sábado, 14 de novembro de 2020

O antigo cais do Areão e a pandemia

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O que é que tem a ver o antigo Cais do Areão com a pandemia? perguntarão.

As “bichas” nas lojas, as zaragatas, os espaçamentos, as compras de produtos em exagero lembraram-me o racionamento do pós-guerra, em que, felizmente, ainda não estive envolvida, por muito pequerrucha que era.

Por ser de Ílhavo, pessoa amiga alertou-me para o papel curioso que tivera no Cais do Areão, um ilhavense de famílias conhecidas.

Para confirmar os dados, fui junto da Senhora D. Cilinha Matias, sobrinha do dito conterrâneo, que me confirmou:

– Em finais de 40, o Manuel “da Lúcia” – irmão do seu Pai, Senhor Cap. João Matias (também conhecido por João da Lúcia), era o guarda-rios estabelecido no Cais do Areão, onde era muito estimado, vivendo no palheiro, então ali existente.

Era ele quem calculava a carga dos moliços desembarcados, destinados aos campos da Gândara, e cobrava o imposto para o Estado.

Apesar de uma deficiência numa mão (resultante de paralisia), que mantinha permanentemente junta ao corpo, era um feitio brincalhão, bem-disposto e amigo da paródia.

Ora, nesse tempo, havia racionamento (lá vem o racionamento…) de produtos essenciais. Estávamos no pós-guerra e o açúcar e, principalmente, o azeite eram difíceis de adquirir. Aos seus amigos, o Manuel “da Lúcia” arranjava maneira de os fornecer. Estes produtos vinham de burro para Ovar ou Murtosa e um e outro arrais, em troca de uns escudos, embarcavam-no na proa do moliceiro e descarregavam-no no Areão, à guarda do Manuel “da Lúcia”, que logo dava um salto de bicicleta a Ílhavo a avisar os amigos que a encomenda chegara. De noite, pela estrada da mata, correndo o perigo de encontrar a guarda, que era, ao tempo, incorruptível, lá vinham aqueles buscar o azeitinho e açúcar, trazendo ao amigo Manel «da Lúcia» uns garrafões de tinto bairradino, que ele distribuía pelos arrais seus amigos. Nesses dias o Manel arranjava sempre uma caldeirada a preceito confeccionada na proa de um moliceiro, em animada festa.  

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O Cais do Areão, em 1950. Foto do Cap. Almeida

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Para onde foram tantos barcos moliceiros que povoavam, animavam e davam vida ao mesmo espaço?

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O Cais do Areão de hoje
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E assim vai a vida! E a vida que os lugares escondem!... Ao menos, recordá-la, enquanto há memória…

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Ílhavo, 14 de Novembro de 2020

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Ana Maria Lopes

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