domingo, 31 de maio de 2015

Apresentação de «Uma Janela para o Sal», por Senos da Fonseca

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Há textos que gostamos de guardar, partilhar e exibir no Marintimidades. E este, com que o Amigo Senos da Fonseca nos brindou na apresentação do nosso último livro, no MMI, é um deles. A saber:
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De Sal, pouco conhecimento tenho para além do seu ajuste ao tempero. Dizem ter mão pitosa.
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O sal materializado ou imaterializado, está permanentemente na vida de cada um. Alguém que ame sem sal qb, não ama: vive de tédio. Alguém que sonhe sem sal qb, não sonha: vive na glória da desilusão…
Ai de quem não dê pela sua presença. Sal da vida, sal da alma, sal dos olhos. Sem o sal qb, não há objectividade no sentir, não há clareza no mundo externo.
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De sal, observo as doutas palavras desse príncipe de letras portuguesas: – Padre António Vieira. Há sal que não salga…
Ou porque o sal não salga; ou porque a terra não se deixa salgar, ou porque quem prega diz uma coisa e faz outra.
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Haveria, pois, mil e uma maneiras de abordar ao que vim…ora o que me foi pedido é bem mais simples.
Do sal que salga mesmo…
Mas, lembrei-me, então…
Certo (e quem sabe ter sido esse o motivo) ter em tempo publicado o título «O Homem e o Sal». E aí ter dito (permitam-me citar o dito, que fez parte de setenta títulos publicados).
(…) Há vários milhares de anos, caíram as janelas do Palácio do Céu… Ficaram intactas as vidraças nos respectivos caixilhos, porque as janelas caíram sobre o terreno macio. Hoje são as salinas… (Almada Negreiros)
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O Homem aqui venceu…
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Delas disse Unamuno: são, de facto, como que exemplares de uma espécie, em outras partes, já extinta.
Seja qual for o motivo por que estou aqui a perorar, espero não vos maçar.
Entremos, pois, na curiosa história de «A Janela para o Sal».
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Aqui há uns anos, não muitos, a Ana Maria cirandou em minha volta quando me fazia companhia para os minhas inquirições do livro Bateiras & Artes, tentando-me engajar para um plano conjunto, de trabalho sobre o Sal.
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Era minha opinião: sobre o sal e a sua feitura, do ponto de vista técnico, era matéria esgotada. Depois de o nosso conterrâneo, Manuel da Maia Alcoforado, ter publicado o seu rigoroso tratado sobre o ouro branco retirado da Laguna de Aveiro.
Do sal, tempero de vitualha, procurado desde a mais longínqua e profunda noite dos tempos, para simples sobrevivência, ou tempero de povos mais adocicados, celebrado por reis, consagrado aos deuses, credor de vassalagem de povos e imperadores antiguidade.
Sobre o Sal, outros trabalhos (livros e álbuns) foram sendo por aqui publicados. Parecia-me (a mim!), pois, esgotado o filão salícola para o prelo. Como morta estava desde há muito a sua produção por estas bandas. O Sal desde o século passado desapareceu na planície alagada lagunar; que não da nossa mesa, vindo de outras paragens onde a extracção dispensa o esforço braçal humano. E onde a máquina, substituiu o ugalho; e o comboio, o burrico do almocreve: o saleiro, logo na pia baptismal, ajoujado de sal – não o da sabedoria, mas o do carrego. 
Do Sal, da sua dorida e suada feitura, pouco mais resta que a lembrança registada em esses inúmeros trabalhos, alguns já repetitivos, já gastos ao nascer para o relembrar. Mas, sim! – é verdade. Há a Troncalhada, Marinha- museu para o mostrar aos turistas. Ao longo do tempo recuperou-se o léxico decalcado da «bíblia» de Maia Alcoforado; métodos e glossário, quase sempre, pouco ou nada acompanhados do exercício de um metódico trabalho de campo.
E aqui faço um parêntesis, para me dirigir às autoras; o glossário n’ «A Janela para o Sal» contradiz a intenção de que falaremos adiante. Era perfeitamente dispensável (em nossa opinião).
Outros livros dados à estampa, insistiram nas fotos «mudas», quase sempre bem felizes – é facto – pois as cãs e as rugas provocadas pela desaforada faina salícola, a isso bem se prestam. Mas de todo pobres no texto que não ultrapassa a simples legenda.
