E continua a relatar Costa Júnior:
(…)
Com a desilusão
sofrida entrara o desânimo. Havia, entre os tripulantes, quem entendesse que
não era necessário lutar mais, pois tudo lhes parecia inútil. Aqui e além
avizinhavam-se prenúncios de revolta entre os náufragos, sem forças para
suportar o peso enorme da sua tragédia. O capitão resolve então intervir e …
mentir.
– É uma cobardia deixar de lutar pelo facto do iate
não nos ter recolhido. Nós estamos apenas afastados 36 milhas da ilha do Faial,
o vento é de feição, o mar plano, e se navegarmos como temos navegado até aqui,
amanhã estaremos salvos…
A mentira –
piedosa mentira essa – deu o melhor resultado. Os homens tomaram nova coragem,
reanimaram-se, e perguntaram ao piloto se era certo estarem tão perto de terra,
ao que o piloto
(João Maria da Madalena) respondeu:
– Pelo meu cálculo
estamos a menos de 30 milhas do Faial.
A mentira
surtira o efeito desejado, mas o pior seria no dia seguinte, pois em boa
verdade a ilha do Faial estava afastada ainda, pelo menos 80 milhas. Que nova
mentira seria possível inventar?
Ficha
do Grémio do piloto
Entretanto,
o tempo não pactuara com a mentira e tornara-se agreste e enevoado. Não se
vendo o horizonte, os homens, desalentados, começaram a desconfiar do apelo do
capitão, que, entretanto, fora interpelado.
(…)
– Navegámos toda a
noite, veio o dia e continuamos a navegar, e a ilha não aparece …
Ao que o capitão
respondia, sem entrar em grandes pormenores:
– Aparece sim …
Rema sempre, ajuda a vela, que depressa chegaremos …
No dia 9, às 5
horas da manhã, clareou o horizonte repentinamente, e com grande alegria dos
náufragos e maior espanto de muitos deles que já descriam da salvação,
avistavam-se as ilhas Graciosa, Faial e Pico, tão claras que pareciam pintadas
num quadro.
– «Terra à vista!
Terra à vista! Estamos salvos!» – gritavam todos a um tempo. No meio da maior
alegria foi o barco do capitão acostado por todos os outros, indo os seus
tripulantes um a um, debruçados na borda, abraçar o capitão, tendo havido quem
dissesse:
– Se nos tem dito
a verdade não teríamos coragem para sofrer tanto e teríamos morrido todos …
-
Mas, depois de ligeiros momentos de alegria, reviravolta nas emoções. Um calor intenso e as gargantas secas que nem fogo estaladiço! Eis que capturaram uma tartaruga, o que, por vezes, acontecia. Rapidamente degolada, largou o sangue para um sueste, aparado por um pescador. Tendo-o bebido de um trago, caiu inanimado. Só água salgada pela cabeça lhe revitalizou os sentidos.
(…)
O dia estava
escaldante, o vento entrara em calmaria e ninguém tinha forças para remar. A
terra estava ali, à vista de todos, mas entre aqueles 29 homens nem um só
acreditava na salvação. Nenhum deles podia já, vencidos pela fome e pela sede,
fazer o mais pequeno esforço …
Os dóris, a
remos ou à vela, avançavam a passo de formiga, impulsionados por aquelas
vontades de gigantes, e às 2 horas, após titânicos, o barco do capitão
conseguiu dobrar a ponta dos Capelinhos, acompanhado por mais três. Nos
restantes, os tripulantes completamente exaustos, não tinham forças para remar,
certos que morriam à vista de terra sem a poder alcançar.
O capitão
procurava inutilmente um lugar para desembarcar, difícil de encontrar no
negrume da noite. Lá avistaram os náufragos o farol de um barco fundeado, e
para ali se dirigiram todos. Era a canoa dum tripulante com o seu proprietário
a bordo, e antes mesmo de lhe pedirem qualquer indicação ou auxílio, os pobres
náufragos só puderam pronunciar uma palavra: Água! … Água!
(…)
Tendo-os
o proprietário refrescado imediatamente, conduziu-os a casa, perto de um
pequeno porto. A família do honrado pescador açoriano ajudou os náufragos do Gamo a sair, conduzindo-os a um poço,
onde beberam até fartar.
(…)
Era uma hora da
madrugada quando o capitão João Agualusa, amparado pelo caritativo pescador,
foi até à da cidade da Horta onde vivia a autoridade marítima, participar-lhe o
ocorrido e pedir-lhe auxílio para o salvamento dos barcos que se encontravam ao
largo – sem que os seus tripulantes tivessem forças para se aproximar. Uma hora
depois, saía da doca a lancha a motor Elite,
em serviço na Capitania do Porto, fazendo rumo à ponta dos Capelinhos. Foi
encontrado um dóri, que seguia rebocado por um barco de pesca que o socorrera,
e mesmo sem acostar, o Patrão Mor atirou-lhes alguns pães e um garrafão de
água; a viagem prosseguiu para rodear a ilha, e às cinco horas outro dóri foi
encontrado, também já a reboque dum pesqueiro. Aprovisionado de água e pão,
continuou a busca dos restantes náufragos que durou toda a madrugada e toda a
manhã até às 13 horas, sem maior resultado, cruzando o mar em todas as
direcções.
(…)
Em
momento de tristeza, todos imaginavam os seus camaradas perdidos para sempre.
Mas, entretanto ao passar a Elite junto ao porto de Castelo
Branco, um homem gesticulava com desespero e ansiedade. Aproximaram-se e
ouviram:
– Os náufragos que
faltam já estão todos em terra. O dóri do senhor piloto (João Maria da Madalena) arribou na costa norte, na praia do
Almoxarife, e foi um automóvel buscá-los…
Piloto do Gamo
Satisfeitos com
a notícia, os passageiros da lancha da capitania continuaram em direcção à
doca, onde chegaram perto das 16 horas. No cais o bravo capitão João Fernandes
Mano Agualusa era aguardado pelo governador civil, pelo director do Hospital da
Horta, pelo director da Alfândega e outras autoridades e muito povo, cada um à
porfia querendo saudar e homenagear o heróico comandante do Gamo que, comovido e envergonhado, não
sabendo o que tinha feito para merecer aquele acolhimento carinhoso, chorava,
as lágrimas caindo-lhe em grossas bagas pela cara abaixo. Quem, no momento de
perigo defendera a vida de todos, e se portara como um valente; quem praticara
feitos dignos dos velhos marinheiros portugueses que esmaltam de glória páginas
antigas da história, chorava de comoção, envergonhado desse momento final de
fraqueza. Disse depois: parecia-lhe que chorava de alegria por ver os seus
homens salvos …
Passados dois
dias foi encontrado o oitavo dóri pela lancha baleeira Amaral, que o trouxe a reboque para a doca do porto da Horta.
Salvaram-se 34 dos 39 náufragos que tripulavam o bacalhoeiro Gamo, tendo aportado ao Faial em 8
pequenos dóris, de 13 pés de comprido por 5 de largo, navegando esses botes,
quase sempre sem comer nem beber, 470 milhas à vela, a remo e a correr com as
vagas.
-
E
assim Costa Júnior acabou o relato,
que respiguei, provavelmente baseado, na narrativa escrita na primeira pessoa,
por Capitão e Piloto do Gamo, a
bordo do lugre Sílvia, aos quatro
dias do mês de Julho de 1924.
Ficha
do Grémio – Cedência do MMI e foto do piloto, do neto, João da Madalena
Oliveira
Costa
Nova, 22 de Maio de 2013
Ana Maria Lopes
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