domingo, 29 de novembro de 2020

"Partiu" o Amigo e Confrade Zé Cachim

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O domingo acordou triste, para mim. Uma notícia mais do que esperada…  tornou-se inesperada. “Partira” o Amigo e Confrade Zé Cachim.

José Manuel Bastos Cachim, o Confrade “poeta” da Confraria Gastronómica do Bacalhau, nasceu em Ílhavo, em 7 de Novembro de 1936.

Frequentou a escola primária de Cimo de Vila, o Liceu José Estêvão, a Universidade de Coimbra e a Universidade do Porto, onde se licenciou em Engenharia Mecânica.

Reformou-se, enquanto estava na Portucel, na Figueira da Foz.

Entrou na Confraria Gastronómica do Bacalhau, como Confrade Efectivo, no 1º Capítulo no ano de 1999, tendo colaborado em várias iniciativas com destaque, com as centenas de “versalhadas” temáticas com que, de improviso, alegrava as reuniões confrádicas.

Em 22 de Janeiro de 2005, editou o livro de versos “Há Gaivotas no Mar”, que teve o apoio da Autarquia, Junta de Freguesia, Santa Casa da Misericórdia e da Confraria Gastronómica do Bacalhau. Edição esgotada!

Homem com H grande era muito querido em Ílhavo.

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Ílhavo, 29 de Novembro de 2020

Ana Maria Lopes

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terça-feira, 24 de novembro de 2020

INÁCIO CUNHA - O grande dia!... 2 (Cont.)

Cortado o cabo a que fixa o berço onde pousa o navio, pela multidão dos presentes paira um sussurro de expectativa: o saber se o berço desliza pela carreira. Há momentos, breves segundos, em que o navio parece soluçar e ganhar forças para se atrever a deslizar no plano inclinado.

Ganha a impulsão suficiente, capaz de ultrapassar o atrito das forças em questão; o navio arranca, primeiro hesitante, logo depois num movimento redobrado. E lá vai…

Todo o mundo fica suspenso: – a sua entrada na água.

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Entrada na água

 

A popa mergulha na ria, momento crucial que testa a sua estabilidade.

Tomba? Não tomba? E eis que com uma ou outra ligeira inclinação, o navio desliza soberbo, leve, parecendo apressado, afastando-se da carreira.

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Começa a flutuar…
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Momento de azáfama em que os rebocadores FOZ DO VOUGAproa) e CORONEL GASPAR FERREIRA popa), se apressam a lançar cabos para o agarrar e trazer de volta.

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Rebocadores, ao serviço…
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O navio suspende, "ferro a pique", não vá o diabo tecê-las e ser necessário uma manobra de emergência para o fundear de imediato. Agarrado de proa e de popa em manobra conjunta, o INÁCIO CUNHA aproxima-se do cais que lhe está destinado para os trabalhos de acabamento.

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Majestoso e flutuante
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Quando há uns anos, abordámos em passeios lagunares, os Estaleiros de S. Jacinto, quem ousaria dizer que naquelas carreiras deslizaram centenas de navios saídos das mãos daqueles que tão sabiamente lhes sabiam dar forma e vida.

Quando, em 1997, o arrastão já quase com trinta anos, foi vendido ao Grupo Silva Vieira, tendo sido registado com o nome de JOANA PRINCESA, lá se foi, com mágoa, «um pedacinho» de mim.

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Ílhavo, 24 de Novembro de 2020

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Ana Maria Lopes
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domingo, 22 de novembro de 2020

INÁCIO CUNHA - grande dia! - 1

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Começar é fácil…e depois? Como transmitir tanta emoção? Faz hoje 51 anos.

