quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Homens do Mar - Armindo Simões Ré - 26

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Capitão Armindo Simões Ré. 1950
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Sempre conheci as quatro filhas do Sr. Capitão Armindo Simões Ré, mas deram-me, por conselho, que a mais amante das memórias materiais e imateriais do Pai, seria a mais nova, a Arminda, e uma neta, a Fernanda, que reside em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, Açores.
Estabelecido o contacto telefónico, passou-me a ser mais fácil ir a Ponta Delgada (via virtual) do que, ali, à dita Avenida dos Capitães (onde sobram dois ou três), nº 83-85.
Para além disso, também percebemos, ambas, que o afecto que ela tivera por seu Avô, teria existido comigo, relativamente ao meu. Coisas da vida, no mundo dos afectos…
E tem vantagens, porque a Fernanda é de Física, trabalha no Instituto Português do Mar e da Atmosfera e pode anunciar-me as «trabuzanas», que costumam deslocar-se dos Açores para o Continente.
O Sr. Capitão Armindo Simões Ré nasceu em Ílhavo em 20 de Agosto de 1907. Filho de Alexandre Simões Ré (1880-1967), também oficial da Marinha Mercante, e de Maria Nunes Vidal, casou com a Senhora D. Arlinda da Silva Ré, de quem teve as quatro filhas – a Maria do Rosário, as gémeas Arlinda e Maria e a Arminda.
Possuía a cédula marítima 18175 passada pela capitania do porto de Aveiro, em 20 de Fevereiro de 1923. Já não teria pertencido àquela geração em que iam prematuramente para o mar, mas a filha mais velha contou-me que o pai se referia que, em tempo de crise, teria embarcado como ajudante de cozinheiro, num navio em que o Pai andava. Tudo muito vago, mas daí a justificação para ele ser uma pessoa muito hábil na cozinha.
Teria sido? Talvez… Nada de muito inédito.
Outra referência – através de correspondência que me foi facultada – apercebi-me que em 1928, andou embarcado no lugre Lídia, em serviço comercial, pertença do armador – José Joaquim Gouveia – Parceria Marítima Douro, Porto, entre 1918 e 1935.
Mais uma referência, também vaga – uma fotografia de um navio do comércio, MIRANDELLA, anotada no verso – recordação da entrada em Hamburgo, a 26 de Novembro de 1930.
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O velho lugre de madeira Argus, em 1934
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Bem, desde que tive acesso a fontes credíveis, o Sr. Armindo Ré fez as campanhas de 1933 a 38, no dito Argus velho. Este Argus, lugre de madeira, construído na Inglaterra em 1873 para a Parceria Geral de Pescarias, mais tarde, na firma Veloso, Pinheiro & Ca. Lda., da praça do Porto, passou a ser o Ana Maria. Foi o seu piloto, sob o comando de Francisco da Silva Paião (33, 34, 35 e 36) e Alexandre Simões Ré (37). Passou ao seu comando em 1938, levando como piloto, Alexandre Simões Ré. Inverteram-se os papéis.
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No velhinho lugre de madeira Argus, em 1936
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E passemos ao lugre com motor, de ferro, Creoula, de 1937, o actual NTM, que todos bem conhecemos.
Nas campanhas de 1939 e 40, sob o comando de João Pereira Ramalheira (o Vitorino), Armindo Ré foi o imediato e Alexandre Ré, o piloto.
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No Creoula, numa das viagens de 39 ou 40
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Na imagem anterior, junto à roda do leme, Sílvio Ramalheira seguido de Adolfo Paião; à esquerda, Armindo Ré.
Nas campanhas de 1941 a 43, seguiu-se o Argus, o novo/velho Argus, de ferro, construído na Holanda, em 1939, imortalizado pela obra tripla A Campanha do Argus de Alan Villiers. O trio da oficialidade manteve-se. Em equipa ganhadora não se mexe – diz-se.
Mas o lugre-patacho Gazela Primeiro meteu-se de permeio e Armindo Simões Ré tornou-se capitão deste mítico navio.
Quem não o sente? Está longe, mas foi nosso, e comandado por capitães todos ilhavenses, ílhavos de rija têmpera, que sempre sonharam com o mar longínquo.
Nas safras de 1944 a 48, inclusive, exerceu, pois, o cargo de seu capitão, com o Pai, Alexandre Simões Ré, como imediato.
O Gazela, em 1900, foi completamente reconstruído em Setúbal, no Estaleiro J. M. Mendes, passando a chamar-se Gazela Primeiro. Passou a ser o maior navio da Parceria Geral de Pescarias e, de todos os navios da empresa, o Gazela Primeiro talvez tenha sido o mais famoso.
