domingo, 29 de dezembro de 2013

A propósito da vinda da «ílhava» para o MMI

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Relembrando...
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Último ensaio, em 15 de Novembro
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Ílhavo e a sua região de que tanto se fala como centro difusor de cultura marítima terão deixado, por via directa ou indirecta marcas na cultura marítima do nosso litoral.
Habituámo-nos desde cedo, quando visitámos zonas marítimas, para pesquisa etno-linguística, desde estudante universitária, a ouvir tecer algumas considerações relativas a Ílhavo e aos habitantes locais, mal se apercebiam que era oriunda da citada região.
E começámo-nos a capacitar-nos de que onde existia uma bateira existiu um ílhavo ou há vestígios, pelo menos, da passagem de um ílhavo.
Cremos mesmo que por Ílhavo tem havido um interesse crescente pela grande faina dos ílhavos no litoral, não tendo tido a exposição temporária, «A Diáspora dos ílhavos», no MMI, de 8 de Agosto  a 31 de Outubro de 2007 a aceitação desejada pela maioria dos interessados nesta grande questão da identidade local.
Virando costas à Laguna, por inóspita que estava, os ílhavos, com suas artes ainda algo rudimentares, fixaram-se junto ao mar. Aberta definitivamente a barra em 1808, vieram instalar-se no areal a que chamaram Costa Nova (arrais Luís Barreto, igualmente conhecido por Luís da Bernarda) com as companhas da xávega. Tão exímios se tornaram no manejo destas artes estes emigrantes da borda do mar, refere Senos da Fonseca, que o desejo de partir em busca de locais onde o peixe fosse mais abundante se tornou evidente (Senos da Fonseca, Ílhavo – Ensaio Monográfico – Séc. X ao Séc. XX, 2007, Papiro Editora. Porto, 2007, pp. 174 a 181).
A fundação da Cova e Gala por ílhavos tem-se apresentado um caso mais polémico, porque se tem baseado, de livro em livro, em afirmações não confirmadas por registos paroquiais estudados ultimamente pelo pesquisador Hermínio de Freitas Nunes.
A presença ou a passagem de ílhavos por Palheiros de Mira, também Raquel Soeiro de Brito a comprovou (Palheiros de Mira – Formação e declínio de um aglomerado de pescadores. Edição Fac-similada, Cemar. Praia de Mira, 2009, pp. 21 e 36), ao consultar Registos Paroquiais, concluindo que entre 1835 e 1870 as populações originárias de Ílhavo foram as que mais contribuíram para a formação do povoado.
Mas a sua característica de nómadas da beira-mar fez com que não parassem. Pela Nazaré também andaram, tendo contribuído para a sua formação. Na pequena monografia Nazaré e o seu concelho, Raúl de Carvalho, (Lisboa, 1966, p. 21), depois de algumas alusões aos pescadores de Ílhavo, referencia que estes, após terem abandonado as suas terras, em busca de melhor vida e mais fartura de peixe, constituíram os primitivos povoadores da Nazaré.
E Raúl Brandão, no capítulo dedicado à Nazaré de Os Pescadores (Edições Estúdios Cor, Lda. Lisboa, s.d., p. 160), afirma pela boca de Joaquim Lobo, que aquela gente viera de Ílhavo e recorda ainda que foram os cagaréus que povoaram os melhores e mais piscosos pontos da costa, vindo pelo litoral abaixo, aos dois e três barquinhos juntos, até ao Algarve.
Também tivemos conhecimento da influência que os referidos povos exerceram na Ericeira, visto que Joana Lopes Alves, ao ocupar-se da rede do linguado ou tresmalho, assegura ter sido trazida para a Ericeira pelos pescadores da Murtosa, que a usavam na sua terra (A linguagem dos pescadores da Ericeira. Junta Distrital de Lisboa. Lisboa, 1965, p. 57).
Mas não ficaram por aí. Também na Costa da Caparica, associando as pescas estivais de mar a fainas invernosas em rios e estuários, os ílhavos aí se instalam por volta de 1770, sendo referido por Helena e Paulo Nuno Lopes (A Safra. Livros Horizonte, Lda. 1995, p. 57), que no final do séc. XIX, trabalharam na Caparica, na pesca, mais de setecentas pessoas.
Igualmente Maria Alfreda Cruz ao ocupar-se do tresmalho, certifica que é conhecido, em Sesimbra, por «redes de ílhavos» designação que denuncia a sua proveniência (Pesca e Pescadores em Sesimbra. Centro de estudos Geográficos. Lisboa, 1966, p. 54).
Também por finais do século XIX, continuam a referir Helena e Paulo Nuno Lopes (ob. cit., p. 57) que os pescadores de Ílhavo chegam à costa alentejana, para aí trazendo as suas famílias, tendo vivido aí, em inícios do século XX, quarenta famílias.