Dia zarro, em que a ria estava encabritada, toldada pela mareta, que batida pela surriada vinha respingar nas vidraças das janelas da lancha. Nas caras de alguns convidados o balanço da embarcação quando entrou no canal, com a maré a bater-lhe pela amura e a sulada a bater-lhe pela amura de popa, registei algum empalidecer e até alguns gritinhos logo abafados, por vergonha dos restantes. Desembarcados no cais, lá foram os convivas, de procissão até à carreira, onde majestoso, pousado no seu berço de construção, o arrastão Inácio Cunha esperava a benzedura, o partir da garrafa na roda de proa para então deslizar, majestoso e apressado ao encontro da água por que há muito ansiava. Na sua construção gastaram-se mais de 365 dias (a quilha tinha sido assente em 6 de Novembro de 1968), até que as suas formas elegantes, lançadas, esguias e harmoniosas, ficassem, por fim, acabadas.

Bota-abaixo é sempre sinónimo de nascença, dia festivo a recordar na vida da embarcação, data que ficará para sempre gravada na sua ponte de comando. Essa satisfação ajudava os presentes, a suportar o dia invernoso de fins de outono, de fortes bátegas tocadas pelo vento.

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Na carreira…
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Dia 22 de Novembro de 1969. Faz hoje 51 anos. Pelas 15 horas, a maré não espera. O navio, cuja mostra das obras vivas tornava ainda mais imponente mostrando o arcaboiço apropriado para o desempenho da exigente tarefa que lhe estava destinada – o arrostar com as tempestades nos mares do Norte, quando não o abrir gelo num campo branco que teria de ser quebrado para sua passagem e libertação – não deixava de impressionar.

Em dia festivo não faltava o mariato, código sinalético expressamente colorido, vistoso, próprio para chamar a atenção ao receptor da mensagem, esvoaçando ao vento, que conferia um colorido da proa à popa.

O Inácio Cunha, de seu nome, era uma moderna unidade, arrastão de arrasto pela popa, construído em aço, destinado à pesca longínqua.

Foi a construção nº 83 do Estaleiro, tendo uma arqueação bruta de 1547 toneladas, comprimento FF de 80,32 metros, boca de 12,50 e pontal de 8, 09 metros. Dois motores Diesel concediam-lhe a apreciável velocidade de 15 nós. O custo foi de cerca de 50 000 000$00.

Recordo-me de três dos seus comandantes – José Ângelo Ramalheira, António Manuel São Marcos e José Alberto Senos Ramalheira. Muitos outros ilhavenses e, não só, aí desempenharam variadas tarefas, com proveito assinalável, já que o Inácio Cunha iria ser um campeão da pesca ao longo da sua vida. 

Fornecidas as principais características técnicas, retomemos a que pretende ser uma emocionante narrativa.

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Convidados na tribuna
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Junto à proa, montava o estaleiro uma espécie de tribuna ornamentada, onde recebia os convidados. No caso presente não eram muitos, dado o recente falecimento do Sr. Silvério Amador, sócio da Empresa proprietária, Testa & Cunhas, Lda.

Como era hábito, a bênção foi dada pelo Pároco da Gafanha da Nazaré, Sr. Padre Domingos Rebelo dos Santos, aspergindo-o e pedindo, para o navio e tripulação, os bons ofícios do divino.

– Que Deus o acompanhe!!! e o traga de volta com todos os seus tripulantes. De boa saúde e fartas pescas, terminaria o Padre Domingues a sua prédica.

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Bênção…
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A D. Adília Marques da Cunha Miranda, que já amadrinhara, em 1945, o navio-motor do mesmo nome, cortou então a fita que arremessava a tradicional garrafa de espumante contra a imponente roda da proa da nova unidade, fazendo-a em bocados, esguichando champanhe por todos os lados. Era o sinal para deixar correr o navio para a água.

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Momento alto!...

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(Cont).

