domingo, 24 de julho de 2022

Praias lagunares da Costa Nova

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Será que a Costa Nova terá sempre algo a acrescentar?

Há muito que vimos sentindo a falta de uma praia lagunar, num contacto aberto, directo, solto, franco, doce e libertador, com as águas correntes lagunares. Além de nos ter sido afastada da vista, uma boa dezena de metros, a ria, ainda nos foi levado esse refrescar directo dos pés ou dos corpos, nas suas macias águas. Isto consegue-se na ilha, na dita «Ilha Branca» de formação recente (pelos anos 70), mas convenhamos que aí abicar, a quem não tem embarcação, não é fácil.

Desde que a nossa estância balnear se começou a afirmar como pousio de veraneantes, o Bico começou por ser a primeira praia lagunar de renome, aí, até aos anos 30 do século XX.

Quem sabe, hoje, o que foi o Bico?

Um espraiado de areia, mais ou menos defronte ao actual e degradado parque infantil, enamorado de sol, apaixonado de água e luz, onde as beldades chapinhavam em grupo, para se sentiram mais afoitas. Foi a praia lagunar do tempo dos meus pais, onde chegaram a ser montadas, algumas, não muitas, barraquitas riscadas, para aconchego dos grupos de jovens veraneantes e possível troca de vestimenta molhada.

A actividade piscatória na zona era muito razoável e as embarcações, ao longe, na ria, pontilhavam-na de marcas mates ou brilhantes, empasteladas no casario embaciado ou reluzente da Gafanha da Maluca.

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Postal da Costa Nova (Banhos no rio) – o Bico
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Ainda reconheci este Bico, já só com uns restos de areia e vegetação (tramagueiras), onde nos reuníamos, em tardes mais ventosas, para apanhar búzios e «concharinhas» para colares, para jogar as cartas, o prego, o encarreirar ou o ringue. O banho, mesmo para as mais afoitas, já era impossível, dado que ao caminhar pé ante pé, logo atolávamos num lodaçal que nos atemorizava.

No nosso tempo de menina e moça, usámos uma praia lagunar mais a norte (entre 1935 e 70), a que foi dado o pomposo nome de Biarritz (praia famosa do sul de França), frente a um casario que começaria a nascer e a desenvolver-se no redondo conhecido ainda hoje por esse nome.

A pé, de bicicleta ou de bateira, para aí nos dirigíamos em bandos, quais gaivinas ou gaivotas esvoaçantes.

Saboreávamos-lhe a areia branca, macia, em declive, o sol quente, luminoso e acariciador, bem como a água corrente, límpida, agitada ou calma, consoante o vento ou a ausência dele.

A ria era o palco de um sem número de malabarismos – mergulhos corridos, saltados, pinoteados, braçadas em diversos estilos (bruços, crawl, mariposa). Mas, para deleite mesmo ao sabor da corrente, fruindo a quentura do sol, nada como boiar directamente na água ou em colchões ou bóias insufláveis.

Pelos anos 50, os vários banheiros da praia (Sr. Portugal, Abreu e Maiaia) ainda dispunham na faixa de areal, as suas barracas riscadas e coloridas, onde, mediante aluguer, nos vestíamos, despíamos e abrigávamos da canícula, vento ou nevoeiro em excesso.

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Na Biarritz, em 1963
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E, por aqui, foram despontando os primeiros amores que, ainda hoje, deixaram as suas marcas.

Logo a seguir ao aparecimento da Biarritz, começou a moda de San Sebastian (praia do norte de Espanha), uns trezentos metros mais a norte, junto à antiga seca de Lavadores, que não chegou a gozar do brilho do primeiro espaço.

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Na enseada, ao fundo, avista-se San Sebastian.1967
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A rapaziada, que fruía de belos mergulhos de dunas altas para água límpida e profunda, era mais a clientela de San Sebastian. Ficava, mais ou menos antes da actual ponte da Barra, frente à actual moradia do arquitecto Cravo.

Foram estas as praias lagunares da Costa Nova, até ao grande desfalque, a que foi submetida a ria, pelos princípios de setenta.

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Ílhavo , 24 de Julho de 2022

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Ana Maria Lopes

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sábado, 2 de julho de 2022

Linguajares d´Íbalho

À laia de explicação...

O meu “linguajar dos ílhavos” tem andado meio engadanhado!  Bai ò no bai?

Nada de especial, mas gostaria de deixar o meu contributo, para um assunto que sempre me apaixonou.

Comecei por, no ano de 1967, ter feito um inquérito linguístico, na Gafanha da Nazaré, para um trabalho universitário. A grafia usada era, por imposição do professor, o alfabeto fonético, que, então, estava em vigor para tal fim.

No final dos anos 60, para a minha tese de licenciatura, “O Vocabulário Marítimo Português e o problema dos mediterraneísmos”, fixei um glossário marítimo, também grafado em alfabeto fonético, com cerca de 830 entradas.

O bichinho ficou-me…

Ao longo da vida quando enveredei pela escrita de alguns livros, quantos glossários não fiz, bem como de livros de pessoas amigas, que achavam que eu tinha muita paciência para construir glossários.

Passados uns anos, estando na Escola Preparatória de Ílhavo, a leccionar a disciplina de Português e a orientar estágio na Profissionalização em Exercício, em Maio de 1985, o 1º grupo levou por diante um levantamento de regionalismos. A minha colega e amiga Isabel Cachim Madaíl deu-nos uma grande ajuda, pondo-nos à disposição um levantamento e recolha, que tinha feito, por gosto próprio, durante vários anos.