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Ao meu desinteresse, a Ana não desistiu.
E ainda bem...Como lhe costumo dizer: ouve o que Te digo, mas não faças o que Te digo... Hoje, constato, o SAL, foi nela motivação obsessiva, motivação que teria de ser cumprida. Como o fazer (?!)..., creio, ser essa a sua dificuldade.
Tinha consigo um fantástico acervo fotográfico (que seu filho então um jovem entusiasta do registo na caixa impressiva, acompanhante da mãe nas deambulações pelo salgado lagunar, fixou com mestria). Hoje aqui bem patente. Fotografias onde os artifícios hoje permitidos pelos hi-techs digitais, ainda não existiam. Fixadas nos velhos diapositivos, sem acesso a photoshopadas que hoje permitem inserir um pôr de sol em dia tristonho, uma alegoria de estranhos tons, numa exultante sinfonia de cor roubada às quatro estações de Vivaldi. Ana Maria era fiel depositária desse minucioso espólio – um tipo de herança a funcionar ao contrário – sem dúvida lauto e esgotante cardápio de momentos escolhidos, fixados para perdurar (ou renascer, um dia, como foi aqui o caso). Descritivo em imagens, «vitualhas», que marcam cada momento alto do bodo sensorial que é a fazedura da marinha, por entre perfumadas maresias de flores silvestres a povoarem os ares, desde o nascer do sol até ao encharcado crepúsculo nocturno.
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Um belo dia chegou-se e deu-me conta:
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  Já arranjei companheira de jorna: – a Etelvina...
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E, passo a passo, fui acompanhando o início do escufenar da marinha, o risco dos vieiros, depois a entre safra...as molhaduras, e a botadela etc, etc.
Rapidamente me dei conta de que o trabalho ganhara um cariz muito diferente do modo como até aqui se tinha falado do sal. O trabalho da parelha (duo) Ana/ Etelvina, tinha escolhido, não o Sal como figuração central do seu livrinho, mas sim, fixado e eleito, o marnoto, como figura central da dorida feitura do sal. E deu a este quase todas as páginas. O trabalho (hoje aqui livro) ganhou justificadas alvíssaras, pelo profundo humanismo que espelha.
Uma apreciação mais cuidada permitiu-me verificar 3 ou 4 singularidades que afastam «As Janelas» do que foi feito até aqui. Note-se, não estou a dizer para melhor, mas diferente. E isso é bastante para merecer elogio.
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Primeira singularidade:
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A começar pelas imagens, e a prolongar-se num texto que está lá, para as servir. E não como habitualmente, ao contrário. Creio não me enganar se disser que alinhadas antes de tudo, as imagens, catalogadas de acordo com os pontos marcantes da safra, só depois se contextualizaram as mesmas. O texto não é pois uma descrição consecutiva. Corre como de acordo com a imagem. Com liberdade diria: estamos perante uma banda desenhada poética. O que por norma é, exactamente, o contrário, do que é costume fazer nestes trabalhos.
E conta-nos, gota a gota o desalmado bulício do marnoto.
Não me afasto muito da escriba, se o descrever a meu jeito:
Logo que a ria punha a descoberto uma ruga, logo ele se lhe atirava sob torreira que lhe ressumava o rosto em bagas de suor salgado. Pernas de ceroulas enroladas, camisa arregaçada até aos sovacos, atira-se, sol a despontar, a um bulir esfalfante. Figura central dos clichés (na sua quase totalidade) este era o irredutível marnoto... Que só tem medo que amanhã, numa volta de vento, imprevisível, o céu, em vez de lhe cair em cima – coisa habitual do seu dia-a-dia – comece a chorar copiosamente. E lá vai a sua esfalfadela. Quase que me atreveria a dizer: a janela do livro por onde somos convidados a espreitar, com um certo pudor, centra-se e elege como a figura suada, por vezes quase mortificada. Um dos demiurgos lagunares: o criador do sal. Que sem sudário que lhe acalme a aspereza da torreira do vento aquilão (o seu sudário é a sua pele brochada pelo iodado braseiro que o fustiga), leva a canastra ao calvário. Que é aqui o cone alvo do malhadal...
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(Cont).
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domingo, 24 de maio de 2015

