Cap. Manuel da Silva
Entre
as pessoas com quem me socializo, ia perguntando quem era ou se se lembravam de
um capitão Manuel da Silva. Acrescentava eu – que tinha morado na chamada
Avenida dos Capitães, em casa que havia fixado bem, que tinha trabalhado em
Testa & Cunhas e que tinha perecido, relativamente novo, num acidente de
motorizada. Há meses que trazia esta, fisgada,
mas também parece que algo me entorpecia para ir bater à porta, a ver se havia
descendentes, ou, se porventura, a casa tinha sido vendida.
E
assim ia eu, passando vezes e vezes na Avenida, sem parar.
Mas,
há sempre um mas… um dia.
Em
dia de almoço do XIX Capítulo da Confraria Gastronómica do Bacalhau, dia 20 de
Janeiro, parei o carro junto ao Hotel de Ílhavo. Ali, tive um «baque», atravessei a rua, toquei no nº 30 e eis que fui
atendida por uma senhora simpática, agradável, muito arranjada e equilibrada
pela sua bengalinha. Não nos conhecendo de lado nenhum, exclamei – gente de paz!
Apresentei-me ou melhor, expliquei ao que vinha e sabendo tantas informações
acertadas, só podia ser gente de paz.
Chama-se
Ermelinda Moreira, de vetustos, mas conservados 92 anos e era nora do Capitão
Manuel da Silva, viúva do filho mais velho, Manuel. A meu pedido cedeu-me o nº
de telefone fixo e fiquei de aparecer uma tarde próxima, com pré-aviso, para
que calmamente me contasse tudo quanto sabia do sogro, de quem eu, há tanto
tempo, procurava descendentes e informações. Umas, eu tinha-as como certas. E eram.
Por pouco, por muito pouco, ou teria sido por muito, «ganhei o dia». O
«bacalhau» estava do meu lado.
Decorridos
uns dias, poucos, e depois de me informar o máximo possível, em jornais de
outros tempos e arquivos marítimos, lá marquei a tardada. Cordialmente recebida
e com um chazinho de permeio, para descanso e afago da garganta, palrámos
quanto sabíamos, ajudadas por um álbum fotográfico familiar de fotos muito
pequeninas, próprias da época, mas sempre elucidativas.
Acerca
da morte do senhor, estávamos bem lembradas de que tinha sido por acidente
fatal, num daqueles malditos «cuciolos» (motorizadas), assim lhes chamavam ao
tempo.
Consultadas
as listas de tripulação, deixara o navio-motor
Inácio Cunha na safra de 1960 e
já não aparecia inscrito na tripulação de 1961. Tinha sido sem dó nem piedade.
Simpaticamente,
gabei-lhe a decoração da sua sala, com muita prataria, num misto do nobre metal e peças da Vista Alegre. Sem
dúvida, estávamos em Ílhavo. E curioso, ao perguntar-lhe por fotos
identificadoras do sogro, respondeu-me – não será fácil. Mas logo me ripostou:
olhe, tem ali, um prato do meu sogro, com o seu retrato pintado, por um irmão
da avó, um tio Carlos, que tinha negócios de porcelana, no Brasil. Estávamos
perante um quadro curioso, na nossa terra, em que dois dos destinos frequentes
dos jovens de Ílhavo, nessa época, eram a fábrica da Vista Alegre ou o mar, ou
ambos, na sequência um do outro.
Pessoa
do mar com quem muito convivi, em determinada altura da vida, lembrava-me, frequentemente,
dito curioso da mãe – Ó filho, não vais
tirar o curso de piloto? Então queres ir para a fábrica da VA e com tantos anos…,
ainda andares a pintar asas a penicos? Vai para o mar! E o dito filho assim
fez.
Manuel
da Silva, de alcunha Lavado, nasceu
em Ílhavo a 21 de Agosto de 1898, na Chousa Velha, sendo filho de Francisco da
Silva e de Maria Emília da Conceição, conhecida por Maria Emília Lavada (daí a alcunha por que era
conhecido o capitão).