Mais um intervalo…

Um belo dia, veio-me à mão, numa livraria, o “Dicionário de Falares das Beiras” de Vítor Fernando Barros, editado em 2010, que comprei e li com afinco. Não era bem o que eu esperava, mas lá fui tirando algumas ilacções.

O gosto pelo linguajar dos “ílhavos” ia-me acicatando, devido ao contacto escrito que com ele ia tendo, através dos diversos textos que Senos da Fonseca, ia, com alguma graça e expressão, escrevinhando. E o primeiro foi «O Labareda», editado em 2007, tendo eu dado uma ajudinha nas suas 356 notas de rodapé, que tinham a ver com o linguajar local.

Mais uns anos de intervalo, quando, por 2017, comecei a registar um glossário, com um critério pré-definido, sendo as minhas fontes de consulta, as seguintes:

. Os meus próprios conhecimentos como “ilhava”, que sou, e os conhecimentos resultantes dos vários glossários em que já tinha colaborado.

. “Falares de Ílhavo”, de Manuel Machado da Graça, cuja compilação se pressupõe ter sido feita no final dos anos 30, início dos anos 40 do século passado, com três diferentes originais, numa edição de João Machado da Graça, de 50 exemplares, em 2001.

. “Regionalismos de Ílhavo” de Isabel Maria Cachim, Madaíl, dactilografados em Maio de 1985, mais tarde publicados no jornal “O Ilhavense”, esquartejados por letras, em alguns números.

 

.  “Costumes e Gente de Ílhavo” de Diniz Gomes, que, segundo o autor, foi por ele escrito sem preocupações de natureza literária em linguagem a todos acessível, com dizeres familiares e correntes do vocabulário popular, tanto do nosso Ílhavo, a que sempre recorreu, por vício de origem ou paixão bairrista. Em dois volumes, foi o primeiro editado em 1941 e o segundo, em 1947. Em aulas quinzenais de leitura, na disciplina de Português, usei com frequência, alguns contos destes, para despertar nos alunos o uso de alguns termos regionais, usados em contexto normal. A saber… “Mulheres de Ílhavo”, “A Bateira do Catraló”, “Homens de Ílhavo” e outros. Gostava, mas não lhes dava o valor que dou agora, em que os li e reli, em busca do tradicional e puro, mais relevantes.

 

.  Além de “O Labareda”, 2007, que já citei, de Senos da Fonseca, serviram-me de base de consulta, do mesmo autor, os livros “Marés” de 2008, “Costa Nova – 200 anos de História e Tradição –, 2009, pp. 166 a 168, “A Barca da Passagem na Maluca”, 2010, Postais, in “Os novos Maias na Costa Nova”, 2014, “O Naufrágio do Senhor dos Aflitos”, 2018 e “Saga Maior”, do mesmo ano. O autor, sem dúvida, tem um grande conhecimento destes linguajares e usa-os com grande facilidade em contextos brejeiros e não só, como sentia ser assim, à época – há cerca de 100 anos… Ao fazê-lo, talvez se sinta o rapazote que foi convivendo com gente mais velha, em vielas, carris e nas areias da Costa Nova, assistindo ao burburinho e movimento das artes de arrastar.

 

. “Contos da Terra dos Ílhavos” de Licínio Amador, 2010.

.  “Linguajar dos ilhabotos”, de Manuel Teles, 2017, que, gentilmente, me cedeu, a meu pedido – umas tantas páginas de palavras e expressões, que aqui incluo, identificadas como todas as outras.

.  “Meu crido home”, carta recebida no bacalhau e encontrada dentro de um velho baú, corria o ano de 1930. Organizada e preparada por Maria José Cachim. Apesar de bastante conhecida, não deixo de a transcrever mais adiante. É uma pérola do linguajar ilhavense.

A história ainda não acabou… Numa actividade literária na Biblioteca de Ílhavo, por Abril de 2018, encontrei-me com Domingos Cardoso, que me deu a novidade que estava mesmo a ultimar um grande trabalho de recolha de linguajares, expressões, frases, dizeres, provérbios, que daria ao prelo, por Junho do mesmo ano, com o título de “Palabras co Bento no Leba”.

Perante a notícia, que recebi com agrado, no dia seguinte, encaixotei o “meu” material dactilografado e manuscrito e parti para nova “emposta”.

Até que um belo dia do passado Outubro, Senos da Fonseca me pediu a brochura de Manuel da Graça, que não encontrava, dando-me conta de um trabalho que trazia entre mãos, mais para distrair, “O linguajar dos ilhos”, que constava de uns quantos textos dele, originais ou refeitos, bem recheados do nosso antigo linguajar, de que, no final, faria um levantamento de palavras e expressões locais.

Certo. Trocámos umas impressões sobre o trabalho que eu tinha posto de lado e ele incentivou-me a acabá-lo, se isso me dava prazer, em tempos ainda pandémicos. E até deu. Dentro dos parâmetros que havia definido, já está quase arrumado. Não terei, possivelmente, interesse, em publicá-lo, mas, para uso interno ou para meia dúzia de amigos interessados, será sempre mais um.

Fevereiro de 2022

Ana Maria Lopes