Todos os anos chegam ao Tejo umas dezenas de barcos varinos – é o nome que dão a estas embarcações pequenas e rasteiras, com um mastro e proa levantada (…). Quando se levanta borrasca encalham o barco nas margens do rio e abrigam-se à proa, debaixo de um oleado encerado (não haverá aqui hábitos idênticos?), onde dormem, cozinham e consertam as redes.
Também emigram para o Tejo barcos «ílhavos», que são maiores e andam à pesca da sardinha entre o cabo da Roca e o Cabo Espichel. E há muitos pescadores da Vieira que vão para os campos de Vila Franca e Santarém pescar o sável. Os da Borda-d’água chamam-lhes «avieiros» – ascendentes que ficariam a viver nos seus barcos até ao último quartel do século XX.
Francisco Oneto Nunes (Vieira de Leiria – A História, o Trabalho, a Cultura. Edição da Junta de Freguesia de Vieira de Leiria, 1993, p.174), baseando-se na informação recolhida nos registos paroquiais da freguesia de Vieira de Leiria refere que desde 1911 até 1933, os livros de registos de óbitos indicam o falecimento de 19 indivíduos já de idade avançada, cujos pais eram naturais de Ílhavo, Mira, Tocha, Quiaios, Figueira da Foz e Lavos. Oneto Nunes sublinha a existência, em 1790, de dois barcos de pesca, que habitualmente costumavam pescar nas costas de S. Jacinto, de fins de Junho até Fevereiro, e que seguiam depois para o Tejo.
Parece que a ida, se bem que temporária de ílhavos para o Tejo, começa a ser incontestável, porque registada por alguns documentos e estudiosos.
Também fomos recolhendo alguns testemunhos orais. Ao entrevistarmos, nos anos 80 do século passado, na Murtosa, Joaquim Maria Henriques (Raimundo), construtor famoso de embarcações lagunares, aí nascido em 1909, testemunhou-nos que «algumas vezes se deslocara com o pai a Peniche, Setúbal, Alcácer do Sal, Vila Franca de Xira, Carregado e Salvaterra de Magos para a construção de bateiras que os murtoseiros utilizavam, quando para esses locais iam fazer a safra do sável».
Também A. A. Baldaque da Silva, a quem é atribuída uma pesquisa extremamente criteriosa em 1886 (Estado Actual das Pescas em Portugal – A Pesca Marítima, Fluvial e Lacustre em Todo o Continente do Reino, referido ao ano de 1886. Lisboa, Imprensa Nacional, 1891, pp. 197, 240, 241, 287 e 403), faz inúmeras referências ao carácter emigrante dos povos da região da Murtosa, Ílhavo e Aveiro. Ao ocupar-se da rede sardinheira, afirma que os pescadores ílhavos que emigraram para Setúbal, lá usaram uma sardinheira (rede de emalhar sardinha), de menores dimensões. Averiguou também em inquérito directo a que procedeu que trinta barcos ílhavos, tripulados por 450 homens, depois da pesca costeira à tarrafa, iam pelo rio acima para a pesca do sável. Eram também os pescadores ílhavos que emigravam para a enseada entre os cabos da Roca e Espichel e aí usavam, nuns barcos com o seu próprio nome, a rede de cerco volante, designada por tarrafa.
Sobre este barco ílhavo (também conhecido por bateira ílhava), refere-nos que era um barco de fundo chato, construído nas margens da ria de Aveiro, com um compartimento fechado à proa, para abrigo de parte da tripulação, com mastro a meio, aparelhando vela latina de pendão, navegando mais vulgarmente a remos, movidos por três a quatro homens. Empregam-se muito na pesca da sardinha, na enseada de Entre cabos da Roca e de Espichel, durante o inverno, usando a tal rede denominada tarrafa.
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Aprestos por quem sabe…
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É, no entanto, o tresmalho (rede de emalhar formada por três redes sobrepostas) a rede mais difundida pelos ílhavos, que em grande número emigraram durante a época do sável para o Douro, Tejo e Sado, continua Baldaque da Silva.
Todas estas citações elencadas não pretendem ser mais do que um ponto de reflexão.
Ainda há bem pouco tempo, ao abordarmos o livro Canoas do Tejo de Luís Sande e Pedro Yglesias de Oliveira (Edição da Câmara Municipal de Cascais, 2009, p. 92), achámos curioso o parágrafo que passamos a transcrever – As bateiras são embarcações pequenas, com cerca de cinco a seis metros, com uma construção muito simples, que foram introduzidas no Tejo pelos avieiros, ou cagaréus como eram conhecidos, que eram comunidades que vieram da zona de Aveiro e se instalaram nas margens do Tejo. Viviam em pequenas casas palafíticas, construídas em cima de estacas e nas próprias bateiras. Ainda hoje existem avieiros a viverem nestas condições e a pescar em embarcações que não têm sequer motor auxiliar.

