sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Homens do Mar - João Zagalo, um «doryman» aguerrido - 14

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Recorda o leme e o Novos Mares
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Há uma boa meia dúzia de anos, marquei um encontro na seca com João Teixeira Filipe, homem de boa têmpera, trabalhador e fiel à empresa para que trabalhou, durante 59 anos, desde 1943 até 2002.
João Zagalo (de alcunha), seu nome de guerra, nasceu na Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, a 28 de Agosto de 1924. Foi no início e crepúsculo da vida, carpinteiro naval, mas, no seu auge, foi um grande pescador do bacalhau, um audacioso, sabedor e afortunado homem do dóri. Tinha um certo orgulho nas categorias que teve a bordo e no apreço que capitães, colegas e empresa nutriam por ele.
Na vida do mar, teve sustos… era inevitável, mas talvez nenhum daqueles que marcam para toda a vida… Concordou com o facto de a pesca à linha ter sido uma profissão árdua, muito dura e perigosa, mas demonstrou saudades do mar, sobretudo do da Groenlândia, pelo muito peixe que lá se pescava e pelo tempo que lá fazia… – recordou.
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Começou, na adolescência, a aprender a arte de carpinteiro naval nos Estaleiros Mónica.
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Numa ocasião, o lugre Cruz de Malta estava em frente à empresa, virado à querena, para levar uma nova roda de proa, pois precisava substituída. O jovem Zagalo veio trabalhar para o navio, ao serviço do estaleiro, mas a vida do mar atraía-o e, assim, mudando para a carpintaria da seca, tinha a possibilidade de vir a embarcar. Ele e o Sr. António Cunha entraram em «acordo de cavalheiros», como era normal. E o João Zagalo veio trabalhar para a primitiva carpintaria da empresa com o saudoso Zé Vicente.
Mas o apelo do mar era mais forte. E o seu sonho cumpriu-se.
 
Novos Mares, na Groenlândia, em 1938
 
Em 1947, embarcou de moço no Novos Mares, lugre de quatro mastros, a que ele passou a chamar o seu navio; mas, no ano seguinte, já foi de verde (pescador que ia à pesca pela primeira vez), no mesmo navio e pescador maduro, especial, especial A, de aí por diante, até 1955.
De 1956 a 58, passou para o n/m São Jorge, que estreou e de que eu fui «madrinha», o que muito me marcou, pela positiva.

São Jorge, depois de ter descido a carreira
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De 1959 a 74 (inclusive), embarcou sempre no novo n/m Novos Mares, onde foi um óptimo e audacioso pescador. Nos serviços de bordo, como escalador, orientava a escala, tratando também cuidadosamente de todos os derivados: caras, línguas, samos e lombos.
Em viagem, no caso do n/m Novos Mares, fazia quarto com o Capitão, Sr. António Pascoal.
De moço, passou a verde e de verde a pescador especial (aquele cuja pesca ultrapassa os 200 quintais), estando sempre na categoria dos melhores pescadores do navio.
Depois da difícil viagem de 1974 e das greves de então, estava na altura de ficar em terra e aí, pela década de 90, muito contactei com ele, enquanto ia fazendo uns biscates na carpintaria, até 2002, ano em que se aposentou.
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Em conversa, recordou alguns episódios de bordo.
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A melhor viagem que fiz foi no São Jorge (ali pelo ano de 57) e foi mesmo a melhor do navio e a mais curta. Largámos a 31 de Agosto, viemos directos da Groenlândia e ainda fomos à feira de S. Mateus, em Setembro, em Viseu.
Era um bom navio. Dormia no beliche, à ré, e não fazia nenhuma «ringedeira» (barulho que os navios de madeira quase sempre faziam).
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Contou-me outra história, que lhe deixou saudades, passada em Agosto, na Groenlândia, no Novos Mares, com o Capitão Pascoal.
O navio deu uma emposta (mudou de sítio) para arriar mais cedo. Deu uma pesquisadela.
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Disse o Capitão:
– Para fora, não tem nada. Ide para o lado de terra!
 – «Vamos à vida, com Deus, vamos arriar!» – ordem do Capitão.
E a manobra do arriar começou.
Mostrou muito orgulho em ter sido chasman (presumivelmente corruptela do inglês lastman), pois orientava, com outro camarada, a manobra de arriar.
Deduzi que o chasman era o dono do último bote do cimo da pilha, que não se desarmava. Tinha de ser um homem responsável, com jeito, traquejo e muita prática. Havia um chasman em cada pilha, que ajudava a arriar e a içar os botes e era sempre o último a partir para a pesca, depois de ter orientado estas lidas.
Depois de ter botado as mãos no peitilho do avental para as aquecer, já que não trabalhava de luvas, – confessou-me – remei de cu p’rà ré e fui p’ra fora, para estar mais desempachado (livre, disponível).
Depois de ter largado o trole e quando o grampolim chegou ao fundo, começou a sentir bacalhau na linha do grampolim. Era muito bom sinal!

No meu dóri, era eu o capitão…recordava
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Recordou que acabara de largar, comera o pequeno-almoço que levava no foquim (peixe frito, pão e azeitonas), deixou passar uma hora e, em cada anzol, um bacalhau. Confessou-me que carregara até ao bico do bote.
Ainda carregou outro bote, mas, à terceira vez, já não deu nada.
Era peixe a meia água, que passou e não voltou. Assim acontecia tantas vezes! – reviveu.
Este relato mostra a instabilidade, a precariedade e incerteza desta vida.
Mas o João Zagalo não o esqueceu.
Trabalhou com os capitães João dos Santos Labrincha (Laruncho), de 1947 a 49 e de 1956 a 58, José Simões Bixirão (Ponche), de 1950 a 55, Weber Manuel Marques Bela, em 1959 e 60 e António de Morais Pascoal, de 1961 a 1974.
Recordou alguns camaradas de faina, tal como o Manuel Pinto (1923-2004), de Ílhavo, contramestre, também muito bom pescador e trabalhador fiel da casa, para a qual foi fazendo uns trabalhos específicos de marinharia, quase até ao fim dos seus dias.
Senti que, longe de aborrecer o João Zagalo, consegui proporcionar-lhe uma tarde agradável, cheia de recordações, duras recordações, mas, para ele, compensadoras.
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Foi com enorme orgulho que a Confraria Gastronómica do Bacalhau prestou a simples homenagem a este Lobo do Mar, em Janeiro de 2011, de o tornar Confrade de Honra, representando, pois, tantos outros que passaram anonimamente pela Faina Maior e ajudaram a escrever páginas da história deste concelho marinheiro e de Portugal. Terminou os seus dias em 10 de Dezembro de 2014.
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Fotografias – Arquivo pessoal da autora
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Ílhavo, 25 de Maio de 2016
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Ana Maria Lopes
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4 comentários:

marmol disse...

Fazia parte da tripulação do Novos Mares que me salvou e aos restantes tripulantes do São Jorge nos mares gelados da Terra Nova a cerca de 60 milhas a Sueste de St. John's em 1974. Paz à sua alma.

Ana Maria Lopes disse...

Obrigada pelo comentário, caro Amigo.

Jaime Pontes disse...

Gostei de ler este documentário até porque conheci bem o amigo João zagalo ,dei 3 viagens no Novos Mares 67-68 e, 69 era amigo dele ,aliás era amigo de todos o Sr João Zegalo ,Paz a sua alma e meus sentidos pêsames aos familiares e amigos e, meus cumprimentos a Sra Ana Maria Lopes !!!

Ana Maria Lopes disse...

Obrigada, Sr. Jaime Pontes, pelo seu comentário.