Postais da Costa Nova - Varandas - 3

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O arquivo do Dr. Paulo Horta Carinha é um espólio, a todos os títulos, notável, um baú sem fundo, que aprecio e comento sempre que me apraz.
Mas, ontem, esta imagem de uma varanda enfeitada com uma dúzia de mirones, em contemplação da ria e da azáfama piscatória, quiçá, seduziu-me. Apoderei-me dela, com ordem, – a varanda da Pensão José das Hortas, na Costa Nova, em 8 de Julho de 1936.

Varanda de ontem…

Ao guardar a imagem no ficheiro em que a incorporei, não é que ficou não encostada a esta outra, recente, com um grupo de amigos que se prepara com deleite para ver passar a procissão da Nossa Senhora da Saúde, em 29 de Setembro de 2013? Outro estilo, outras modas, outras roupagens, outras atitudes. Quase oito décadas as separam.

Varanda de hoje…

Não há dúvida, as pessoas passam, mas as cenas vão-se repetindo.
Sempre foi esta uma das grandes atracções das varandas da Costa Nova – um voyeurismo franco e aberto relativamente a tudo quanto passa e nos deslumbra, desde as serranias longínquas em declive, a Senhora da Maluca estilhaçante num pôr-do-sol resplandecente, a beleza da ria prenhe ou descarnada, a procissão da Senhora da Saúde, ou simplesmente, quem passa a passear ou a mercar. Se valer a pena, nada como rapar do binóculo de bordo do meu Avô…
Nada mau. Um entretém em cheio, desde que o tempo ameno o permita.
Foi assim com a minha Avó, com a minha Mãe, comigo! – Será que vai prosseguir?
Os deuses adivinhá-lo-ão.
Quase que dá para listar aqueles que por ali passaram e já não passam. Até que, algum dia, algum passante venha a dar pela minha falta na minha varanda virada para a ria…
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Fotos cedidas por PHC e por MEPC.
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Ílhavo, 24 de Maio de 2015
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Ana Maria Lopes

sábado, 23 de maio de 2015

Varinas - Um símbolo de Lisboa


 
O Cinema São Jorge recebeu no passado dia 21 de Maio, pelas 21h30, na Sala Manoel de Oliveira, o documentário Varinas – Um símbolo de Lisboa. Lá assisti com muito agrado. Como é que uma ílhava não iria assistir? Nem pensem! Tive de lá estar. Há espectáculos que não se podem perder. Ainda para mais com depoentes, com quem convivo dia a dia – Márcia Carvalho do Museu Marítimo de Ílhavo, Luís Martins da Universidade Nova e Senos da Fonseca, entre outros conhecidos.
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Como foi possível que a vendedeira de peixe da Beira Litoral, chegada a Lisboa no século XIX, se transformasse num símbolo da capital? O documentário Varinas – Um Símbolo de Lisboa narra a história da presença da comunidade (o)varina na cidade, leva-nos ao encontro das últimas varinas de Lisboa e mostra-nos o fascínio que esta mulher arrojada e desinibida, deixou no imaginário alfacinha. 

Ílhavas.Vendedeira de Sardinha.
Gravura de Joubert
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A estrutura do documentário insere-se no levantamento de Memórias da cidade de Lisboa, assente no projecto de investigação sobre as Varinas realizado pelo Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa. Iniciado em 2013 com o registo de testemunhos orais das últimas varinas de Lisboa, considerando a sua urgência e pertinência para memória futura, seguiu-se uma ampla investigação interdisciplinar. Esta assentou em fontes documentais, gráficas e audiovisuais que permitiu conhecer esta comunidade, as relações entre si, os seus quotidianos, bem como a varina enquanto figura popular, mulher trabalhadora e mãe, cuja liberdade na linguagem, costumes e atitudes na rua cedo captaram variadas atenções, convertendo-se, por mérito próprio, em símbolo da cidade de Lisboa.
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A sua postura afirmativa e despida de preconceitos, espartilhos ou convenções, o seu caráter desinibido e irreverente, visível no espaço público, surge num contexto onde este era ainda de domínio masculino. A dimensão e atitude desta comunidade (o)varina marcaram de forma indelével a cidade, atribuindo-lhe um novo fácies, onde os seus costumes e tradições foram a marca de uma identidade que atravessou a centúria de oitocentos e veio a dissipar-se ao longo da segunda metade do século XX, envolta numa melancólica saudade da figura que animava e perturbava a pacatez da Lisboa ainda rural.
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O documentário contou com a participação de Senos da Fonseca e Márcia Carvalho do Museu de Ílhavo, José Garcia e Delminda Rijo do Gabinete de Estudos Olisiponenses, António Miranda do Museu de Lisboa, Maria de Aires Silveira do Museu de Arte Contemporânea do Chiado, Gonçalo Gonçalves e Pedro Prista do ISCTE – IUL, André Fernandes e Luís Martins da Universidade Nova e Sofia Tempero do Departamento de Património Cultural da Câmara Municipal de Lisboa. Através do corpo de depoimentos destes convidados, o filme aborda as vivências desta comunidade, desde o seu «berço» na laguna de Aveiro até ao momento do desaparecimento do mercado da ribeira em Lisboa.
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Vendedeiras de mercado. Aguarela de A. De Souza