E assim se foram expandindo os ílhavos…os ditos colonizadores da areia…– tínhamos por cá estas notas…outros terão outras… e documentos, para enriquecer o caudal da diáspora dos ílhavos.


A. Esteves e Marco Silva içam a vela…
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Imagens - Da autora do blogue 
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Ílhavo, 29 de Dezembro de 2013
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Ana Maria Lopes
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terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A «ílhava» estará no Museu Marítimo de Ílhavo

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É com encanto e magia que levantamos a pontinha do véu. No MMI, quatro pendões e uma tela exteriores anunciam a chegada da ílhava.
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Em época natalícia, propensa a surpresas, o Museu Marítimo de Ílhavo recebe a peça de grande porte que há muito lhe faltava, pelas mãos da Associação dos Amigos do Museu.
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Por enquanto, apenas se sabe: – a ílhava está no Museu a partir de 11 de Janeiro de 2014.
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Ílhavo, 17 de Dezembro de 2013
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Fotos: Etelvina Resende
Ana Maria Lopes
 

domingo, 15 de dezembro de 2013

Ainda a propósito do MARESIAS...

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Troca de impressões (por e-mail) entre o Autor e AML, há 3 anos...


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AML – … Uma realidade para a qual eu acho que teria algum jeito (se é que tive), quando estivesse desempregada, era ajudar-te a seleccionar poesias tuas, para publicação, fazer-lhe a análise e  aquele arranjo final gráfico de que muitas vezes carecem. Pois, se não mais as lês,… fica por fazer. Não era modificá-las sem autorização, claro.
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AML – Dou-te um palpite – a solidariedade também tinha de entrar, … a liberdade, a meninice, etc., outros temas. Mas aquilo de que gosto mesmo é das poesias  com a fluidez da água, com a ria, com o luar, com o mar, com a areia, gaivotas, gaivinas e outros bandos. Onde és melhor que tudo, para mim, é no amor (jogos amorosos), um hino à beleza da Mulher (só és bom, em poesia, nota!). Tem muito sumo, mesmo que não seja para ninguém beber.
11. 12. 2010
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SF Não compreendo ainda bem, quando e porquê, me sai isto. Tenho muito pouco feitio de poeta. E por o reconhecer …não sei se valerá a pena. Olha entretém-te, se Te apetecer. Gostaria de ver.
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SF O que eu disse é que tudo tem o seu tempo. E que não me sinto capaz de me apresentar como um poeta.
13.12.2010
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SF Achas que  têm tiques de poeta? Coitado de mim. Que nem tenho a quem oferecer isto (Natal 2010 – À Ria).
15.12.2010
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AML – O Teu grande amor é a Ria.
Tudo emerge da Ria e tudo submerge nela.
A Ria está no Amor, na Amizade, na Saudade, na Liberdade, na Vida, na Angústia, na Tua Terra, na Natividade, será...? Até a falta dela se sente no «Outoniço» que és, quando regressas da Costa Nova.
18. 12. 2010
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AML Às vezes, parece que te entendo melhor em verso do que em prosa.
Ontem, dizia-te que a Ria era dominante em toda a tua poesia. Toda, toda não direi, mas é um tema  muito forte.
Encaixar a tua produção nos doze temas seleccionados, para facilidade de consulta (não esquecendo a ordem cronológica), nem sempre é fácil. Ou, por outra, é mesmo bastante difícil. Se um poema foca o tema vida, também toca na angústia, na liberdade, na saudade, no amor...Isto é um exemplo.
Escolher o sentimento dominante, oh, oh!, quantas leituras cuidadas e remoídas!
