sexta-feira, 24 de março de 2023

Abre, hoje, a Feira de Março...

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Para mim, a Feira de Março, apesar da vetustez dos seus quase 600 anos, já foi, já era.

Para aí, há sessenta anos, quando vinha de férias da Universidade de Coimbra, que agradável era ir até à Feira de Março! Era mesmo obrigatório experimentar as sensações dos divertimentos mais ousados, para a época – comboio-fantasma, cadeirinhas voadoras, poço da morte –, ir ao Circo, flanar, pavonear as toilettes já primaveris, almejar encontros agradáveis, flirtar, renovar as bijouterias, etc., etc.….

O ambiente favorecia a diversão!

Mas porquê no “Marintimidades”, estas intimidades? Apesar dos meus verdes anos, os barcos moliceiros já não me eram indiferentes. E daí ficou a chapa que bati em 25 de Março de 1961. Não há dúvida que já atraíam as minhas atenções. Eis a prova

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Inauguração da Feira de Março – 1961
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A ria, inspiradora e calma, espelhava a paisagem!

Estava um bonito dia primaveril! O Rossio é, era, (será?...) sempre o Rossio! Parece que não. Muito está em mudança. Alimentava-se da água que bebia! ….

Além do mais, era hábito os barcos moliceiros estarem presentes, por iniciativa dos arrais, movidos pela tradição, em razoável número, no Canal Central, para exibirem as suas elegantes formas e garridismo cromático. Com eles vinham, também, alguns mercantéis, mais pesadões, mas sempre pujantes senhores da Ria.

Esta imagem deixa-me alguma saudade. Apesar de continuar a apreciar a beleza do Canal Central, algo mudou e, se calhar, não foi para melhor. Opiniões!...

 

Da antiga ponte Aveiro/Barra
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De passagem pela antiga ponte de Aveiro/Barra, naquela manhã resplandecente e de águas cristalinas, cliquei uma bela imagem do n/m “Ilhavense” e já em pleno Cais dos Bacalhoeiros, outra, do lugre-motor “Coimbra”.

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Lugre-motor “Coimbra”
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Que bela, soalheira e calma manhã de 25 de Março, há 62 anos!...

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Ílhavo, 24 de Março de 2023

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Ana Maria Lopes

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segunda-feira, 20 de março de 2023

Naufrágio da "chalupa D. Maria", na Barra de Aveiro

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Naufragou na barra de Aveiro a chalupa D. Maria, da praça do Porto, para onde se dirigia com carga de sal, de conta do negociante de Ílhavo Sr. José Teiga.

O D. Maria foi ainda até ao espalhado para sair, mas como o mar embravecesse, voltou para dentro. Antes, porém, de chegar ao ancoradouro, um desarranjo no leme fez desgovernar o navio, que foi cair num baixo de areia do lado Norte, abrindo logo água e começando de imediato a inutilizar a carga, que se perdeu por completo. Sem esperanças de salvar o casco, a tripulação começou removendo o massame, velas, correntes, etc., que se acham em terra. O navio conserva-se ainda inteiro, porque está ao abrigo do embate das ondas, pelo que se pensa poder recuperá-lo. O D. Maria foi propriedade do conhecido e falecido armador de Ílhavo Sr. Manuel Machado e viajava então com o nome de "Machado 1º".

Perto do sítio onde agora naufragou, o navio sofreu há três anos igual sinistro, conseguindo-se, todavia, pô-lo a flutuar, passando depois à propriedade do Sr. José Teiga. Este Sr. só dispunha agora de uma terça parte, sendo as restantes duas terças partes da firma do Porto José Dias Pimenta & Cª. Nem o navio nem a carga estavam seguros. O D. Maria que se achava tombado foi ontem à tarde posto direito, à força de espias, lançadas pelo lado da costa de São Jacinto. Parece que se pode considerar salvo, embora seja grande o volume de água que se encontra no porão.

 

[Notícia publicada no jornal "Progresso de Aveiro" de 21 de Março de 1908]

 

Ílhavo, 20 de Março de 2023

 

Ana Maria Lopes

domingo, 5 de março de 2023

"Molinete" do "Faina Maior", em 2009

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Na senda do programa “O Meu Museu”, que iniciei, a convite do director do MMI, Nuno Miguel Costa, muitos episódios me assolaram a memória e este foi um deles – a história do molinete.

“Certo dia, quando o nosso saudoso amigo Capitão Francisco Marques terminava a construção do Faina Maior” e com grande satisfação me foi mostrar o seu trabalho, perguntei-lhe se não pensava instalar-lhe um molinete. Ele olhou para mim e, com amargura, disse-me que não se sentia com forças para isso. Não mais se tocou no assunto.