Em 1969 imobilizou na Azinheira e em 1971 o navio foi vendido ao Philadelphia Museum e mais tarde entregue a um grupo de amigos, que o vão preservando em perfeitas condições de navegabilidade.
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O lugre-patacho Gazela Primeiro
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Estamos perante um caso de fidelidade a uma empresa, até à data (quase de filho e Pai), quando, provavelmente, perante um convite da empresa Brites, Vaz & Irmãos, Lda., da praça de Aveiro, o nosso capitão foi buscar o navio-motor, de ferro, Vaz, à Holanda, onde fora construído, para o começar a comandar na campanha de 1949. E por quantos anos? 1950, 51 …etc., o que, inicialmente pensara, dezasseis campanhas, com mais cinco, noutra ficha biográfica, durante 21 anos. Até 1969. Uma vida de apego e sempre de sobressalto, já que sobre as salsas ondas, de quando em vez, alterosas.
Segundo informação do Jornal de Pescador, de Abril, p. 49 e Maio, p. 9, de 1949, tivemos conhecimento que o Vaz entrara no Tejo, a 19 de Março, onde estivera, embandeirado em arco, pronto para receber individualidades e outras visitas. O Sr. Capitão Armindo Ré, então com 41 anos, um dos mais hábeis e conhecedores capitães da Marinha Mercante nacional, interpelado pela imprensa citada, mostrava-se encantado com o navio, pela modernidade, conforto, velocidade, capacidade e equipamentos. Foi o seu navio. De imediato, nos anos de 1949, 50 e 51, foi Alexandre Simões Ré, que terá terminado, e não era sem tempo, a sua carreira de mar.
Nas restantes viagens, os imediatos ou pilotos, normalmente, não foram de Ílhavo.
O Sr. Capitão Armindo, tendo tido, a bordo, uma infecção no polegar da mão esquerda, originando um panarício, ia-o escaldando em água fervente, até que um dia, a sangue-frio, como a infecção cavalgasse, ele próprio cortou a falangeta do dedo para evitar o pior. Ao chegar ao Gil Eannes, para um tratamento mais cuidado, informaram-no que, se assim não tivesse agido, teria estado sujeito a ter de lhe ser cortada a mão. Meu Deus, até arrepia a coragem e a ousadia com que assim agiu!...
Igualmente através do Jornal de Pescador, de Agosto de 1970, p.9, confirmámos a existência de uma condecoração, que tivemos o prazer de observar.
No Dia da Marinha, a 8 de Julho de 1970, na presença do Almirante Tenreiro, o Ministro da Marinha, Almirante Pereira Crespo, condecorou os capitães-pescadores Armindo Simões Ré, Manuel Machado dos Santos e José de Oliveira Rocha, todos de Ílhavo, com a medalha Vasco da Gama, de criação recente, galardão exclusivamente do mar e cuja atribuição se ligava a feitos ou serviços praticados.
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O navio-motor, de ferro, Vaz
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Foi no Vaz que levara a bordo da Gafanha para Lisboa, a sua esposa e a filhota Arminda e, mais tarde, a neta adorada, Fernanda. Em ambas, permanecem recordações inesquecíveis, que vim avivar com estes Homens do Mar – rememoram a novidade da viagem marítima, o gosto pela convivência a bordo com a tripulação, os seus albaióis (hoje, jardineiras), que as fazia parecer uns pequenos marinheiros a bordo, o conforto do salão de oficiais com as suas caminhas improvisadas com cadeiras e cobertores, o cheiro do pequeno-almoço, servido por moço de casaco branco…
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O Vaz, Cap. Armindo Ré e a neta Fernanda. 1964
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A neta Fernanda reviveu ainda a situação do quarto do avô-pai – assim o tratava –. Recordou três enormes gavetões encimados por uma cama (o seu camarote), seguido da casa de banho e do gabinete médico; sempre em frente e do mesmo lado, a escada para a ponte (algures por ali estavam pendurados uns binóculos e um chapéu de farda).
Recordou ainda que, ao fundo do camarote e a meia parede havia um armário e, à direita e em frente à mesa de refeições, estava uma maravilhosa secretária repleta de objectos interessantes – réguas e esquadros, canetas e lápis, tabelas com números, livros de registo, etc…, com um grande candeeiro e uma cadeira. Lembra-se de ter ficado lá a escrever, a desenhar e a coscuvilhar (aliás, não se recorda que alguma vez o avô a tivesse avisado ou impedido de ver ou mexer nas suas coisas) … Nesse aspecto, teria sido mais como um irmão ou amigo com quem a confiança era máxima.