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Acho, não sei se consigo minimamente explicar, que o conjunto dos teus versos poderia ser representado por um conjunto de círculos concêntricos de diferentes dimensões, em que um maior fosse o dominante, o Amor (uma espécie de um diagrama) …
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Outros, os restantes, de dimensões menores e diferentes, interpenetravam, interceptavam o central e, daí nasciam áreas comuns, em que os mesmos temas estariam presentes.
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Por e-mail não dá… Percebeste alguma coisa?
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Apesar de não ter grande jeito para desenho, com um lápis ou um compasso, representava-te muito mais depressa esta ideia. Seria uma espécie de representação gráfica.
Não sei se concordas minimamente com o que te venho dizendo.
Sinto que não andarei muito longe disto.
Se chegar a indexá-los, escrevê-los e imprimi-los, em versão caseira, para teres na mão, de consulta fácil, talvez consigas ver  melhor.
Ou então, já sabes mesmo que é assim. Ou então até achas, e só para contrariar, dizes que não é nada disto.
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Dás-te muito mais a conhecer em verso do que em conversa, claro, para quem julgue conhecer-te um bocadinho. Mas, por isso, não deixes de versejar…
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É uma expressão muito nobre, quando se sabe ser. Não é a parente mais pobre da literatura.
 
19.12. 2010
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SF Mas (poesia) andas lá …é quase isso. Mais um pouco de solidão …e angústia por ter ficado aquém.
- Anda, pensa….
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AML - É assim… não tive Curriculum Vitae para apresentar o MARESIAS, nem queria fazê-lo, mas o que é certo (e que degustei), é que o dei a lume, depois do autor, claro.
Et voilà o que ia pensando… há 3 anos (em Dezembro de 2010, como as datas comprovam).
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Ílhavo, 15. 12. 2013
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AML
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PS – Ontem, sem contar, fui apanhada numa «ratoeira», ao ser-me pedido que lesse este texto com o Autor, na Livraria Bertrand, no Fórum, numa segunda apresentação do Maresias.
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segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Uma janela para o sal - IX

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Chagas de sal
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– Ai moço de outrora, quão velha é já a tua história...
Foste tecendo as tuas memórias por essas praias salgadas, entre lamas e sal com os pés em viva chaga. Mas, são teus pés, teus braços e teus ombros, a força que recolhe e transporta esses brancos cristais.
Foste criado, educado e forjado pela intensa canícula, curado pela moira e endurecido pelo vento, tal como cristal de sal – e és tu já sal!
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– Ai moço,
teu corpo moçoilo é belo – tenro, mas forte: teus músculos retesam, tua pele brilha, teus cabelos ao sol resplandecem. A beleza mora aí, nesse corpo e nessa alma – és um dom da Natureza.
E serás tu, já moço-homem, capaz de obter o teu sustento?
 
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– Ai moço,
que ainda crês no saber ancestral e aprendes a faina do sal
Aqui te entregas à lida do rer, curvado a jeito, para com jeito colheres os virgens cristais com a rasoila e puxá-los pelos meios, para o meio, para o duro vieiro, arrastando-os por esse caminho que leva ao tabuleiro.
Aí o amontoas em pequenos montículos de sal e o deixas a escorrer as moiras.
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– Ai moço,
quão branco e amargo é esse oiro que acabas de rer e que escorre entre teus pés acabados de nascer...
Mas é assim que te entregas à marinha, que é mãe e rainha – a ela, que te ensina e dá o pão.
 