Mais tarde, já em Lisboa, conversei com o amigo Dr. Manuel Leitão, que, com a sua sempre pronta solicitude, logo me apresentou um conjunto de desenhos detalhados dos molinetes que se usavam nos palhabotes de Gloucester. Era completamente igual ao que eu conhecia do “Gazela”, só que de dimensões apropriadas a um navio como o Faina Maior”.

Guardei estes planos, mas não falei no assunto a ninguém, por não ter oportunidade.

Construi, então, uma maquette à escala e apresentei ao Sr. Director do Museu e ao Sr. Presidente da Associação dos Amigos do Museu a ideia da sua possível construção.

A minha proposta foi aceite em reunião da AMI e o Dr. Aníbal Paião, de imediato, deu ordem para a iniciação dos trabalhos, pondo à disposição as oficinas, os armazéns e o apoio logístico necessário para se dar início à obra.

Contactei o mestre José Vareta, a quem mostrei os desenhos e a maquette, para saber se estava disposto a dar seguimento a esta tarefa.

Observou tudo com atenção, e aceitou o trabalho, com a condição de ter apoio do serralheiro para acompanhar e executar os trabalhos em metal, para os transportes e suporte financeiro para a aquisição das madeiras necessárias.

O trabalho começou e logo se mostrou a todos os que o acompanharam, de uma atracção invulgar.

Foi bom voltar a ver riscar, serrar, unir e dar forma àquelas grandes peças de madeira que, dia a dia, iam mostrando as colunas, o tambor e as bonecas que começavam a dar vida à “velha” peça feita agora de novo.

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Na Pascoal…
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Depois, voltámos a ver trabalhar a enxó de ribeira, guardada há tantos anos, mas que o mestre ainda manobrava com mestria.

Começava o acerto das ferragens que, depois de devidamente aplicadas, davam movimento ao nosso molinete.

Trabalhava, rodava e até “cantava” como os seus “irmãos” a bordo dos navios.

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No MMI…
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Chegava o dia de partir para o seu lugar e lá seguiu desmontado na camioneta que o levou até ao Museu de Ílhavo, onde o mestre Zé Vareta, que já tinha construído o “Faina Maior” ia agora terminar o seu trabalho colocando no castelo de proa o molinete para virar a amarra».

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No MMI…
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28.4.2009 – António Marques da Silva

 

Fui acompanhando o trabalhado, sempre com curiosidade e entusiasmo, e fotografando as suas diversas fases.

Mais uma vez, estamos muito gratos ao Amigo Marques da Silva, pela boa vontade, espírito de pesquisa, saber e paciência.

Obrigada, Capitão Marques da Silva!

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Ílhavo, 5 de Março de 2023

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Ana Maria Lopes

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sexta-feira, 3 de março de 2023

A Barca Processional dos Apóstolos

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Depois de ter assistido à tertúlia “Memórias viajantes” no MMI, no passado dia 25 de Fevereiro, resolvi reescrever e melhorar tudo quanto tinha escrito, até aí. Intervieram Senos da Fonseca que, além de referir, sempre, a importância da diáspora dos ílhavos, litoral abaixo, justificou por que motivo se deveria dizer barca e não barco, Dr. João Pires da Rosa, representante da Família e Drª. Carla Felizardo, professora de Conservação e Restauro na Universidade Católica do Porto, onde a peça se encontra em intervenção.

Para mim, esta barca só existe, presencialmente, desde que a visitei em Setembro de 2009, ali umas casas abaixo da minha, na posse da Senhora D. Zídia Mendonça (falecida em 2012, com 89 anos). Amavelmente ma mostrou e deixou fotografar, sempre receosa que a rara peça de arte sofresse, com as deslocações, algum pequeno dano – apercebi-me.


1.Em Setembro de 2009…
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Tendo conhecimento que aquele barquinho teria estado presente, em tempos, numa antiga festa de S. Pedro, celebrada em Ílhavo, tentei informar-me melhor.

Como? Para já, lendo, consultando, pois a senhora, já de provecta idade, não me soube dizer muito mais.

Tendo bem à mão o delicado livrinho Senhor Jesus dos Navegantes – Mar e devoção (2007), respiguei o que Hugo Cálão escreve a este respeito, p. 12:

(…) A devoção pela imagem do Senhor Jesus creio que começou sem ligação marítima continuando a invocação da imagem só como Senhor Jesus até finais do séc. XIX, fazendo-se em Ílhavo a festa de pescadores em devoção ao S. Pedro Apóstolo. As várias companhas de pesca costeira da Costa Nova, depois da esmola recolhida por todos, faziam a sua procissão que se festejava no dia 29 de Junho.

