palavras certas e belíssimas imagens, muitas delas inéditas porque residiam algures em silêncio. As biografias privilegiam o currículo marítimo dos oficiais e as principais peripécias dos navios que governaram. Homens houve que naufragaram três vezes. Muitos já eram filhos e netos de oficiais da Marinha mercante. A esses detalhes narrativos, fios de água que levam ao mar, aditou-lhes a autora preciosas notas humanas, traços de vida e testemunhos de família que não deixarão de interpelar outras memórias quando estas páginas forem dissecadas emotivamente.
Os Capitães de Ílhavo são homens de mar, admiráveis marinheiros, nautas por treino e vocação. Mesmo quando comandaram navios nunca deixaram de ser pescadores, continuidades que devem ser lembradas e valorizadas.
A diversidade de biografias que se encontram neste livro permite-nos confirmar que, se lhes chamarmos «Lobos do Mar» ou algo semelhante, não estaremos a exagerar nem a replicar os arroubos da propaganda do Estado Novo. Quando Alan Villiers lhes chamou «os melhores navegadores do mundo», na célebre Campanha do Argus (1951) e num texto que a seguir publicou na revista National Geographic, não exagerou mais do que viu, quotidianamente, nos mares do Norte. Mas fica claro que essas expressões mitificadoras tendem a tipificar estas figuras humanas; salientam os seus traços comuns como se um molde humano lhes tivesse esculpido o carácter e as habilidades náuticas. Um dia, partindo deste livro, será necessário empreender uma prosopografia dos Capitães de Ílhavo. Imagino uma biografia colectiva, de um grupo ou de uma elite dotada de traços comuns, mas de percursos e idiossincrasias singulares. A ideia é dura, mas fecunda.
Quero manifestar a minha alegria por escrever o prefácio deste saboroso livro, agradecer o desafio à Dr.ª Ana Maria Lopes e o entusiasmo dos Amigos do Museu. E devo assinalar, em briosa defesa do nosso Museu, que neste livro os créditos fotográficos encontram-se judiciosamente indicados e as fontes de arquivo que o Museu tem o privilégio de preservar também são devidamente referidas. Aparelhar este navio e fazer esta viagem só augura novas campanhas e maiores empreendimentos. Afinal, o património é tão somente o presente das coisas passadas. Um assunto infinitamente humano.
Álvaro Garrido
Professor da Universidade de Coimbra. Consultor do Museu Marítimo de Ílhavo
Ílhavo, 8 de Agosto de 2017
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AML
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