Quem havia dado ao Sr. Samuel as primeiras dicas e lhe havia ainda mais estimulado o gosto fora o Capitão Weber Bela, há pouco falecido (1925 - 2008), seu parente, extremamente habilidoso também, amante da mesma arte.
Para meu espanto, um belo dia, numa das suas vindas de Lisboa a Ílhavo, o Capitão Bela ofereceu-me várias garrafas com miniaturas diversas, entre elas, uma do navio-escola “Sagres”. Aqui está:
O Sr. Samuel sorria com satisfação, ao dizer-me que o genro, José Alberto Ferreira Malaquias, apesar de, na altura, andar embarcado, lhe ia seguindo as pisadas. Hoje, depois de ter abandonado a actividade marítima, tem continuado e aperfeiçoado a sua técnica, desenvolvendo-a de forma mais activa.
Participa em várias feiras de artesanato da região de Aveiro e exemplares da sua obra podem ser encontrados por variadíssimos locais.
O primeiro barco que Samuel Corujo construíra fora uma réplica do Anfitrite I, em que andou, com 15 anos, seguido do Patriotismo, onde naufragara (1941).
Recordou-me, várias vezes, nas nossas conversas, o acidente que sofrera, a bordo do Santa Mafalda, em 1958, enquanto 3º motorista. Episódio esse, imortalizado pela pena de Bernardo Santareno, ao tempo, médico no Gil Eanes, em “Nos Mares do Fim do Mundo”, que me abalanço a transcrever:
Alô! Alô! O “Santa Mafalda” chama urgentemente o médico! Alô! Alô! Médico! Médico!...
Eu estava no “Bissaia Barreto” (…). Foi então, à hora do jantar, que, aflitivamente, este S.O.S. rasgou os ares: o terceiro maquinista do “Mafalda” tinha uma mão esmagada, por acidente de trabalho!
Era preciso intervir e quanto antes.
E os dois navios navegaram ao encontro um do outro.
O enfermeiro, o Lourenço, a voz trémula de emoção, deu-me pela”fonia” mais pormenores: um dos dedos, preso à mão por escasso retalho de pele, estava sem dúvida condenado; e além deste, dois dos outros dedos desta mesma mão, com fracturas múltiplas e expostas, teriam provavelmente a mesma sorte.
Era preciso ver as lesões, mas como chegar ao “Mafalda”? O mar, agora, estava bravo como eu ainda não o vira: vagas apocalípticas cruzavam o “Bissaia” em todos os sentidos, o vento levava pelos ares madeiras e cordame, a névoa tornara-se impenetrável. Como? Como passar?! (…)
… Era impossível tentar a minha passagem. Ai, o alívio que eu nesse momento senti! (…)
Em todo o caso e sempre pela telefonia, lá fui dando instruções de que me lembrei ao pobre Lourenço.
Era desesperante.
O mar atingira o auge da fúria: rasgava tudo; vencia, com o seu clamor monstruoso, os pobres gritos humanos; lavava, com a espuma claríssima das suas ondas, a sangrenta nuvem daquela hora.
(…) Mas aquele ferido, tão novo, um rapaz… ai, aquela mão! E se fosse possível salvar-lhe os dedos lacerados? Bem bastava o outro, o que já tinha sido amputado (…).
E mandei seguir o “Santa Mafalda” para terra.
*****
Recebi hoje – oito dias sobre este acidente – uma notícia admirável: o terceiro maquinista, apesar da brutalidade das lesões, ficará com os seus dedos!
Tudo valeu a pena: a angústia daquela hora, a raiva humilhante da minha impotência, o suor de sangue e fel do Lourenço, o desespero dinâmico do comandante do “Mafalda”.
Valeu a pena, valeu a pena!
Com a forte e bela narrativa de Santareno, ficou Samuel Corujo imortalizado na nossa literatura náutica e com os “seus barquinhos”, lembrado nas colecções de miniaturas de veleiros em garrafas, espalhadas por todo o mundo.
Imagens – Arquivo pessoal da autora
Ílhavo, 15 de Janeiro de 2009
Ana Maria Lopes
3 comentários:
Boa noite.
Num artigo aliou os momentos de aflição que de várias formas fizeram parte da pesca longínqua, ao pormenor de imortalizar um homem qua na sua humildade, fazia estas belíssimas miniaturas dentro de garrafas. Sabe que para fazer destes "barquinhos", é preciso paz e silêncio... tal como o mar ensina a muitos, a medir a vida.
Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
Impressionantes sempre de ler os relatos dos nosso bravos(heróis pescadores do bacalhau), em boa hora o faz aqui, desta forma não se perde a memória tão esquecida.
Abraço
Temos ,portanto,que o sr.Samuel Corujo,além de ter andado no"Anphitrite",onde o proprietário,meu Avô,foi "varrido"ao mar,ao largo do Cabo Raso ("estória" que sempre me intrigou...)se estreou na arte dos modelos em garrafa...com esse belo barco,cujo lançamento à água,em Vila do Conde, mereceu artigo e fotografia na "Illustração Portuguesa"...As coisa que perdi!...Cumprimentos,"kyaskyas"
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