Ílhavo, 22 de Novembro de 2020

Ana Maria Lopes

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domingo, 15 de novembro de 2020

A dureza da profissão de "sargaceira"

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Criei o “Marintimidades” em Abril de 2008, e, como adolescente que é, gosto de o revisitar. Mais que acabadas as pesquisas “in loco” para mim, gosto de as lembrar, da recordação com que fiquei delas e dos registos gravados, então. Vivo de memórias…

Passo a explicar. Por ocasião de várias visitas sistemáticas ao litoral português, tive oportunidade de observar algo da actividade do sargaço, embora nunca tenha constituído objecto de meu estudo. Mas, os registos fixaram momentos… E, agora, quase 40 anos passados, vieram ao de cima…

Por outro lado, também existe uma semelhança entre o (s)argaço do mar nortenho e o moliço da laguna de Aveiro. Ambos extintos, tiveram finalidades idênticas.

Não vou sacrificar os leitores amigos aos muitos pormenores que a apanha do sargaço envolvia, em diversas praias nortenhas, até meados do século XX.

O tipo de recolha que ainda me foi dado analisar e que me seduziu e marcou até hoje, foi a apanha feita a pé, normalmente por mulheres, que, com grande esforço, entravam na água, vestidas, até à cinta ou ao peito, arrastando as algas que boiavam, junto à praia, com o auxílio da graveta (ancinho mais pequeno e de cabo mais curto) e do ganha-pão, uma espécie de saco de rede entralhado num arco de madeira, munido de um cabo para o manejar.

De madrugada, com a roupa molhada, fria, colada ao corpo, estas corajosas e esforçadas mulheres subiam areal acima, com o ganha-pão carregado, às costas, quantas vezes ainda sob algum nevoeiro, como cheguei a ver.

Para lhes facilitar o trabalho, duas mulheres serviam-se, com frequência, de uma espécie de padiola com dois braços de cada lado, a carrela, sobre a qual transportavam as algas colhidas até ao cimo do areal.

Idêntico à carrela, mas com duas pegas apenas e uma roda, uma espécie de carro, manejado por uma só mulher, usava-se, para o mesmo efeito, o carrelo, que facilitava muito o trabalho, a uma só pessoa.

Não quero deixar de citar o galricho do sargaço, usado só em Vila Chã, e num ou noutro local, a título excepcional, que não tem nada com o «nosso» galricho.

Registos de outros tempos, de práticas extintas, que foram deixando um eco de memória na praia de Vila Chã.

Chamo a atenção, isso acontece com frequência no nosso litoral – há diferenças terminológicas na designação de alguns instrumentos de trabalho, de praia para praia, entre curtas distâncias. São os diversos falares ou linguajares que nos enriqueceram a língua, que estão em risco de serem também perdidos com os novos tempos.

Vidas difíceis de gerações de mulheres e de mães, no nosso mar…

Estas imagens testemunham-nos algumas das descrições que acabei de reconstruir.

 


À beira do mar, liso, espelhado, brilhante e esquartejado entre penedos, uma sargaceira, de roupa molhada até ao peito, retira do ganha-pão para o areal, as algas arrastadas na praia. Aver-o-Mar.

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Duas gerações de sargaceiras – uma, de preto vestida, quem sabe, viúva de homem do mar, de costas voltadas para nós; outra, jovem e bonita, orgulha-se do seu trabalho, deixa-se fotografar, ao acarretar as fitas, a bodelha e os limos do argaço, num carrelo, pelo areal acima. Aver-o-Mar.



Duas gerações de sargaceiras, talvez mãe e filha, acarretam sargaço com as típicas padiolas, as carrelas, plasmadas num ambiente marítimo de barcos tipo poveiro, aprestos, trouxas de redes, montes de algas, que salpicam o areal da Apúlia.



Sargaceira, em Labruge, de graveto ao ombro, acabou de apanhar sargaço, trazido até à praia, para uma zorra que um jumento arrasta. Cena inédita.

 


Sargaceira idosa, entre rochedos, curvada pelo peso do ganha-pão, esconde o rosto, de vergonha, perante os fotógrafos, que, ainda revoltada, trata mal, por divulgarem o seu grande sacrifício. Apúlia.