A imagem de S. Pedro tinha lugar de honra num pequeno barquinho, onde figuravam os apóstolos, uns remando, outros a colher redes, e a imagem de São Salvador, o padroeiro da Vila, à proa, abençoando também o trabalho da faina. Desta antiga devoção, que terminou com a dissolução das antigas companhas pouco depois de 1840, hoje restam apenas as figuras dos apóstolos do antigo barco processional que saía por ocasião da festa ao S. Pedro, actualmente nas reservas do MMI.

 

Com a abertura da barra de Aveiro em 1808 (…), a construção dos estaleiros e organização de campanhas de longo curso deu início a uma nova devoção dos pescadores ilhavenses, transitando a grande festa religiosa que se celebrava ao S. Pedro (das pequenas campanhas de costa), para a actual festa dos marítimos em honra do Senhor Jesus dos Navegantes. Embora numa acta da Junta de Paróquia de 7 de Agosto de 1865 apareça a despesa da Festividade do Senhor Jesus e São Sebastião (referente a 1864), a imagem com a nova invocação marítima de Festa do Senhor Jesus dos Navegantes, apenas aparece em ex-votos pintados de finais do séc. XIX e início do séc. XX, propriedade da nossa Igreja Matriz.

Com o incremento económico dos capitães nas prósperas campanhas ao bacalhau, a devoção cresceu e a fé ilhavense projectou-se com brilho, na Festa ao Senhor Jesus dos Navegantes.

Refere ainda que o andor da antiga procissão ao S. Pedro em Ílhavo ainda serviu em início do século XX na procissão de Nossa Senhora da Saúde, na Costa Nova, no último domingo de Setembro.

Em 200 Anos de Memória da Costa-Nova do Prado (2009), Senos da Fonseca relata também, na p. 169, que na Costa Nova, os festejos em honra da Senhora da Saúde, iniciados em 1837, vieram substituir a primitiva festa de S. Pedro em Ílhavo – tornando-se a festa das Companhas – passando a ter data fixa, no último domingo de Setembro. E assim continua, nos nossos dias…

O mesmo autor, no Ílhavo – Ensaio Monográfico do Século X ao Século XX (2007), refere das pp. 295 a 298, que a festa de S. Pedro era celebrada pelos pescadores das companhas (pensamos que tivesse tido o seu início próximo do século XVIII), na matriz, em 29 de Junho de cada ano (…). O préstito (…) deixava o lugar de honra para o andor de S. Pedro, onde mareava o simbólico barquinho – infelizmente desaparecido –, e com o Salvador na proa, em acto de louvada bênção à companha (…).

 

A partir de uma determinada data (não se consegue fixar…), a festa de S. Pedro passa a ter a designação de Festa do Senhor Jesus dos Navegantes e de S. Sebastião. Talvez tenha acontecido por meados do século XIX.

A mudança reflecte uma profunda alteração no tecido social da vila e o pescador passa a mareante no alto mar.

Em meados do séc. XIX, o ílhavo tinha deixado para trás o areal da Costa Nova.

Começámos, através das leituras feitas, a pensar que terão sido vários os barcos processionais a desfilar no préstito do Sr. Jesus dos Navegantes e Nossa Senhora da Saúde. Estamos em crer que este foi o último a fazê-lo, já então na Costa Nova.

De consulta em consulta, rapei da estante o Etnografia e Memória – Bases para a Organização do Museu Municipal de Ílhavo, (1933), em que Rocha Madahil, na p. 80, refere a presença de um barquinho na Exposição de Arte Ilhavense, em 1932.

(…) Tinham eles antigamente a sua festa em Ílhavo, ao seu patrono S. Pedro, e na respectiva procissão apresentavam o andor do barco do mar (…) E o barquinho com as miniaturas de pescadores aos remos, muito hirtos e aprumados, tombando com os balanços do andor, uma rêdesinha e uns rolinhos de corda à ré, junto ao arrais, passou a fazer parte da procissão de Nossa Senhora da Saúde.

Conserva-se ainda esse belo barquinho e esteve presente na Exposição de Arte Ilhavense de 1932; seria um acto de grande civismo e muito de agradecer, se o seu actual proprietário consentisse em depositá-lo no Museu; é uma peça valiosa pelas tradições que lhe estão ligadas e que ele representa e evoca. 

