A botar a marinha a sal
- Ai marinha, és mãe e rainha: crias e divides-te em ordens...
- Armazenas, na tua comedoria, todo o alimento de que teu
forte e extenso corpo necessita para a paridura do sal – a água da laguna.
Renovas-te de águas «salinas» a
cada maré viva, tanto em lua nova
como em lua cheia.
Ordenas ao mandamento evaporador, a filtragem das impurezas. Dele escorrerá
somente o líquido salgado, depurado, tanto quanto necessário, para o teu ventre
– os cristalizadores. Aí é onde darás
à luz, sob sol intenso e influência de férteis ventos, os brancos cristais que
encherão canastras e barcos, não sem
antes embelezarem a tua eira, com
alvos e fartos «seios» de fertilidade.
-
O dia da botadela está a chegar...
-
- E eis que aos cuidados do homem
marnoto, te entregas e te preparas
para o grande momento...
Areiam-te as praias com fina camada, esburacam-te as travessas de lama dura, abrem-te e
fecham-te portais, passagens de
águas...
E é belo
ver essas águas correrem, escorrerem, dançando por entre os teus regos,
refegos, canejas e bombinhas, tubagens – belo engenho do homem marnoto.
E é admirável ver esses homens
que correm de um lado para o outro, em grande azáfama, conduzindo, controlando,
vigiando essa enxurrada de águas férteis, de sal líquido, que vai invadindo as peças do teu reticulado corpo, ousado,
mas bem pensado.
E eis que te botam a sal!
É dia de festa, é o dia da botadela na marinha –
vinde convidados para a mesa!
Primeiro, são homens que areiam, alisam, com pá do sal esses parcéis, qual manto que irá suportar as investidas das águas, de
sais impregnadas, e o vaivém dos rodos,
na rapação do primeiro sal.
São essas praias
areadas que protegem os brancos cristais das escuras lamas, suas camas, nas
primeiras coçadelas – em breve
ganharão camisa...
Depois, é chegada a hora de abrir os portais à safra, à
produção do oiro branco que irá alimentar as bocas das gentes que ali trabalham
e dela dependem.
E é nesse momento que se valoriza um homem de saber feito,
afeito ao árduo e inteligente trabalho de dirigir, conduzir e tomar o pulso da marinha, sua rainha.
-
-
De fenda em fenda, com precisão de cirurgião, o marnoto
«sangra» a marinha, fá-la escorrer,
banhar-se nas águas impregnadas de sais, conduzindo-as pelo emaranhado de encanas – ora abre, ora fecha, com a pá do tabuleiro, esses portais, até a botar a sal.
O marnoto é homem de arte, a da salinagem.
Torna-se, assim, ágil nos movimentos e rápido nas decisões. Executa com
precisão tarefas das quais dependerá o bom resultado da safra.
E é vê-lo correr por cima de barachas e machos.
Habilmente abre tabuleiros, mandamentos, arria águas e
deixa-as sabiamente serpentear pela marinha.
Saem da ria para a comedoria, conduzidas,
pelo natural desnível, por uma encruzilhada de tubagens, de regos e de canejas, por aberturas feitas a
preceito. Percorrem o mandamento e
nas andainas, abastecem os alimentadores e cristalizadores, chegando
na quantidade exacta, com a densidade certa.
E eis que as águas concentradas
penetram, encharcam, atravessam e alastram pelos meios areados, descendo da marinha nova para a marinha velha.
É dia de alegria! Ao fim de um
árduo trabalho de preparação, a marinha
enche-se de encanto e de vida, torna-se fértil, tal como uma mãe que prepara o
seu rebento.
Chegou a hora de os convivas confraternizarem e comemorarem:
é a festa, é a botadela!
São família, são amigos, são vizinhos, são moços, são marnotos…ali estão todos os que sentem o sabor do sal.
E é nesta mesa, no malhadal,
posta à sombra do palheiro, que
decorre a festa de comes e bebes. É neste momento que esta gente repousa,
depois da exaustão, mas não por muito tempo...
E é o palheiro a casa protectora do marnoto e seus moços, tanto em dias de forte canícula como de nortada. E, todo ele é humilde – de chão térreo, outrora coberto a bajunça e de madeira construído.
E é o palheiro a casa protectora do marnoto e seus moços, tanto em dias de forte canícula como de nortada. E, todo ele é humilde – de chão térreo, outrora coberto a bajunça e de madeira construído.
Mas foi, e sempre será, o porto de abrigo para homens e
alfaias – este, vaidoso, até nome tem! – BRANCA CARABELA.
-
Nota – Para esclarecimento de
linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
--
Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
-
09 | 07 | 2013
-
Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
-
Sem comentários:
Enviar um comentário