Do
casamento em 21 de Agosto de 1923 com Maria da Silva Branca, nasceram dois
filhos – o Manuel, marido da D. Ermelinda, que, amavelmente me recebeu, e o Carlos,
ambos funcionários da Vista Alegre, que, por lá fizeram a sua vida.
Manuel
da Silva era portador da cédula marítima nº 10407, passada na Capitania do
Porto de Aveiro, em 19 de Fevereiro de 1913. Na ficha do Grémio, apenas aparece
como piloto, em 1944, sob o comando de José Simões Ré, do lugre-motor de madeira Navegante
II, construído em Fão em 1912, por António Dias dos Santos, propriedade a
partir de 1934 da firma Ribaus & Vilarinho, Lda., da praça de Aveiro.
Piloto muito tarde. Porquê? Pôs-se-me essa questão e não tive quem me
esclarecesse tanto quanto eu queria. Mas, a própria ficha do Grémio referia que,
tendo cédula marítima desde 1913, deixou de exercer a profissão, o que sua nora
confirmou, por crise da navegação, ocupando-se em comércio próprio.
Numa
segunda visita à casa que fora do capitão, fui amavelmente recebida também pela
outra nora, D. Maria Ângela, pela neta mais velha, a Elisabeth, e pelo neto
João Nelson, que havia seguido a mesma profissão do avô, pela admiração
profunda que tinha por ele. Depois de muito
activarem os neurónios, as duas senhoras referiram-me que o sogro tinha sofrido
um naufrágio, uma vez, em navio, para elas, desconhecido, em viagens de
cabotagem (?), com tal perigo que o levou a afastar-se da vida do mar. Além
disso, confirmaram-me que o casal tinha montado um negócio de mercearia, na
Chousa Velha, casa onde habitavam, em frente à antiga escola primária local.
Manuel
da Silva, passou, então, a ser, funcionário, durante alguns anos na fábrica da
Vista Alegre, como chefe das pilhas de lenha para os fornos, que chegavam do norte,
pela ria, em mercantéis. Após o
horário fabriqueiro, ajudava a mulher na mercearia. Logo recordámos a venda de
produtos domésticos habituais – arroz, açúcar, farinha e quejandos – em sacos improvisados
de papel pardo, ao quilo, rebuçados e vinho, ao litro, em garrafa ou garrafão.
Mas, certamente, não era a vida que Manuel da Silva desejava para ele – o mar
chamava-o...
E
uma possível explicação, para esta mudança de vida??? Tendo ido, um dia, à
Vista Alegre, um dos Vilarinhos, com quem se dava, opinou-lhe – deixa a fábrica, isto não é lugar para ti,
vai mas é para o mar, tendo-lhe facilitado o tal lugar de piloto, no Navegante II, em 1944, que já
referimos.
Imagino
que tenha unido os chicotes.
Nos
anos de 1945 e 46, passou a imediato do conhecido, belo, mas desditoso Hortense, lugre-motor de madeira, construído para a Parceria Geral de
Pescarias, por Manuel Maria Bolais Mónica, em 1930. Foi seu capitão, Augusto
dos Santos Labrincha, de alcunha Laruncho,
também de Ílhavo.
A bordo, o primeiro, à nossa direita
Trabalhador
e interessado, «saltou» no ano seguinte, 1947, para o navio Elisabeth, como imediato, sendo capitão
José André Senos, e piloto, Elmano Pio Maia Ramos, ambos conterrâneos. O Elisabelh, navio-motor de madeira, tinha sido construído para a empresa João
Norberto Gonçalves Guerra, por Manuel Maria Gonçalves Mónica, em 1945, tendo
feito a primeira viagem em 1946.
Navio-motor
Elisabeth
Recordou-me
a D. Ermelinda, que no ano em que se casara, 1946, o sogro era imediato do Hortense. O nome da primeira neta,
Elisabeth, nascida em 25 de Julho de 1947, teria sido influenciado pelo nome do
navio Elisabeth, em que fora de
imediato, na viagem de 47? – pensei. Mesmo antes que o confirmasse, a Elisabeth
revelou-mo. Não deixa de ser curioso.