Barco rústico, algo desproporcionado, mas com sabor arcaizante e sacro, com apóstolos hirsutos, gigantes, para a embarcação, quase talhados a naifinha, de uma policromia enegrecida.

Com vestígios de pequenos motivos a ouro, próprios de arte sacra, é dono de uma beleza sui generis.

Parece-nos que terá mais de um século, princípios do século XX ou finais do século XIX (não há dados rigorosos).

Em madeira de tom acastanhado, tem o costado decorado com grinaldas florais, ricas em pormenores e apresenta nos dois bordos, também policromada, a cor de mel, num fundo mais escurecido, uma inscrição que reza VIVA A COMPANHA DOS LUIZES.

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2. VIVA A COMPANHA
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Falando em Exposição de Arte Ilhavense, em 1932, o jornal O Ilhavense não podia deixar de ter uma palavra no número de 3 de Abril de 1932 – A propósito da Exposição de Arte Ilhavense, em Sala Marítima, refere… Naquela sala, vimos (…) o barco dos pescadores que todos os anos vai na procissão da Senhora da Saúde.

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3. ...COMPANHA DOS LUIZES
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Seria um precioso elemento situar no tempo a Companha dos Luizes, mas por dados catados em livros e documentos, ela existiu entre 1808 (?) e 1930, ano em que ainda estava registada em livros da Capitania de Aveiro, existentes na Cordoaria em Lisboa. É um período muito largo que nos deixa algumas dúvidas.

Segundo várias fontes, dentre as quais Palheiros do Litoral Central Português de Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano (1964), na p. 73, por volta de 1808, o arrais Luís dos Santos Barreto (Luís da Bernarda), de Ílhavo, com a maioria das gentes que iam pescar a S. Jacinto, decide arriscar a sua sorte, em busca de pescarias mais proveitosas, a sul. Acaba por se estabelecer na dita Costa Nova, em frente ao Prado da Gafanha.

Também, por volta de 1808, o seu irmão José da Silva Barreto arriba com a sua companha composta exclusivamente por ílhavos, ao areal da Cova, em terras de Lavos. A companha dos «Luizes» rapidamente povoa o local, chegando a erguer uma exígua capela perto da Gala e a instituir a festa de S. Pedro, como padroeiro dos pescadores.

Rememorando a exposição «A Diáspora dos ílhavos» que o MMI exibiu em 2007, por ocasião do seu 70º aniversário, lembrei-me de um modelo de barco do mar, policromado, com o registo FF-1967-L, com Cristo e os Apóstolos, oferecido pela companha dos Luizes, quando ergueram uma capelinha na Cova/Gala, hoje a freguesia de S. Pedro.

Um pouco mais tarde, em 2011, resolvi dar uma volta pela Cova/ Gala, onde encontrei, na Capela, o dito barquinho.

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4. Barca dos Apóstolos, na capela de Cova/Gala
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Devoções idênticas com a presença na procissão dos oragos locais de barcos processionais, havia também na Costa da Caparica e na Ericeira, dentre outras, porventura.


5. Festa de N. S. do Rosário, na Caparica
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E tradição semelhante continua, com o desfile processional actual, na Costa Nova, mas com o Santo Amaro, em barco do mar, aos ombros de pescadores.

Ainda há uns dias fui ao Ciemar, na esperança de encontrar mais algum dado, e com a colaboração do Hugo, lá demos com uma separata do vol. XXXIII do A.D.Aveiro, da autoria de António Correia “A acção dos pescadores de Ílhavo, na Costa da Caparica”, de  Março de 1967, onde cita, na p. 10 que, como lembrança apenas ficou um barco meia-lua de S. Pedro Pescador, feito em madeira, por um carpinteiro de Ovar, e que é a cópia fiel em miniatura, dos primeiros barcos trazidos pelos pescadores de Ílhavo, mostrado em imagem anterior.

Não concordo completamente, porque os barcos mar com que os “ilhos”, foram ao longo do litoral, expandindo a sua longa diáspora, eram barcos de proa mais em riste, bem mais pontiaguda do que a bica da ré.

A.A. Baldaque da Silva cita na sua obra “Estado Actual das Pescas em Portugal”, 1891, na p. 396, a existência de barcos, ditos meias-luas, de altura de proa e ré, bem mais aproximada, na Costa da Caparica, com o seu tradicional olho, como decoração de proa.

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6. Meias-luas da Costa da Caparica

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Muitas hipóteses, relatos e citações, mas continuam muitas dúvidas.

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Propriamente da obra de arte em causa, pouco mais sei do que para trás colijo.