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Vidas pesadas e difíceis, que, entretanto, acabaram, mas foram deixando alguns preciosos testemunhos.

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Fotos de Paulo Godinho. Anos 80

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Ílhavo, 15 de Novembro de 2020

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Ana Maria Lopes

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sábado, 14 de novembro de 2020

O antigo cais do Areão e a pandemia

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O que é que tem a ver o antigo Cais do Areão com a pandemia? perguntarão.

As “bichas” nas lojas, as zaragatas, os espaçamentos, as compras de produtos em exagero lembraram-me o racionamento do pós-guerra, em que, felizmente, ainda não estive envolvida, por muito pequerrucha que era.

Por ser de Ílhavo, pessoa amiga alertou-me para o papel curioso que tivera no Cais do Areão, um ilhavense de famílias conhecidas.

Para confirmar os dados, fui junto da Senhora D. Cilinha Matias, sobrinha do dito conterrâneo, que me confirmou:

– Em finais de 40, o Manuel “da Lúcia” – irmão do seu Pai, Senhor Cap. João Matias (também conhecido por João da Lúcia), era o guarda-rios estabelecido no Cais do Areão, onde era muito estimado, vivendo no palheiro, então ali existente.

Era ele quem calculava a carga dos moliços desembarcados, destinados aos campos da Gândara, e cobrava o imposto para o Estado.

Apesar de uma deficiência numa mão (resultante de paralisia), que mantinha permanentemente junta ao corpo, era um feitio brincalhão, bem-disposto e amigo da paródia.

Ora, nesse tempo, havia racionamento (lá vem o racionamento…) de produtos essenciais. Estávamos no pós-guerra e o açúcar e, principalmente, o azeite eram difíceis de adquirir. Aos seus amigos, o Manuel “da Lúcia” arranjava maneira de os fornecer. Estes produtos vinham de burro para Ovar ou Murtosa e um e outro arrais, em troca de uns escudos, embarcavam-no na proa do moliceiro e descarregavam-no no Areão, à guarda do Manuel “da Lúcia”, que logo dava um salto de bicicleta a Ílhavo a avisar os amigos que a encomenda chegara. De noite, pela estrada da mata, correndo o perigo de encontrar a guarda, que era, ao tempo, incorruptível, lá vinham aqueles buscar o azeitinho e açúcar, trazendo ao amigo Manel «da Lúcia» uns garrafões de tinto bairradino, que ele distribuía pelos arrais seus amigos. Nesses dias o Manel arranjava sempre uma caldeirada a preceito confeccionada na proa de um moliceiro, em animada festa.  

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O Cais do Areão, em 1950. Foto do Cap. Almeida

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Para onde foram tantos barcos moliceiros que povoavam, animavam e davam vida ao mesmo espaço?

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O Cais do Areão de hoje
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E assim vai a vida! E a vida que os lugares escondem!... Ao menos, recordá-la, enquanto há memória…

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Ílhavo, 14 de Novembro de 2020

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Ana Maria Lopes

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terça-feira, 10 de novembro de 2020

"In memoriam" de Euclides Vaz

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Euclides Vaz, filho do Cap. José Cândido Vaz e de Joana da Silva Marta, nasceu em Ílhavo em 10 de Novembro de 1916, faz hoje, 104 anos. Desde muito jovem, exibia dotes superiores na modelação, usando para isso, tudo o que tinha à mão.

Feito o Liceu em Aveiro, por isso, Euclides vai para a Escola de Belas Ates no Porto, tendo terminado a sua licenciatura em Escultura em Lisboa, em Março de 1945, com elevada distinção, tendo tido como mestres referenciais Simões de Almeida (Sobrinho) e Salvador Barata Feyo. Dedicou-se ao ensino, tendo leccionado no ensino técnico-profissional, nas escolas Afonso Domingues e António Arroios, na zona de Lisboa. 