Mas,
a convite de Testa & Cunhas, Manuel da Silva (de alcunha Lavado), deu o salto para esta empresa, que serviu com competência e gosto,
até ao fim dos seus dias. Foi imediato no navio-motor
Inácio Cunha, nos anos de 1948 e
1949, sob o comando do figueirense Elias Andrade Bilhau,
E
eis que, por ordem natural dos hábitos empresariais, ascendeu a capitão do
bonito lugre-motor, de três mastros,
o Cruz de Malta, mais pequeno, mas,
sempre muito cuidado, considerado a mascote da empresa armadora.
No Cruz de
Malta, primeiro da direita.
O
Capitão Lavado aí perfez seis viagens
no comando, de 1950 a 55, tendo tido como imediatos, os ilhavenses Benjamim dos
Santos Marcela (1951, 53 e 54) e José Simões Amaro, de alcunha o Forneiro, em 1952 e em 1955, Manuel
Ferreira da Silva, da Gafanha da Nazaré.
Com
grande vontade de construir uma casa em Ílhavo, na antiga Avenida Marechal
Carmona, comprou o local onde ainda hoje mora a sua nora, por influência do vizinho
e amigo Sr. Alexandre Gravato. Foi uma das primeiras casas da Avenida, do
início dos anos 50. A esposa sentia-me muito só e isolada, enquanto o marido se
ausentava para o mar, fazendo-lhe companhia a sua netinha. Dois a três anos
mais tarde, resolveram passar a morar naquela mesma casa, onde um dia destes
fui bater, o filho mais velho, nora e neta.
No
navio-motor Inácio Cunha, o último navio que comandou, teve como imediatos, o
seu conterrâneo Weber Manuel Marques Bela, em 1956 e 57,
Armando
Correia de Carvalho, de Alvaiázere (1958) e Manuel Caçoilo Serafim, da Gafanha
da Nazaré, em 1959 e 60.
Referiu-me
a D. Ermelinda, com orgulho que os Testas
& Cunhas gostavam muito dele. Trazia sempre o navio carregadinho, até com
bacalhau em sítios impróprios para o carregar.
Infelizmente,
deixou-nos relativamente cedo, o que constituiu um grande choque para
familiares, colegas, amigos e armadores, ao deslocar-se do seu navio, o Inácio Cunha, para vir almoçar a sua
casa na Avenida. Em acidente de motorizada, a 31 de Dezembro de 1960, com 62
anos de idade.
Nos
jornais O Ilhavensede 1 e 10 de
Janeiro de 1961, refere-se que meteu à travessa do Caleiro e, ao entrar na
estrada de Ílhavo, quando passava um camião da Sacor, foi chocar com ele, tendo
sido por ele arrastado, chegando já sem vida ao Hospital. Foi com enorme
consternação que o funeral se realizou no dia seguinte. E assim partiu um Homem
do Mar, desta vez, em violento acidente em terra.
A
propósito do carácter do avô, a neta Elisabeth revelou-me ser muito seu amigo,
lutador e alegre, frequentando, à época, com a família, os bailaricos do Texas.
A propósito dos bailaricos, veio à baila a música, referindo que tocava viola,
com muito jeito, a que, por vezes, chamava de violão. Haveria, por certo,
alguma tendência musical, na família, pois, já em 1944, tinha ido ao Porto comprar
um bom violino, ao filho mais novo, o Carlos, de que se apresentava um bom
tocador. Memória atrás de memória, acabaram por se lembrar que, no sótão da
casa da Chousa Velha, havia uma grafonola das antigas, com os respectivos
discos.
E
quando se mexe e remexe no passado, a neta Elisabeth acabou por me referir que o
avô era do mesmo ano de nascimento (1898) de Manuel Trindade Salgueiro, de quem
fora companheiro de escola e que viria a ser o «nosso Bispo do Mar».
Esta
visita a Évora comprova o encontro afectuoso, entre ambos, entre os anos 55 e
60.
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Em Évora, entre os anos 55 e 60
E
eis o que conseguimos apurar, recolher, com esforço, ajudas e muito boa vontade,
sobre o Capitão Manuel da Silva.
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Ílhavo,
2 de Março de 2018
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Fotos
gentilmente cedidas pela Família
Ana Maria Lopes
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