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Era indispensável contactar com uma pessoa da família Maia Mendonça; para me facilitar esse conhecimento, foi fortuito, mas proveitoso, um encontro com a esposa do Senhor Dr. Pires da Rosa, em que veio a lume a vontade manifesta da Família de depositar o Barco de S. Pedro no Museu, desde que todos os elementos da Família concordassem.

Lá lhe indiquei os passos a seguir e ninguém melhor para encabeçar o assunto que o próprio Dr. Pires da Rosa com quem vim a falar, colocando-lhe todas as questões que urgia saber e que seriam úteis e habituais na incorporação de uma peça em Museu.

Quem o teria construído? Quando? Desde quando residiria, ali, no nº 15 da Rua de Espinheiro, morada que foi do Sr. Tenente Alberto Mendonça e sua esposa Maria Casimira Gomes da Cunha?

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Testemunhou-me gentilmente o senhor Dr. Pires da Rosa que o Barco do S. Pedro terá chegado à sua família oferecido ao seu avô materno (ou talvez ao seu bisavô) por uns parentes, pescadores, que tinham na Costa Nova, conhecidos pelos "Luizes". Cá surgem mais uma vez os Luizes, da tal referida companha.

Ao que se lembra, desde sempre o Barco esteve em casa dos seus avós, Sr. Tenente Alberto Mendonça e sua esposa Maria Casimira Gomes da Cunha. Ele próprio, nascido a 4 de Outubro de 1946, é o neto mais velho e tem uma pequena fotografia dentro da embarcação, datada de Junho de 1947, aos oito meses e meio de idade, que só encontrou agora, passados uns doze anos.

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7. Belo registo
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E continua o relato: Na minha memória – há setenta e seis anos, portanto – nunca o Barco saiu da Sala de casa dos meus Avós. Saíra em tempos anteriores para a procissão do Senhor Jesus dos Navegantes em Ílhavo e para a Procissão da festa da Nossa Senhora da Saúde, na Costa Nova, onde seguia habitualmente montado em andor.

Estes dados conferem com a referência facultada pelo jornal O Ilhavense de 3 de Abril de 1932.

Sempre ouvi dizer aos meus Avós que a partir de certa altura o Papá (assim conhecíamos todos o meu avô em Família!) proibira a saída do Barco, porque o mesmo era pregado ao andor para ir na procissão e, por isso mesmo, estava a deteriorar-se.

No meu tempo – tenho a certeza – o Barco já não saía de casa. Vai sair agora pela primeira vez para o Museu, que é – para a Família – o local apropriado onde deve estar preservado e exposto.

Por isso nos reunimos, todos os netos que estão em Portugal, em casa de meus Avós e decidimos colocar o Barco em depósito no Museu desde já (como forma de o preservar e de o expor ao conhecimento dos ilhavenses), com vista a uma doação futura. O Barco é uma peça da Família, que nunca chegou a ser partilhada e que agora vai ter o destino que a Família tem por mais adequado.

É do nosso gosto deixar no Museu o Barco de S. Pedro, um Barco que – pensamos – é património cultural da terra de nossos Avós. De minha Mãe, – não sou capaz de evitar esta nota pessoal! – que sempre desejou em vida que o destino do Barquinho fosse o Museu de Ílhavo, pelo qual nutria um especial afecto.


Cumpre-se também uma vontade expressa pelo Dr. Rocha Madahil, em 1933, primeiro Director do Museu, e do Sr. Américo Teles, grande impulsionador da criação do mesmo e que creio que chegou a ir ver o barquinho, a casa dos seus Avós, há uns anos muito largos.

Foi um gesto louvável da Família Tenente Mendonça, o depósito da barca processional dos Apóstolos, no MMI, que teve lugar em Outubro de 2011.

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8. Barca já depositada no MMI
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Em Junho de 2013, dois habilidosos do maquetismo, elementos da AMI, António Marques da Silva e Francisco Paião, fizeram uma intervenção de emergência na barca, que acusava alguns danos visíveis. Mas não foi suficiente…

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9. Em intervenção, nas reservas do MMI
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Entre 2013 e 2023, como é natural, foi-se degradando pela acção do tempo, para além de uns bons achaques que já revelava. Resolveu a Direcção do Museu, com ordem da família depositante, entregá-la à Universidade Católica do Porto, secção de Conservação e Restauro, sob a orientação da Professora Carla Felizardo. Depois de a ter ouvido nas ditas memórias viajantes e da apresentação de diversas imagens, aguardamos com entusiasmo e ansiedade o regresso da Barca dos Apóstolos, que nos irá encantar, sem dúvida, mais do que já encantava.
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10. Com a Professora Carla Felizardo e suas alunas
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Talvez se faça luz em mais algum pormenor…

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Ílhavo, 3 de Outubro de 2011(3 de Março de 2023)

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Ana Maria Lopes

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domingo, 26 de fevereiro de 2023

Bateira de "recreio" NAMY

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As “NAMY” da minha vida…

São hoje objectos de museu as minhas bateiras.