Gostava muito de ouvir o meu avô-pai – relembra a Fernanda – a explicar coisas do navio, da pesca, do tempo… ele gostava de ensinar e tinha uma paciência infinita… Assim recorda o Avô-Pai, a Fernanda, de além-mar, dos Açores.
Depois de ter deixado o mar, Armindo Ré ficou por terra, entre o carinho da família, alguns bons anos, não sem deixar de ir diariamente à empresa que ultimamente servira, após o que ia encontrar-se com alguns colegas, junto ao Bispo. Manteve esta rotina até à doença não permitir.
Acamado no último ano por problemas respiratórios, achava que seria levado por um navio, para uma viagem bem longínqua, eterna. E assim foi em 19 de Setembro de 1994, com 87 anos.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência de familiares
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Ílhavo, 13 de Novembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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domingo, 11 de dezembro de 2016

Homens do Mar - Francisco dos Santos Càlão - 25

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Enquanto ia pesquisando e escrevendo sobre o currículo marítimo do Capitão João Ventura da Cruz, iam-se-me cruzando dados, e não por acaso, com o Capitão Francisco Calão (n. 1897). Não queria deixar de o referenciar, até porque me lembro nitidamente dele, na sua casa encostada à minha, na Costa Nova e, porque, como capitão da Empresa de Pesca de Aveiro, teve um papel fulcral na mudança da pesca do bacalhau à linha para o arrasto lateral. Filho de João Nunes da Barbeira e de Joana Correia, casou com a Senhora D. Maria de Oliveira Mendes, de quem teve três filhos – Maria, David Manuel e Francisco Manuel Mendes Calão, de quem bem me recordo.
Era possuidor da cédula marítima 9511 passada pela capitania do porto de Aveiro, em 22 de Fevereiro de 1911.
Há dias, na Costa Nova, em conversa com o Sr. Cap. Manuel Machado, nos seus vetustos, mas muito lúcidos 90 anos, que havia sido seu piloto, na viagem de 1951, no arrastão São Gonçalinho, veio à baila a sua recordação, bem como a de meu avô, que era seu irmão, de quem se lembrava bem.
Continuando… Ao Jornal do Pescador de Fevereiro de 1952, o capitão Chico testemunhou, à época, que comandava navios bacalhoeiros há 31 anos, tendo sido o lugre de pesca à linha, Águia, pertencente à Companhia Aveirense, o primeiro em que se iniciara, em 1921.
Águia? O nome já me passou pelas mãos… ou pelos olhos… pensara.
O lugre Águia, registado em Aveiro, foi construído na Gafanha da Nazaré, em 1919, por Manuel Maria Bolais Mónica, para a Companhia Aveirense de Navegação e Pesca. Era um lugre com três mastros, de madeira, proa de beque, popa de painel e um pavimento. Mais tarde, pelos anos 20, tendo mudado de dono, passou a ser o Silvina, que já não cheguei a conhecer, pois ardeu na viagem de 1941. A propósito, ver o capítulo O Silvina em Chamas, em Os Grandes Trabalhadores do Mar de Jorge Simões, última edição, p. 103 a 113.
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O lugre Águia. 1919
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Quem procura sempre alcança e nas buscas habituais, mas intensas, lá descobri que comandara, na safra de 1934, o Rosita, da praça do Porto. Era o ex-lugre, de madeira, Edith M. Cavell, construído em Melburne, propriedade de Copérnico da Conceição da Rocha, de Ílhavo. Participou nas campanhas de 1930 a 1934. Será que o Sr. Capitão Chico o comandara nestes quatro anos (1930, 31, 32 e 33)? Falta de dados seguros não nos permite concluir isso. Como ainda me lembro do Sr. Copérnico e sua Esposa em curtas estadias e visitas que faziam à família Rocha, no Alto Bandeira - irmão de Conceição e Rosa Rocha, tio de Maria da Conceição Rocha Mano e de José (Zeca) Mano.
Na campanha de 1935, no dia 12 de Julho, quando comandava o lugre Santa Joana (um dos quatro Santas que tivera pescado pela primeira vez, na Groenlândia, em 1931), fora abalroado por um navio de pesca norueguês, na Groenlândia, conforme protesto existente no Ciemar. Pilotava-o o Sr. Manuel Gonçalves Viana.
O Capitão Chico, como carinhosamente era tratado, fizera as safras de 1936 e de 37, no comando do lugre com motor Santa Izabel, igualmente pertencente à EPA. Voltou a ser seu piloto Manuel Gonçalves Viana.