– Mãos de moço-homem és, rasoila! E é com ele que, todos os dias mergulhas na moira, e te arrastas por essas praias de sal num vaivém interminável.
São ambos matéria que se curte e entranha em duro ambiente, entre elementos de água, sol e vento – entre o sal.
 

– Ai moço,
quão belo, mas cruel é esse salgado que te rouba a inocência, que te corrói o corpo e a alma, mas que te dá o pão da vida e te faz homem – são as «chagas da vida», dizem...
Ao tempo, com o tempo, curtes a tua cútis, endureces-te e moldas-te ao sal – só assim sararão essas feridas que agora tingem, de vermelho, o branco sal.
É esse sal que escorre entre teus pés, que te salga, te corta, te marca, te retesa essa pele de tenro menino e a enruga antes do tempo, curtindo-a de bronze salgado.
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A seu tempo, moço, «homem de sal» serás!
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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31 | 07 | 2013
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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domingo, 1 de dezembro de 2013

Uma janela para o sal - VIII


A dança das águas…
 
Depois da festa, volta o marnoto para o bailado das águas, numa relação íntima com a sua amada: a dança das águas não pára, é diária.
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Nos cristalizadores, a água lá fica por uns dias depositando o sal, até à redura.
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Novas águas os banham – a renovação é constante. É preciso limpar, depurar, conduzir os sais líquidos e rer os sólidos, voltando a encher esse ventre produtor, dia a dia, de sol a sol, enquanto houver fertilidade...
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E eis que a marinha chora...
São os olhos da marinha, esses lacrimais chorosos, que o marnoto abre com o muradoiro – homem crente e engenhoso.
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É por eles que as águas salgadas e espumosas escorrem e transcorrem serpenteando pelas carreiras, formando regos ao longo da crosta endurecida e ressequida, em craquelé.
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Num simples abrir e fechar de «olhos» e fendas, o mestre abre e activa um labirinto de canalizações que alimentam, que escoam, que comunicam entre si – corre vida pela marinha! –.
 
 

São águas velhas e novas – escoam-se e renovam-se.
São entroncamentos por onde escoam, escorrem e dançam ao sabor da necessidade dessa mãe produtora e que, sob o olhar atento do marnoto, formam um complicado, mas admirável bailado de espuma salgada. 
 

Tão belo cenário atrai! – emprenha-se a marinha que, em breve, dará o sal da vida à gente que nela trabalha.
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Marnoto, que curas, pisas, acamas e alisas esses parcéis, abre agora a porta à água fértil. Deixa esse ventre embeber-se, deixa humedecer o craquelé...
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Solta essas águas! Deixa-a «parir»... produzir o que de mais belo te dá a laguna, o branco sal!...




De vigília, em cuidados com tão delicada paridura, ele se mantém.
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És tu, marnoto, que controlas as águas, que supervisionas a paridura dos alvos cristais e rezas para que o tempo lhes dê tempo para a cristalização.
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E assim se faz vida nessa marinha, tua rainha, que, de sol a sol, te obriga a abrir, a tapar, a sulcar... sempre vigilante. És seu criador, cirurgião, seu amparo e parteiro.
Produz sal, marinha minha – sussurras-lhe tu...
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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23 | 07 | 2013
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