Cada uma com a sua história e a sua época. Estão, presentemente, em exibição, na Sala da Ria do MMI.

A que época remontar?

A primeira, graciosa, apitorrada, branquinha e verde, a NAMY, A 7892. H existe pelo menos desde 1935, com 76 anos e pertencera, primeiro, a minha Mãe, com o nome de NENÉ. Tenho muita pena de nunca me ter vindo parar às mãos nenhuma foto dela com esse nome, mas sei bem que assim foi.

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NAMY, na Sala da Ria do MMI
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Foi na NENÉ que as meninas dos anos trinta, na Costa Nova, passaram a sua meninice na Ria, em competições de remo, em são convívio, no então Bico, nas coroas, na apanha de bivalves, à pesca de recreio, já que as espécies piscícolas abundavam, então, nessa época: grossas enguias, belas e espalmadas solhas, robalinho prateado, alguma tainha distraída e, frequentemente polvos de olhar fixo e aspecto repugnante. Era assim a nossa ria.

Notícia escrita, fidedigna, da sua existência, obtenho-a através de O Ilhavense de 15 de Setembro de 1935, em que aparece como participante, na modalidade caçadeiras, em grandiosa regata então efectuada na Costa Nova, no dia 15 de Setembro de 1935.

Lemava-a D. Felicidade Mano e era remador Mário Graça.

E todos os longos verões, a NENÉ ia para a Costa, enquanto passava os invernos bem acolhida e vigiada no travejamento dos armazéns da carpintaria da seca, onde se construíam e reparavam os dóris, sob a vigilância do sr. Zé Vicente.

Em 1943, nasci eu e fizeram grande desfeita à dona da embarcação. O meu Avô rebaptizara a bateirinha com o nome da neta – NAMY (Ana Maria), diminutivo que não pegou à nova proprietária.

Em documento oficial comprovativo do seu cancelamento, por más condições de segurança, em 10.7.1985, tive conhecimento exacto das suas dimensões – comprimento, 4.90 metros, boca, 1.14 m. e pontal, 0.30 m – e que tinha sido adquirida na Secção náutica do Clube dos Galitos, por 200$00.

Em 22 de Setembro de 1946, mais uma vez, foi concorrente das Regatas da Senhora da Saúde, na 3ª corrida das caçadeiras, com Maria Isabel Duarte Silva como timoneira e Ruy Peixe, aos remos, segundo o jornal da nossa terra (20. 9. 1946).

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Vaz Velho, Alcina Cachim e Manuela Vilão
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E assim começámos como as moçoilas do tempo da minha Mãe a usufruir da ria de uma forma directa e saudável, como hoje não é possível.

Algumas inovações: passeios até à Biarritz com aproveitamento de marés, banhocas reconfortantes, mergulhos da proa, travessias até à Bruxa a nado, com apoio da bateira ou a remo e tudo o mais quanto a imaginação nos despertasse fazer.

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O Zé Maria Vilão e eu
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No parecer de Alberto Souto, pelos anos 30, estas aprimoradas bateiras eram encomendadas pelos capitães dos antigos lugres de Ílhavo para que os filhos pudessem usufruir dos prazeres da ria, quando, em férias, na Costa Nova.

Era eu quem a amoirava com frequência, enfiando a argola de ferro no colorido moirão frente à casa de Verão. Tempos em que se recolhia, a nado!!!!!

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Em segundo plano, a NAMY amoirada – Postal dos anos 60
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Já casada e mãe do primeiro filhote, saboreámos os três os prazeres de uma maré viva, cheiinha, transbordante, reflectida, em que os roliços remos de forqueta cortavam a água espelhada.

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Na ria…
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Foi esta a vida da minha primeira NAMY, aquela com que tentei o Amigo Marques da Silva a recriar em miniatura, com as mãos que já lhe conhecemos. Parece uma jóia.

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Ílhavo, 19 de Abril de 2011 (26. Fevereiro. 2023)

Ana Maria Lopes

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terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Cozinha de bordo na Expomar 92, em Aveiro

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Hoje, em dia, nas preocupações gastronómicas, muito se fala em pratos de bacalhau, na confecção de petiscos com os seus derivados, na qualidade da famosa chora de bordo e outros. Comia-se bem? Comia-se mal? Sempre questões postas por jornalistas actuais, em várias entrevistas.