O capitão Francisco Calão, na sua possante estatura de 1, 80 de altura, corpulento, foi um verdadeiro lobo-do-mar. À sua valentia e arrojo, aliava uma competência reconhecida e comprovada por todos os seus colegas e por tantos actos temerários durante a sua já longa vida de marinheiro. Era desejado por diversos armadores, mas, como a sua biografia marítima o comprovou, não gostava de saltar e, por isso, se manteve a servir a mesma casa – neste caso, a Empresa de Pesca de Aveiro, conhecida pela empresa do Sr. Egas Salgueiro ou até do Egas.
No ano de 1938, deu-se a grande viragem na sua vida e deixou a pesca à linha do bacalhau para se entregar, de alma e coração, ao comando do único, à data, arrastão clássico, o então recente Santa Joana, onde se conservou até 1946 (inclusive).
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Pesca de arrasto lateral
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Durante estes anos, foram seus imediatos, os ilhavenses Manuel Pereira da Bela (1938), António Trindade da Silva Paião (39), Manuel Gonçalves Viana (40), Jacob de Oliveira Mendes (1941 a 45) e João Laruncho de São Marcos (1946) e pilotos, José Nunes de Oliveira (38), Manuel Gonçalves Viana (1939), João Simões Ré (40), Manuel de Oliveira Júnior, de alcunha Bernardo (1942 e 43), José Pelicas Gonçalves Bilelo (46) e praticante de piloto, David Manuel Calão (46). O arrastão Santa Joana fez duas viagens nos anos de 1938, 1939, 1944, 1945 e 1946 e uma, nos anos sobrantes (40, 41, 42 e 43).
Na segunda viagem de 1946, o Capitão Chico ficou em terra para prestar assistência à construção do São Gonçalinho, mandado construir igualmente pela Empresa de Pesca de Aveiro, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
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A bordo, com a autoridade…
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Foi também ele que, em 1947, foi buscar a Inglaterra os caça-submarinos Killdary e Killmalcom que, depois de transformados em atuneiros com os nomes de Rio Vouga e Rio Águeda, viriam a aumentar e enriquecer a frota da referida empresa, com esta nova modalidade de pesca.
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Em 1948, estreou como capitão o citado arrastão São Gonçalinho, que comandou até 1953, com algumas interrupções, devido à doença que o traiu e contra a qual tanto lutou.
Foram seus imediatos, no São Gonçalinho, os ilhavenses José de Oliveira Rocha (48, 49, 50), José Simões Negócio (51), Manuel Gonçalves da Silva, de alcunha Paroleiro, (52, 53), e pilotos, Francisco Correia Marques (49 e 50), Manuel Marques Machado (51), e Juvenal Carlos Filipe Fernandes (52 e 53) da Gafanha da Nazaré.
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O arrastão São Gonçalinho
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O arrastão São Gonçalinho fez duas viagens nos anos de 1949, 50, 52 e 53 e uma, nos anos sobrantes (1948 e 51).
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À esquerda, José Rocha e Francisco Calão, a meio
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À saída do Tejo, a 27 de Fevereiro de 1952, no São Gonçalinho, mal diria o «nosso capitão» que a caminho dos bancos, por altura dos Açores, seria acometido por doença grave que exigiria uma arribada ao porto de Ponta Delgada e o seu regresso urgente, por avião, à Metrópole, para ser intervencionado. Terá sido o começo do fim, que se arrastou ainda por uns péssimos anos. Informada a empresa armadora, o navio seguiu viagem, logo que possível, sob o comando do Sr. António Augusto Marques, de alcunha, o Marcela.
A vida não parou, nunca pára, mas afrouxou, de algum modo. O estado físico e emocional deste grande lobo-do-mar fora abalado.
Mas, com a sua coragem e luta contra a doença, retomou o comando na 1 ª viagem de 1953 do «seu» arrastão.
O estado de saúde agravara-se e teve de ser internado num hospital, em St. Jonh´s. Segundo o jornal local de 10 de Agosto de 1953, de regresso da Terra Nova, onde deu entrada numa casa de saúde para lhe ser amputada uma perna, chegou a Ílhavo o nosso amigo e conterrâneo Francisco dos Santos Calão que ali demorou até lhe poder ser aplicado um aparelho ortopédico, que lhe permitisse andar regularmente.
Fora o Capitão Manuel Gonçalves da Silva, Paroleiro, que era o imediato, que lhe sucedera, na viagem.
Encerrara-se, deste modo, a vida marítima deste arrojado homem do mar, minado pela diabetes, embora só nos tivesse deixado, a 7 de Novembro de 1961, com 64 anos de idade e sobrecarregado pelo peso do sofrimento e da amargura.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência de familiar
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Ílhavo, 8 de Novembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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