MARESIAS | Senos da Fonseca



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A Associação Chio-Pó-Pó, Senos da Fonseca (autor) e João Batel (ilustrador) têm o prazer de convidar os Amigos a estarem presentes, no dia 22 de Novembro de 2013, pelas 21 horas, na apresentação do livro de poemas Maresias, no Auditório do Museu Marítimo de Ílhavo.
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Inspirado conjunto de poesias, recolhidas e seleccionadas, a partir de 2006, subdivididas em doze temas, sobretudo, oferecidas à ria, ao mar, ao amor, à saudade, à inquietude, à solidariedade, à Natividade, à liberdade e a outros…
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Como assume o autor na Introdução, os momentos da criação destes poemas foram, quase sempre, o fim da noite. Por isso, eles são um pouco vagabundos, apesar da ordenação.
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O poeta, que prefere (mais) parecê-lo do que sê-lo, encontrou sempre na ria, bodo sensorial inebriante, o êxtase para se confidenciar em verso.
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O palco estará cheio de «amigos» para falarem aos amigos presentes dos impulsos poéticos do autor.
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Ílhavo, 20 de Novembro de 2013
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Ana Maria Lopes
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domingo, 17 de novembro de 2013

Apresentação da «Terras de Antuã», na Câmara de Estarreja

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Ontem, sábado, por ocasião da comemoração do 494º aniversário da outorga do Foral à vila de Antuã, por D. Manuel, em 15 de Novembro de 1519, foi apresentado o número sete da revista Terras de Antuã – História e Memórias do Concelho de Estarreja, mais uma vez com uma assistência numerosa, no belíssimo Salão Nobre dos Paços do Concelho, numa sessão presidida pelo Presidente da Câmara Municipal de Estarreja, Diamantino Sabina.
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Este VII volume, fim de um ciclo,  é constituído por 13 artigos de dezasseis autores, cujas temáticas vão desde a arqueologia, passando pela arte popular, arte sacra, biografia, conflitos sociais, documentação, construção naval, emigração, entre outras.
Para nós foi gratificante participarmos com o singelo artigo sobre o convívio que fomos tendo desde os anos 80, com o prestigiado Mestre Henrique Lavoura, de Pardilhó, construtor de machado e enxó, até à desactivação do seu estaleiro. Foi sobretudo a construção do barco moliceiro ALFREDO REBELO, que acompanhámos, de que ele nos foi fornecendo todos os pormenores, desde a colocação da tábua da quilha no picadeiro até ao bota-abaixo, na Ribeira da Aldeia. Memórias recentes que, depressa, se tornarão longínquas.
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No estaleiro de Mestre Henrique Lavoura
Desta vez, a capa da Terras de Antuã apresenta uma imagem do Dr. Francisco Barbosa da Cunha e Melo, destacado eclesiástico, natural do concelho de Estarreja, que, para além de Cónego da Sé de Braga, presidiu à Comissão Organizadora do Monumento da Imaculada Virgem do Sameiro, naquela cidade.
Temos o prazer de colaborar com a revista, sabiamente dirigida pelo Dr. Delfim Bismarck, desde o quinto volume, sempre com matérias distintas, relativas à construção naval.
Congratulamo-nos, este ano, com o facto de haver cerca de quatro artigos sob o mesmo tema e com a notícia de grande parte do espólio de construção naval do Mestre Lavoura ter sido doado, pela família, à Câmara de Estarreja, estando, presentemente à guarda da Junta de Freguesia de Pardilhó, depois de ter sido devidamente inventariado – limpo, tratado, preservado, fotografado, etiquetado, medido e descrito, aguardando futura musealização.
Regressámos de Estarreja, com o espírito mais leve, mais arejado e com novos projectos em mente.
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Ílhavo, 17 de Novembro de 2013
Ana Maria Lopes