Aquando da montagem da primeira Faina Maior, em Novembro de 1992, não houve tanto assim, uma preocupação gastronómica, mas sim a procura das peças usadas, antigamente, a bordo, bem como a sua identificação e serventia. Depois de percorrermos as antigas empresas, desde Viana do Castelo ao Barreiro, que para lá tinham destas peças atiradas, foi, para nós, uma satisfação e um prazer, ao encontrá-las. A este propósito, outras questões vieram a lume, em depoimentos prestados pelos antigos cozinheiros, que nos apoiarem e trabalharam connosco:

- António Ferreira Gordo (1921-1997), ajudante de cozinha e cozinheiro no Vaz, Maria Carlota, Elizabeth, Senhora da Boa Viagem e Rio Alfusfueiro.

- João Arlindo Barreirinha Vagos (1927-2011), moço de câmara, ajudante de cozinha e cozinheiro no Argus, Hortense e São Gabriel.

- João Diogo Ferreira Labrincha (n. em 1921) moço de câmara, ajudante de cozinha e cozinheiro no Alcion, Paços de Brandão, Infante de Sagres e Vaz.

O primeiro painel expositivo a ficar pronto e a ser ensaiado, em Aveiro, na Expomar 92, a 21 de Outubro de 1992, foi a cozinha de bordo de navio tipo Hortense (1930) para 42 tripulantes, feita segundo os planos originais, com os materiais e técnicas então usadas na carpintaria naval.

Ficava integrada no próprio rancho, espaço destinado a beliches, onde dormiam os homens, e, onde, à mesa, eram servidas as refeições. Estas cozinhas integradas no rancho situavam-se na parte posterior deste, à amurada do navio. Em épocas mais recentes, passaram a ser isoladas dos beliches e chegaram até mesmo a ser mudadas para plano superior, o convés. Junto à antepara da ré, ficava o fogão, peça fulcral no funcionamento da cozinha. Grande fogão, funcionava a carvão de pedra, tendo sofrido uma adaptação, por volta dos anos 50, para gasóleo, combustível muito mais prático e limpo. Este era o original do navio Creoula (1937).

Com fornalha a meio, um forno de cada lado para o pão, e tanque de aquecimento de água doce, ainda suportava sobre o seu tampo, com oito discos, as grandes louças, peadas, para evitar os efeitos do balanço – peias, de ferro, que encaixavam ema apoios com sulcos apropriados.

O fogão, aceso com uns cavaquitos, e um bocadinho de petróleo, praticamente, na pesca, nunca se apagava – morria, mas quando o cozinheiro se levantava, dava-lhe uma mexedela com o ferro do fogão, punha-lhe mais carvão e estava sempre a andar. A fornalha, interiormente, era forrada a tijolo refractário, que além de isolar o ferro, tinha a vantagem de isolar o calor.

Pelo lado de bombordo, situavam-se umas pequenas tulhas de madeira, com tampa, onde eram colocados mais à mão do cozinheiro os alimentos que mais se gastavam – arroz, feijão encarnado, açúcar e grão.

Sobre as tulhas, havia prateleiras destinadas a louças menores, para o serviço de refeições. As maiores, as grandes bailas, tachos, cafeteiras, chaleiras, suspendiam-se em ganchos fixos nos vaus – o cozinheiro chegava a tocar-lhes com a cabeça. Ainda sobre as tulhas e suspensa dos vaus, uma rede de galinheiro facilitava a conservação das cebolas, ao longo dos meses.

Também a bombordo, um pequeno tanque de água doce, de zinco, servido por uma bomba de relógio, que ligava aos tanques de água dispostos no porão, sob o pavimento da cozinha.

A carvoeira, situada mais ou menos a meio navio, a estibordo do fogão, como que delimitando a cozinha, destinava-se a receber o carvão para abastecimento, que era guardado no pique do carvão, donde era trazido em baldes de boça e, mais tardiamente, em cestos de trol.

Num rudimentar lava-louças móvel, de zinco, suspenso no fogão, lavava-se a louça em água do mar, aquecida, por vezes, com auxílio de uma solução de potassa.

Do cozinheiro e ajudante dependia todo o “combustível” da tripulação, trabalho nada fácil, exaustivo, preocupante, mas rotineiro.

A alimentação a bordo, deficiente em frutas e verduras (que, por não haver frigorífico se gastavam nos primeiros dias após a largada), era pouco diversificada, embora existissem algumas diferenças apreciáveis entre as refeições de viagem e na pesca e as refeições da proa (para os pescadores) e as da ré (para os oficiais).

