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No
Inverno de 1991, faziam-se obras de restauro na casa da Costa-Nova e,
sobretudo, era o fim das tradicionais recoletas,
que, devolutas há uns anos, já só se degradavam com o correr dos anos. Da época
do palheiro original (anos 30), não tinham condições mínimas de habitabilidade.
Com
o previsto aumento da família, também convinha pensar num espaço traseiro de
lazer para os pequenotes, que, entretanto, chegariam.
No
meio daquele mobiliário característico das recoletas
da Costa-Nova, salvaram-se umas camas e lavatórios de ferro, bem bonitos.
E
da parede? – uma fotografia de um elegante e esbelto lugre, em dia de
bota-abaixo…Mesmo sem identificar o navio à primeira, mais valia, desmontar o
quadro, limpar a fotografia amarelecida pelo tempo, e guardá-la com carinho. Um
lugre a decorar a parede de uma recoleta
que pertencera ao Avô Pisco, só poderia ter a ver com a vida dele: - ou navio
da empresa, ou navio que teria comandado. Conclui, de facto, que capitaneara o Golfinho de
A
vida do meu Avô, que fizera mais de quarenta anos de mar, despertava então o
meu interesse para o modo singular e estranho da vida destas gentes que
labutaram na faina maior: os perigos das viagens naquele tempo, feitas só à
vela; as condições sofridas e precárias daquele tipo de vida, por vezes
certamente angustiantes pelas poucas ou nenhumas notícias da família; “as ralações que a minha Avó sofrera com
coisas que nunca chegaram a acontecer”, como ela me dizia.
Mais:
– a tal fotografia também se revelaria de valor museológico, aquando da aturada
e entusiástica pesquisa, ao tempo, da preparação da exposição de fotografia A Frota Bacalhoeira, durante Maio/
Junho de 1999.
O
saudoso Francisco Marques e eu parecíamos dois putos radiantes a olhar os cromos, quando tínhamos a sorte de
encontrar um navio (em fotografia), que ainda não constasse das nossas
aquisições.
Não é que a amarelecida relíquia encontrada na recoleta da Costa-Nova, era, nada mais, nada menos, que o lugre Golphinho, da praça da Figueira da Foz?
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Tivera uma existência muito efémera, mas digna de se recordar.
Segundo
consta do Catálogo da referida exposição, o Golfinho foi construído por José Maria Bolais Mónica, nos
estaleiros da Murraceira, na Figueira da Foz, para a Empresa de Pesca da Foz do
Mondego. Fora, então, considerado o melhor e maior navio do seu tempo.
O seu bota-abaixo tivera lugar a 3 de Março de 1912; porém, quando começou a deslizar, saiu da carreira e enterrou o cadaste no lodo. Só depois de porfiados esforços e aproveitando outras marés vivas, foi possível pô-lo a flutuar. A terceira viagem, tendo saído de Lisboa a 6 de Maio de 1914, fora de um adeus sem fim…
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Londres, 30 de Maio de 1914. Um radiograma do paquete Corinthian dizia que o Corinthian teria salvo o capitão e a tripulação em número de 45 homens, pertencentes ao navio de pesca Golfish da Figueira da Foz. O Golfish bateu contra uma montanha de gelo devido ao denso nevoeiro que caiu às 3 horas da madrugada, sendo abandonado em chamas.
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Não
fora outra coincidência, e nada mais saberia, para lá do que ouvira do meu Avô.
Em meados dos anos 80, fizeram-me chegar às mãos cópia do Boletim Mensal da Liga dos Oficiais de Marinha Mercante, ano I, nº 5 de Agosto, de 1914, intitulada Naufrágio do “Golfinho” que expunha o Protesto e relatório do naufrágio e abandono do lugre português “Golphinho”, feitos a bordo do vapor inglez “Corinthian”, de cinco páginas.
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É evidente que não vou editar todo o relato, mas apenas respigar o seu texto, recuperando algumas passagens que me parecem dignas de nota, respeitando a ortografia da época.
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Por amável deferência de nosso presado
consocio Ex.mo Sr. Manoel Simões da Barbeira publicamos o singelo e bem
elaborado relatório de mar relativo á perda do seu belo navio que… abalroou com
um iceberg na noite de 29 de Maio p.p. O “Golphinho” que pertencia á praça da
Figueira era propriedade da Sociedade de Pesca da Foz do Mondego e era talvez o
melhor navio português que ia á Terra Nova.
O capitão Barbeira e piloto sr. Arthur
Oliveira da Velha são oficiais distintos da especialidade a que se dedicam e
foi devido á sua muita perícia que, habilmente obstaram a que o navio
sossobrásse, dando tempo a que conseguissem passar para bordo do “Corinthian”,
que tomou todos os tripulantes, entre os quais José Pedro Martins em estado
grave e que infelizmente foi morrer ao hospital de Havre.
Só quem anda nesta vida do mar, vida de
constante combate contra inimigos traiçoeiros e poderosos, pode avaliar o que
seja pelo meio duma noite escura sentir de repente o navio abalroar contra um
obstáculo invisível e inesperado, ouvir o ranger do cavername, o esfacelar do
costado, o estalar dos mastros partindo-se e a derrocada dos mastaréus, das
enxárcias, dos cadernais, dos estais, por entre o bater de pano, os gemidos dos
feridos e os gritos de todos! Quanto animo e sangue frio precisa então ter o
capitão para, pensando por todos, os serenar e lhes salvar as vidas em perigo!
Aí então sobressai a grandesa da sua missão e a nobresa desta vida feita toda
de dedicações obscuras e de brilhantíssimos feitos quasi sempre ignorados!
Foi de noite e com nevoeiro que o
“Golphinho” bateu na ilha de gelo que por ali vinha no seu deslisar funesto,
sem que nada a denunciasse. (…)
Serenados os animos o capitão, que
modestamente no seu relatório nunca fala em si, fez tudo por salvar o navio,
mas reconhecida a impossibilidade pelo péssimo estado em que ficou após o
abalroamento, tratou então de salvar as vidas confiadas à sua guarda.
Felizmente quando ia tomar a resolução de mandar abandonar o navio entregando-se e aos outros a uma sorte incerta em pequenos botes, apareceu o paquete inglez “Corinthian” da Allan Line, em viagem de Montreal para o Havre, que prontamente se aproximou e os recebeu a bordo. O seu Comandante fora de uma bondade extrema, deixando os náufragos no porto de Havre e d’aí vieram num paquete para Lisboa.
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Era assim a vida do mar em 1914.
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Mas as coincidências não ficam por aqui. Entre este naufrágio, suas causas e condições de salvamento, há muitas semelhanças com o desastre do famoso e mítico Titanic.
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Ílhavo, 8 de Janeiro de 2021
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Ana Maria Lopes
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