domingo, 10 de novembro de 2013

A apanha do «crico» na Ria de Aveiro

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A apanha de bivalves na Ria de Aveiro anda na ordem do dia, sobretudo por causa das interdições devidas à presença de toxinas marinhas. (DA de 5. Novembro.2013).
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A nossa ria, desde muito cedo, foi rica em bivalves, tendo-se tornado numa riqueza piscícola, que deu subsistência a uma quantidade grande de pescadores, que mais se interessaram e dedicaram por aquela actividade pesqueira. O berbigão, a amêijoa, o burrié, e até a ostra em tempos recentes (avistam-se viveiros, mesmo da minha varanda da Costa Nova) ali encontraram nas águas lagunares um bom habitat. A sua apanha, sobretudo do berbigão, na gíria, conhecido por crico, é um cenário com que deparamos frequentemente, mesmo a partir da curva da Biarritz. Actualmente, esta captura não me tem atraído tanto, se bem que seja muito intensa (vê-se com frequência), porque as embarcações usadas já são quase sempre as modernizadas chatas, em fibra de vidro, menos atractivas para mim.
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Ali, pelo princípio do século XX, as embarcações utilizadas com tal finalidade eram, normalmente, as ditas bateiras mercantelas, a que se adaptava, à época, à proa, um instrumento chamado sarilho, de presença inconfundível, passando a chamar-se de bateiras berbigoeiras. Mas, confesso, nunca vi nenhum, a não ser em modelos ou em algumas imagens, poucas, não de grande qualidade.
Foi, sobretudo, numa miniatura do MMI, construída por Porfírio da Maia Romão, sem escala, em 1934, que memorizei bem, e, bastante mais tarde, na miniatura feita pelo Capitão Marques da Silva, à escala de 1/25, segundo plano do Museu de Marinha de José Pessegueiro Gonçalves, de 1923, que apreciei o sarilho, em pormenor.
Este era auxiliado pela cabrita ou ganchorra (em locais mais profundos), na apanha do berbigão, num processo que, pelas descrições lidas, sempre achei complicado.
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Mas, ... adiante…, não foi propriamente isto, que me fez escrevinhar.
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Noutro dia, remexendo «os meus baús», estes assuntos sempre me interessaram, encontrei umas imagens, dos anos 80, na Costa Nova, em que o berbigão era apanhado, com as ditas cabritas, mas a bordo de que embarcações? Suspense…vejamos.

Olha o belo crico. Ena tanto!

Ena!...que quantidade de crico capturado para bordo de um dóri (sobras da pesca do bacalhau, à linha…), bem nítido, onde é possível apreciar e anotar alguns pormenores.
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O CRISTINA II era um dóri já adulterado e adaptado à pesca lagunar, com coberta de proa e painel de popa para aplicação de motor fora de borda, mas que ainda evidenciava, com clareza, o tabuado trincado, que sempre ostentava e o caracterizava. Também se vislumbra a peça metálica (o bronze), onde se enfiavam as forquetas, que sustinham em rotação, a parte central dos remos. E uma bela fateixa de quatro patas e quatro unhas, sobre a coberta da proa! É nítida e mete raiva!
A referida cabrita pode apreciar-se bem na mão do pescador, constituída por uma longa vara a que se prende a travessa de um ancinho metálico, de onde sai um arco em semi-círculo, que sustém um saco de rede de cerca de um metro de comprimento, com um rabicho, no fundo, que facilita a manobra do despejo do bivalve, depois de ter sido, esforçadamente, cravado e arrastado pelo fundo da ria, suportado no ombro arrojado do pescador.

Dóri de popa cortada
Imagem extremamente explícita da captura, em que a embarcação também costumava estar fixa a duas longas e pujantes varas. A bateira caçadeira que a imagem seguinte apresenta, nessa mesma época, também se dedicava à mesma faina.
 
E agora, a bateira…
Às vezes, interrogo-me – será que eu, na Costa Nova, pelos anos 80, ainda tão jovem, não tão teria nada mais interessante que fazer do que andar a «pescar» e fotografar pescadores nas suas fainas? Claro que tinha e ia alternando. Caso contrário, também não me alegrava, agora, de encontrar estas «pequenas relíquias» de um passado recente, ao vasculhar «os meus baús».
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O que encontrarei mais? Não sei, ainda não acabou… Vamos a ver o que está dar…
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Coincidência…quando cheguei a casa tinha uma chamada de atenção para um blogue sobre a apanha do crico. Mas eu também já tinha este pensado… Postei-o. Um não invalida o outro. Completam-se. E cada um cabrita o crico a seu modo.
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Imagens – Da autora do blogue, nos anos 80
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Ílhavo, 10 de Novembro de 2013
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Ana Maria Lopes
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domingo, 3 de novembro de 2013

Uma janela para o sal - VII

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A botar a marinha a sal
- Ai marinha, és mãe e rainha: crias e divides-te em ordens...
 