Em viagem, as refeições eram três: o almoço, a partir das sete e meia da manhã, o jantar, a partir das onze e meia, e a ceia, a partir das seis da tarde, sempre servidas em dois turnos.

O almoço, de garfo, servido no rancho, variava entre papas de farinha de trigo, açorda, papas de feijão, feijão guisado e feijão assado no forno.

O jantar constava de sopa (de feijão branco, vermelho ou grão e massa ou arroz, temperada com toucinho bem alto) e peixe cozido (quase sempre bacalhau seco, que ia de terra, ou pescada, besugo, pargo, amanhados e salgados pelos marinheiros dois dias antes de sair), só por só, ou acompanhados de batatas.

À ceia, voltavam a comer peixe acompanhado de grão-de-bico ou feijão frade.

E o pão de bordo? Feito todos os dias, amassado com água salgada, o grande pão de forma, às fatias, era comido rijo, para se comer menos; só o pequenino, o papo seco, era servido ao meio-dia.

Os dias iam passando e chegava-se ao pesqueiro; aí o horário das refeições estava condicionado à pesca. O almoço, sensivelmente o mesmo do de viagem, podia oscilar entre as quatro da manhã – hora dos “louvados” – e as nove ou dez horas, se a safra do dia anterior tivesse sido muito boa e a escala se tivesse prolongado até muito tarde.

A refeição volante que o pescador levava no foquim para o pesqueiro era constituída por postas de peixe frito, fatias de pão de forma barradas com margarina e azeitonas, à descrição do homem do dóri, que preparava o seu próprio farnel com os alimentos que o cozinheiro lhe apresentava. O café, conservado em garrafa térmica, ia aquecendo o pescador.

Antes da escala, o jantar, com sopa e peixe cozido – agora o bacalhau fresco, miúdo, pescado e escolhido para o efeito.

Depois da escala, a famosa “chora”, cozinhada com caras de bacalhau também fresco.

Todas as refeições eram acompanhadas por chá ou café que se fazia diariamente a bordo, sendo o vinho um costume mais tardiamente introduzido e com restrições.

Pequenas regalias distinguiam a quinta-feira e o domingo: o queque ao almoço e a carne guisada ao jantar, a carne salgada que vinha da Argentina, fervida três vezes em água salgada para perder o sal – carne salcochada.

De regresso, o esquema das refeições de regresso era o mesmo do da ida com maior ou menor recurso a certos géneros alimentícios, o que dependia do tempo despendido na pesca. O peixe agora comido era o bacalhau salgado para esse efeito, nos últimos dias de pesca.

Os pecadores também tinham, de vez em quando, os seus pitéus: – toninha guisada, cozida ou em bife, apanhada na ida, por altura das ilhas, mantendo-se, por norma, o rabo da toninha pregado no pau da bujarrona, até à entrada;

- a tartaruga, igualmente apanhada na ida, era também uma carne muito apreciada, porque idêntica à da galinha, mas com sabor a peixe;

- a lula primordialmente servia para isca, mas quando era excedentária, com autorização do capitão, também se cozinhava;

- da cagarra, ave marinha, se também com abundância, o pescador aproveitava as coxas e o peito, para assar; quando os ia buscar ao forno, por vezes, já lá não os encontrava, tão cobiçados eram.

A comida da ré, porque em muito menor quantidade era sempre mais bem cuidada: temperos mais apurados, batatas descascadinhas, pão e peixe frito sempre frescos. Vinho ao domingo, queques pequeninos, eram estes os chamados “mimos da ré”.

Os horários das refeições, em tempo de pesca também eram mais respeitados, porque os oficiais não saíam para o mar como os homens do dóri.

Dos derivados do bacalhau, que não eram usados à descrição, o cozinheiro preparava uns petiscos que, ainda hoje, os oficiais recordam: caldeirada de espinhas, caras fritas de escabeche, dobrada de samos, arroz de corações, buchos de bacalhau guisados.

Havia no chão uma panela de três pés destinada a derreter o chumbo para a feitura de singas e outras chumbadas. O chamado sino do rancho destinava-se a dar os “louvados” e a chamar o pessoal para as refeições.

Funcionava, assim, a cozinha de bordo.

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Aspecto geral da cozinha de bordo, na Expomar 92
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Passando os olhos pelas folhas de sala
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-A elegante maqueta do l/m “Aviz”

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De frente para a réplica da cozinha de bordo, na Expomer 92
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Ílhavo, 21 de Fevereiro de 2023

Ana Maria Lopes

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