No ano de 1958, ingressou como professor na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde permaneceu até à sua reforma, em 1985. 

Já mestre reconhecido e enaltecido, deixou um vasto legado de obras, que se encontram espalhadas pelo território nacional e pelas ex-colónias, umas conseguidas por  concurso (monumentos a Teixeira Pinto, na Guiné; a Jorge Álvares, em Macau; a Vasco da Gama, na Ilha de Moçambique e a Neutel de Abreu, em Nampula, Moçambique) entre outras. Por encomenda directa, são de salientar, a estátua da Justiça para o Tribunal de Aveiro, a estátua de Pero Escobar para S. Tomé, D. João III, o grupo escultórico do largo do Roseiral, no Parque Eduardo VII, em Lisboa, e baixos relevos efectuados para diversos Tribunais do país.

De um modo geral, monumentais figuras, numa linha escultórica clássica, em voga, que pretendiam relembrar personagens históricas de vulto.

A sua arte também se estendeu ao campo da medalhística, com obras consagradas, neste domínio.

Também são de sua autoria os cunhos das moedas FAO de 20 e 50 escudos.

Euclides Vaz fez graciosamente para o Illiabum Clube, o busto de Mário Sacramento, para ser depositado na biblioteca que tinha o nome deste.

As obras que nos estão mais próximas fazem parte do acervo do Museu Marítimo de Ílhavo (MMI) e são: – uma miniatura do João Afonso de Aveiro, em bronze, datada de 1956 e oferecida ao museu, pelo autor, em 1969.

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João Afonso de Aveiro
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   a escultura de Luís Vaz de Camões, em gesso, assinada e datada de 1961:

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Luís Vaz de Camões

 

O João Afonso de Aveiro lá vai estando pelo Rossio, até que o mudem de local e que o mandem dar uma volta.

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João Afonso de Aveiro. Largo do Rossio. Aveiro
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Em 1990, ofereceu ao Município de Ílhavo, onde está depositada, a obra escultórica em gesso, de grandes dimensões, “O Homem do Gabão”.

Agraciado, em 1957, com o grau de Oficial da Ordem da Instrução Pública, também recebeu, em 1949, os prémios Ruy Gameiro e Soares dos Reis do secretariado Nacional da Instrução Pública.

Faleceu, com 75 anos, a 10 de Fevereiro de 1991, em Lisboa.

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Ílhavo 10 de Novembro de 2020

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Ana Maria Lopes

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terça-feira, 3 de novembro de 2020

Entrada do n/m Novos Mares - Campanha de 1964

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A entrada do n/m Novos Mares, em 1964, para mim, teve um sabor especial.

Desde que me lembro, sempre fui assistindo à entrada dos navios de bacalhau, pelo menos, os pertencentes a Testa & Cunhas, com toda a carga emotiva que acarreta.

Na Meia-laranja, as mulheres, saudosas, ansiosas e adornadas nos seus mais domingueiros trajares, bem arreadas de ouro, esperavam os seus homens, que, na proa do navio, acenavam, igualmente comovidos, e ansiosos por calcar terra firme e por abraçá-las a elas e aos filhos, que, por vezes, ainda nem conheciam. Haviam nascido na sua ausência! Que longos seis meses!

 Nesse ano, decidi passar para o lado de lá e ter uma perspectiva diferente da entrada de um navio.

Numa manhã setembrina, de ria calma e envolta numa doce neblina, embarquei no Cais dos Bacalhoeiros na lanchita da Empresa, conduzida por um fiel servidor da casa, o Zé Vicente.

 

Propunha-me fazer um documentário, filmado, em 8 mm (era o que se usava, então), com a minha maneirinha Bell & Howell.

Tem tudo menos grande qualidade, mas já fez 56 anos e foi filmado com grande ternura e curiosidade. Desculpem, pois, as imperfeições e apreciem os aspectos positivos. Além de não ser “profissional”, ainda tive o azar de ter de fazer a inversão obrigatória do filme, exactamente, quando o Novos Mares se aproximava e nos ultrapassou. Mesmo assim, valeu a pena.

