domingo, 29 de julho de 2012

Apresentação do Almirante Rui de Abreu, no Museu de Marinha - 2

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(Cont.)
Nunca foi tão actual o subtítulo: ”A Memória da Ria”

Na sua advertência inicial a autora escreve que a obra se trata, cito, “sobretudo dum estudo etnolinguístico” (fim de citação). Pode ser que o tenha sido como projecto. Acabado o livro verifica-se que ultrapassa, muito e bem, o estudo anunciado.
De facto nos seis capítulos em que se divide é muito mais do que isso: é um trabalho exaustivo, minucioso, iconograficamente belo e elucidativo, abrangendo a história, a sociologia, a etnografia de uma região “ sui generis”, em Portugal e no mundo, em modificação acelerada…e com risco identitário.
E para a sua feitura a Autora não só desbravou Arquivos e consultou bibliografia: meteu as mãos na massa, foi aos locais, calcorreou caminhos e entrevistou gentes, auscultou memórias e viu como se fazia, embarcou e viveu a faina dura e fisicamente exigente dos moliceiros na recolha do moliço.
Trata-se de um livro que só pelas imagens dá gosto folhear. Com fotografias em que é patente a mestria técnica, a sensibilidade estética acompanhando o rigor didáctico, indispensáveis como complemento do texto. Fotografias de Artista, que nesta 2ª edição, vê, como merece, o seu nome na capa.
Com aplicação procurei as inevitáveis pequenas diferenças entre as duas edições. Mínimas, traduzindo o apuramento da linguagem marinheira entretanto adquirida pela Autora: já não se escreve “largura” mas sim “boca” da embarcação…
Permitindo-se-me uma opinião de leitor, muito pessoal: não obstante a riqueza e os pormenores da construção e da recolha, pró-memória futura, do léxico dos depoimentos dos artesãos existentes quando da 1ª edição, patentes no capítulo “ A construção do barco”, encantam-me sobretudo os dois capítulos seguintes – “A Decoração” e “Legendas dos Moliceiros”.

Com a mesma riqueza de cor e pormenor, é nesta edição de mais fácil leitura o capítulo das “Legendas” que estende a recolha até 2010.
Nestas temáticas, a ilustração dos painéis e respectivas legendas, assumem especial relevo as que se prendem com o desporto rei da nossa terra – o futebol – traduzindo vários fervores clubísticos e rasgos patrióticos.
Uma certa discrição em temáticas religiosas, sobretudo quando comparadas com os parentes próximos que andam no mar.
Uma lírica amorosa comparável à dos lenços de namorados minhotos, mas sobretudo o malicioso e a brejeirice acompanhando desenhos desde os mais ingénuos até alguns que parecem decalcados da “Play Boy”!
Não conheço, em termos etnográficos, nada que se lhes assemelhe em finura e segundos sentidos, já que certa loiça das caldas é demasiado óbvia!!!
O tratamento linguístico das legendas, por si só, dava um mestrado da especialidade!
Em minha opinião, esta 2ª edição é uma verdadeira memória de um espaço, como já disse, único, mas que o desenvolvimento e as profundas mudanças de vida e de ambiente vão tornando noutra coisa.
Não obstante os alertas, já patentes na edição de 97, o progresso cilindrou uma actividade antes útil e diária, hoje subsidiada, (resta saber até quando), para evitar que passe apenas a recordação de outros tempos!
Enquanto na primeira edição se evocam as regatas e os concursos de painéis como meios para manter o moliceiro vivo, a Adenda da actual é mais pessimista.
O desenvolvimento apresenta sempre uma factura a pagar: num curto salto aos anos 50, da minha terra também desapareceram machos e mulas, artes e ofícios, carroças de canudo e carros de parelha, ferradores e tosquiadores, fabricantes de chocalhos e pequenos lagares de azeite ou de vinho…
Tendo permanecido alguns dias em Aveiro no exercício das minhas últimas funções na efectividade de serviço, não pude deixar de reparar numa espécie de barcaças, largas, com falcas descomunais e uma porta de leme que não tocava na água, a passear turistas pelos canais da cidade.
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Tive que explicar a um camarada mais novo que chamar “moliceiro” àquilo era um insulto à elegância dos verdadeiros.
O tempo não volta para trás!
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A continuação do barco moliceiro passará pela carolice de alguns proprietários privados, pela mais-valia turística que lhes for atribuída pelas Câmaras dos municípios ribeirinhos, pela eventual constituição de uma associação tipo “ Marinha do Tejo”. E, sobretudo pela transmissão dos saberes da construção tradicional, com moldes e pau de pontos, às gerações vindouras. E gente interessada em mantê-la.
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Foi na leitura da recente obra do Eng.º Senos da Fonseca que tomei conhecimento das elevadas qualidades náuticas do moliceiro, barco “nervoso”, exigindo mestria no governo e capaz de “performances” velejadoras notáveis!
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Pode ser que ai resida um futuro possível: passar de barco de lavoura a barco…radical!
Vou terminar com outra nota pessoal.
Pouco tempo antes de receber o amável convite da Dra. Ana Maria Lopes, sem saber que hoje estaria a tentar dar conta do recado, comprei ali ao lado um modelo de moliceiro, de casco negro, o último que um notável modelista desta casa, José Maria da Silva Lopes, infelizmente já desaparecido, construiu.
Foi como o outro para Portalegre!
Está devidamente acomodado como merece, em lugar de destaque, numa vitrina, acautelado de jogos infantis.
Fechei assim o capítulo, 60 anos depois do grande desgosto dos meus 7 anos!
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MOLICEIROS – A MEMÓRIA DA RIA é um livro cujo texto e iconografia são de indispensável leitura a quem queira conhecer os aspectos paisagístico, sociológico, histórico e etnográfico de uma região moldada pela geografia, construída com esforço pelos homens que nela se souberam encaixar, criando os instrumentos adequados para sobreviverem e prosperarem naquele ambiente anfíbio. A sua maneira de estar, e a beleza do lugar terão por certo influenciado a decoração quase barroca, brincalhona e irreverente dos seus lindos barcos…
Este livro, muito mais do que uma obra bairrista, não deixando de o ser também, é de leitura obrigatória por todos os que amem a nossa terra.
Resta-me felicitar a Autora e o Eng.º Paulo Godinho pela feliz conclusão deste projecto de que conheci os primeiros passos, e a ÂNCORA EDITORA por mais uma achega à cultura portuguesa.
E a vós, ilustre audiência, agradeço a paciência com que me ouviram.
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Muito obrigado!

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Rui de Abreu, 12 de Abril de 2012
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Costa Nova, 29 de Julho de 2012
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Ana Maria Lopes
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AAA
A

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