Adorei assistir, considerei o documentário bastante bem conseguido, sobretudo no que diz respeito àquele movimento aguerrido e inquieto das varinas da capital, ao longo dos tempos.
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Relativamente à participação ílhava, é claro que nos deixa sempre uma pontinha de vaidade, ao vermos e ouvirmos «artistas» da nossa terra a actuarem em cenários que nos são tão familiares – Senos da Fonseca, em passeio lagunar, num belo dia de sol, a bordo do moliceiro «Pardilhoense», timonado pelo seu arrais e amigo Miguel Matias e Márcia Carvalho, do Museu Marítimo de Ílhavo, tendo como pano de fundo a «nossa bateira ílhava». Sinceramente, gostei. É um pouco da ria de Aveiro (de Ovar, da Murtosa de Estarreja, de Ílhavo) que as varinas de Lisboa foram mantendo na sua «guelra» e na sua presença, através de gerações.
Foram muito acarinhadas e ovacionadas três das últimas varinas, ainda presentes na sala e artistas no documentário.
Tive a informação de que o documentário deveria vir a passar, pelo menos, em Ílhavo e em Ovar. Vamos a isso! Para revermos e para que seja mais acessível aos «ilhavos locais».
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Fonte – Arquivo Municipal de Lisboa (Videoteca)
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Ílhavo, 23 de Maio de 2015
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Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 13 de maio de 2015

UMA JANELA PARA O SAL

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No próximo sábado, dia 16 de Maio, pelas 18 horas, integrado nas comemorações do Dia Internacional dos Museus, a Alêtheia Editores convida-vos para o lançamento do livro Uma Janela para o Sal com texto de Ana Maria Lopes e Etelvina Almeida e fotografia de Paulo Godinho.
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A obra será apresentada por Senos da Fonseca.  

Convite

Referem as autoras, na contracapa do livro, em sinopse:
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E finalmente, se abre uma janela para o sal...
Fruto de um antigo propósito, o de trazer à luz e à escrita um acervo de imagens das salinas, recolhidas nos anos 80, alusivas a um património que se tem vindo a extinguir, repescaram-se apontamentos não só imagéticos, mas também escritos e confirmados no local, que agora renascem das lamas negras das marinhas e dos brancos cristais desses tempos, trazendo a saudade e o labor de outras fainas.
E assim se retomou a «safra» e se verteu sobre o papel a escrita que os aguardava. E, a outros olhos, outros pensares, em duplo sentir, suavemente se foi tecendo homenagem a uma profissão, actividade e tradição, a do marnoto, que já morre na alma de muitos, porque os que a lembram já poucos são.
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Trata-se de um património que faz parte da identidade de uma região que bem aconchegava esta actividade no seu seio, tal foi a sua importância desde sempre.
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Acompanhou-se, registou-se, descreveu-se e contou-se, «cantando» e exaltando o homem do sal, que foi, é, e será o único sabedor e conhecedor de tão árduo trabalho, o de amanhar a marinha, desde a rudeza à beleza do sal.
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Com a percepção de que se trata de uma maneira diferente de abordar o sal lagunar, com alguns laivos poéticos, fomos escrevendo esta pequena monografia Uma Janela para o Sal, acrescentando frescura ao tema e enaltecendo o Homem, o território lagunar e as marinhas. É aprazível, esclarecedora e sedutora, quer para um leitor conhecedor, quer para um leitor interessado.

Capa do livro


Amigos/as, compareçam no Museu Marítimo de Ílhavo, para darem uma espreitadela para o sal. Não se arrependerão.

Ílhavo, 13 de Maio de 2015

Ana Maria Lopes
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