Na viagem para a boca da Barra, passaram, por nós, traineiras, pujantes mercantéis à vela, graciosos e esbeltos moliceiros, quer à vela, quer à vara, a abarrotar com elevadas marés de moliço, bateiras berbigoeiras, para não falar de dragas e navios de carga, que não me despertam tanto a atenção.

O nevoeiro lá fora, adensava, mas, por bombordo, avistava-se, altaneiro, o nosso Farol riscado de vermelho e branco.

Pela frente, o navio, imundo, bem surrado e bem pesado (tinha sido um dos melhores anos de pesca), saúda a população no seu silvo roufenho e profundo! Já entrou a barra e dirige-se a S. Jacinto. Eis que se lê, à popa: NOVOS MARES – AVEIRO.

Saltei para bordo.

Não tinha olhos para tanto movimento e estrafego!

Os pescadores, já bem lavados, barbeados e aperaltados, aguardavam, pelo convés, que era exíguo, para tanta tralha: sacos de lona das suas roupas, uma golpelha ou goropelha algarvia, barricas que levaram 30 litros de vinho e traziam caras, samos e línguas (a caldeirada dos pescadores), bidões de óleo, gasóleo e óleo de fígado de bacalhau (brrrr!), sessenta e seis dóris atulhados de panas, bancos, ferros, remos, forquetas, etc., distribuídos por dez pilhas, para sessenta e quatro pescadores.

Entrava para bordo o encarregado da Alfândega, que marcava os sacos, um a um, a giz vermelho.

De S. Jacinto, em bateiras, chegavam famílias de pescadores de lá naturais, para aquele forte abraço entre marido e mulher e entre pais e filhos!

O imediato, à época, Tibério Paradela, junto da escada de portaló dava andamento às diligências necessárias.

Por estibordo do navio, atracaram dois possantes mercantéis, para onde eram arriados, por um sistema de teques, os sacos já inspeccionados. Pertenciam aos pescadores que moravam em localidades cujo acesso era fácil através da ria: Murtosa, Gafanha da Encarnação, Costa-Nova, Vagueira e outras.

O Capitão, à época, António Pascoal, pomposamente fardado, localizado na asa da ponte, controlava todo o movimento do convés, assim como supervisionava manobras e alcançava o horizonte, com amplitude.

Chegada a hora conveniente da maré, o rebocador procura posição e passa ao navio o cabo de reboque.

Começara, para mim, a “grande” viagem de S. Jacinto à Gafanha da Nazaré!

Avistam-se as instalações da seca, já parcialmente remodeladas.

Homens, em botes, auxiliam, a atracação do navio, à proa e à popa.

Entretanto, o guarda-livros e auxiliar entram para bordo, para proceder ao pagamento dos salários, de acordo com a informação de pescado previamente fornecida pelo capitão.

No cais, as famílias, que, entretanto, se deslocaram da Barra para a Gafanha, esperam com ansiedade, os seus entes queridos. Ei-los que começam a sair, bem preparados, aos poucos, em botes, normalmente com duas lembranças, uma em cada mão, quase sempre do mesmo género: um Cristo luzente e cintilante para a parede do quarto e uma boneca, bem vistosa, para a sua menina, de quem tinham tantas saudades.

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O Sr. Capitão Pascoal que, com os seus 85 anos, na altura, foi-me explicando, ao visionarmos o filme, a sequência das acções. Também consegui proporcionar-lhe uns agradáveis momentos, já que não sabia da existência de tão modesto documentário.

Saboreiem-no, pois, que vale a pena, apesar de alguns evidentes defeitos!

E assim terminou a campanha de 1964 do n/m Novos Mares, com um dos melhores carregamentos!

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Ílhavo, 3 de Novembro de 2020

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Ana Maria Lopes

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