- Armazenas, na tua comedoria, todo o alimento de que teu forte e extenso corpo necessita para a paridura do sal a água da laguna.
Renovas-te de águas «salinas» a cada maré viva, tanto em lua nova como em lua cheia.
Ordenas ao mandamento evaporador, a filtragem das impurezas. Dele escorrerá somente o líquido salgado, depurado, tanto quanto necessário, para o teu ventre – os cristalizadores. Aí é onde darás à luz, sob sol intenso e influência de férteis ventos, os brancos cristais que encherão canastras e barcos, não sem antes embelezarem a tua eira, com alvos e fartos «seios» de fertilidade.
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O dia da botadela está a chegar...
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- E eis que aos cuidados do homem marnoto, te entregas e te preparas para o grande momento...
Areiam-te as praias com fina camada, esburacam-te as travessas de lama dura, abrem-te e fecham-te portais, passagens de águas...
E é belo ver essas águas correrem, escorrerem, dançando por entre os teus regos, refegos, canejas e bombinhas, tubagens belo engenho do homem marnoto.
E é admirável ver esses homens que correm de um lado para o outro, em grande azáfama, conduzindo, controlando, vigiando essa enxurrada de águas férteis, de sal líquido, que vai invadindo as peças do teu reticulado corpo, ousado, mas bem pensado.

E eis que te botam a sal!
É dia de festa, é o dia da botadela na marinha – vinde convidados para a mesa!
 

Primeiro, são homens que areiam, alisam, com pá do sal esses parcéis, qual manto que irá suportar as investidas das águas, de sais impregnadas, e o vaivém dos rodos, na rapação do primeiro sal.
São essas praias areadas que protegem os brancos cristais das escuras lamas, suas camas, nas primeiras coçadelas – em breve ganharão camisa...

 
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Depois, é chegada a hora de abrir os portais à safra, à produção do oiro branco que irá alimentar as bocas das gentes que ali trabalham e dela dependem.
E é nesse momento que se valoriza um homem de saber feito, afeito ao árduo e inteligente trabalho de dirigir, conduzir e tomar o pulso da marinha, sua rainha.
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 Delicada operação, esta!
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De fenda em fenda, com precisão de cirurgião, o marnoto «sangra» a marinha, fá-la escorrer, banhar-se nas águas impregnadas de sais, conduzindo-as pelo emaranhado de encanas – ora abre, ora fecha, com a pá do tabuleiro, esses portais, até a botar a sal.
 
 
O marnoto é homem de arte, a da salinagem. Torna-se, assim, ágil nos movimentos e rápido nas decisões. Executa com precisão tarefas das quais dependerá o bom resultado da safra.
E é vê-lo correr por cima de barachas e machos.
Habilmente abre tabuleiros, mandamentos, arria águas e deixa-as sabiamente serpentear pela marinha. Saem da ria para a comedoria, conduzidas, pelo natural desnível, por uma encruzilhada de tubagens, de regos e de canejas, por aberturas feitas a preceito. Percorrem o mandamento e nas andainas, abastecem os alimentadores e cristalizadores, chegando na quantidade exacta, com a densidade certa.
E eis que as águas concentradas penetram, encharcam, atravessam e alastram pelos meios areados, descendo da marinha nova para a marinha velha.
É dia de alegria! Ao fim de um árduo trabalho de preparação, a marinha enche-se de encanto e de vida, torna-se fértil, tal como uma mãe que prepara o seu rebento.



 
Chegou a hora de os convivas confraternizarem e comemorarem: é a festa, é a botadela!
São família, são amigos, são vizinhos, são moços, são marnotos…ali estão todos os que sentem o sabor do sal.
E é nesta mesa, no malhadal, posta à sombra do palheiro, que decorre a festa de comes e bebes. É neste momento que esta gente repousa, depois da exaustão, mas não por muito tempo...
E é o palheiro a casa protectora do marnoto e seus moços, tanto em dias de forte canícula como de nortada. E, todo ele é humilde – de chão térreo, outrora coberto a bajunça e de madeira construído.
Mas foi, e sempre será, o porto de abrigo para homens e alfaias – este, vaidoso, até nome tem! – BRANCA CARABELA.
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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09 | 07 | 2013
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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