domingo, 3 de novembro de 2013

Uma janela para o sal - VII

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A botar a marinha a sal
- Ai marinha, és mãe e rainha: crias e divides-te em ordens...
 
- Armazenas, na tua comedoria, todo o alimento de que teu forte e extenso corpo necessita para a paridura do sal a água da laguna.
Renovas-te de águas «salinas» a cada maré viva, tanto em lua nova como em lua cheia.
Ordenas ao mandamento evaporador, a filtragem das impurezas. Dele escorrerá somente o líquido salgado, depurado, tanto quanto necessário, para o teu ventre – os cristalizadores. Aí é onde darás à luz, sob sol intenso e influência de férteis ventos, os brancos cristais que encherão canastras e barcos, não sem antes embelezarem a tua eira, com alvos e fartos «seios» de fertilidade.
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O dia da botadela está a chegar...
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- E eis que aos cuidados do homem marnoto, te entregas e te preparas para o grande momento...
Areiam-te as praias com fina camada, esburacam-te as travessas de lama dura, abrem-te e fecham-te portais, passagens de águas...
E é belo ver essas águas correrem, escorrerem, dançando por entre os teus regos, refegos, canejas e bombinhas, tubagens belo engenho do homem marnoto.
E é admirável ver esses homens que correm de um lado para o outro, em grande azáfama, conduzindo, controlando, vigiando essa enxurrada de águas férteis, de sal líquido, que vai invadindo as peças do teu reticulado corpo, ousado, mas bem pensado.

E eis que te botam a sal!
É dia de festa, é o dia da botadela na marinha – vinde convidados para a mesa!
 

Primeiro, são homens que areiam, alisam, com pá do sal esses parcéis, qual manto que irá suportar as investidas das águas, de sais impregnadas, e o vaivém dos rodos, na rapação do primeiro sal.
São essas praias areadas que protegem os brancos cristais das escuras lamas, suas camas, nas primeiras coçadelas – em breve ganharão camisa...

 
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Depois, é chegada a hora de abrir os portais à safra, à produção do oiro branco que irá alimentar as bocas das gentes que ali trabalham e dela dependem.
E é nesse momento que se valoriza um homem de saber feito, afeito ao árduo e inteligente trabalho de dirigir, conduzir e tomar o pulso da marinha, sua rainha.
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 Delicada operação, esta!
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De fenda em fenda, com precisão de cirurgião, o marnoto «sangra» a marinha, fá-la escorrer, banhar-se nas águas impregnadas de sais, conduzindo-as pelo emaranhado de encanas – ora abre, ora fecha, com a pá do tabuleiro, esses portais, até a botar a sal.
 
 
O marnoto é homem de arte, a da salinagem. Torna-se, assim, ágil nos movimentos e rápido nas decisões. Executa com precisão tarefas das quais dependerá o bom resultado da safra.
E é vê-lo correr por cima de barachas e machos.
Habilmente abre tabuleiros, mandamentos, arria águas e deixa-as sabiamente serpentear pela marinha. Saem da ria para a comedoria, conduzidas, pelo natural desnível, por uma encruzilhada de tubagens, de regos e de canejas, por aberturas feitas a preceito. Percorrem o mandamento e nas andainas, abastecem os alimentadores e cristalizadores, chegando na quantidade exacta, com a densidade certa.
E eis que as águas concentradas penetram, encharcam, atravessam e alastram pelos meios areados, descendo da marinha nova para a marinha velha.
É dia de alegria! Ao fim de um árduo trabalho de preparação, a marinha enche-se de encanto e de vida, torna-se fértil, tal como uma mãe que prepara o seu rebento.



 
Chegou a hora de os convivas confraternizarem e comemorarem: é a festa, é a botadela!
São família, são amigos, são vizinhos, são moços, são marnotos…ali estão todos os que sentem o sabor do sal.
E é nesta mesa, no malhadal, posta à sombra do palheiro, que decorre a festa de comes e bebes. É neste momento que esta gente repousa, depois da exaustão, mas não por muito tempo...
E é o palheiro a casa protectora do marnoto e seus moços, tanto em dias de forte canícula como de nortada. E, todo ele é humilde – de chão térreo, outrora coberto a bajunça e de madeira construído.
Mas foi, e sempre será, o porto de abrigo para homens e alfaias – este, vaidoso, até nome tem! – BRANCA CARABELA.
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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09 | 07 | 2013
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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