quarta-feira, 30 de março de 2022

A propósito de madrinhas de navios...

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O dia festivo para o navio-motorInácio Cunha, o dia 25 de Abril de 1945, chegou. Há 77 anos. Tudo a postos para a grande cerimónia.

Como a maré para o bota-abaixo fosse só pelas 17 horas, a empresa armadora decidira oferecer, entretanto, a cerca de 200 convidados, um lauto e regional almoço, num salão dos seus armazéns.

Na presença de todos os membros do Governo, vindos de Lisboa, das individualidades civis e religiosas, locais, dos armadores e dos muitos convidados, tiveram lugar as cerimónias da praxe, nos estaleiros da Gafanha da Nazaré: discursos, agradecimentos, bênção do navio pelo Sr. D. João Evangelista de Lima Vidal, o baptismo com o quebrar da simbólica garrafa de espumoso contra a roda da proa da embarcação, pela madrinha, Sra. D. Adília Marques da Cunha, viúva do Sr. Inácio Cunha.

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Manuel M. Mónica num discurso inflamado e a madrinha do navio
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O “Inácio Cunha”, frente à empresa – 1945
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A Sra. D. Adília Marques da Cunha Miranda, que já amadrinhara, em 1945, como referimos, o navio-motor do mesmo nome, bisou, sendo madrinha, a 22 de Novembro de 1969, da moderna unidade, arrastão de arrasto pela popa, construído em aço, nos Estaleiros de S. Jacinto, destinado à pesca longínqua – “INÁCIO CUNHA”.

Como era hábito, a bênção foi dada pelo Pároco da Gafanha da Nazaré, Sr. Padre Domingos Rebelo dos Santos, aspergindo-o e pedindo, para o navio e tripulação, os bons ofícios do divino.

– Que Deus o acompanhe!!! e o traga de volta com todos os seus tripulantes. De boa saúde e fartas pescas, terminaria o Padre Domingues a sua prédica.

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Bênção…
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A Sra. D. Adília Marques da Cunha Miranda, cortou, então, a fita que arremessava a tradicional garrafa de espumante contra a imponente roda da proa da nova unidade, fazendo-a em bocados, esguichando champanhe por todos os lados. Era o sinal para deixar correr o navio para a água.

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Momento alto!...
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Descendo na “carreira”
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Ílhavo, 30 de Março de 2022

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Ana Maria Lopes

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domingo, 27 de março de 2022

Bota abaixo do n/m "Novos Mares"

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Ontem, a propósito de uma exposição no MMI, “Bota-abaixo”, que muito apreciei, passou-me pela cabeça, todo o filme do bota-abaixo do navio-motor Novos Mares, há 64 anos.

A 19 de Março de 1958, tive, pois, oportunidade de reviver toda a minha emoção de madrinha do n/m S. Jorge, com o bota-abaixo do n/m Novos Mares, agora já uma “senhorinha”. Com os meus catorze anos, calçara, pela primeira vez, uns sapatos de salto alto. Lembro-me tão bem! Eram brancos!

Com a mudança de alguns actores, todo o cerimonial se repetiu, relativamente ao do lançamento à água do São Jorge: a chegada de autoridades em comboio especial, o almoço no Cine Teatro Avenida, em Aveiro.

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 Pormenor de alguns convidados

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A ementa era personalizada por uma bonita fotografia de Testa & Cunhas e seus navios: “Cruz de Malta”, “Inácio Cunha” e “São Jorge”.

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Pormenor da ementa

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Terminado o almoço, formou-se um extenso cortejo de automóveis, que se dirigiu aos Estaleiros. Não havia dúvida que era dia de grande festa.

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A população ribeirinha de Aveiro e Ílhavo sempre demonstrou especial predilecção pelas cerimónias de bota-abaixo, sentindo-as e compreendendo-as como poucas, não admirando, portanto, que a Gafanha da Nazaré registasse um movimento extraordinário.

A nova embarcação era produto do labor esforçado de cerca de 120 operários, durante catorze a quinze meses. Daria trabalho a uma tripulação de oitenta e três homens, que se viam privados do convívio das mulheres e dos filhos, durante seis longos e árduos meses. Foi seu primeiro capitão o Sr. Weber Pereira da Bela, de Ílhavo. A partir de 1961 e até 1974, última viagem de pesca à linha com dóris, seguiu-se o Capitão António Morais Pascoal, também nosso conterrâneo.

Junto à proa do Novos Mares, na tribuna habitual para convidados, sucederam-se os acontecimentos usuais: bênção da nova unidade pelo Sr. Bispo auxiliar de Aveiro, D. Domingos da Apresentação Fernandes, discursos, baptismo pela Senhora D. Maria Flor Ferreira Queirós, que já havia sido madrinha do primeiro Novos Mares (1938), a quem ofereci um bonito ramo de flores.

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A madrinha do navio (à direita)
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Continuava a ser uma honraria para a tal “senhorinha”, a querer espigar, participar em actos tão solenes, assistindo, perplexa e deslumbrada.

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Bênção da nova unidade
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Entre os discursos, com o seu feitio acalorado, o do Mestre Manuel Maria Mónica, era sempre emotivo. Ao falar aos colaboradores, armadores e governantes, o seu facies transformava-se de perturbação e envolvimento.

A um sinal de Mestre Mónica, o Sr. Eng. Higino de Queirós cortou o cabo da bimbarra, começando o navio a deslizar suavemente. Depois mais rapidamente, as obras vivas, como que num choque, mergulham nas águas da ria pela primeira vez.

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Pormenor, à esquerda, do cabo da bimbarra
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O Novos Mares penetrou nas águas da ria
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Com os navios embandeirados em arco, como sempre, nas cerimónias festivas, entre o estalejar de foguetes e os silvos das sirenes dos barcos, o novo navio procura posição, enquanto ocupantes de pequenas embarcações, como habitualmente, recolhem das águas alguns restos de madeira, com que vão atear a fogueira de Inverno, que os aquecerá.

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Cerimónia sempre impressionante e comovente!
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Aproveitem, até, e dêem um saltinho a esta exposição patente no MMI., até 8 de Maio. Não será tão emocionante como para mim, mas, certamente, gostarão e não darão o vosso tempo como perdido.

A exposição BOTA-ABAIXO espelha a memória e a tradição da construção naval em madeira, nos municípios de Ílhavo, Peniche e Murtosa e está inserida no projecto “Territórios com história”.

Fotografias – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 26 de Março de 2022

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Ana Maria Lopes

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sexta-feira, 25 de março de 2022

Abre, hoje, a Feira de Março...

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Após dois anos de encerramento, reabre, hoje, a Feira de Março. Oxalá tenha sucesso. Mas, para mim, a Feira de Março, apesar da vetustez dos seus 586 anos, já foi, já era.

Para aí, há sessenta anos, quando vinha de férias da Universidade de Coimbra, que agradável era ir até à Feira de Março! Era mesmo obrigatório experimentar as sensações dos divertimentos mais ousados, para a época – comboio-fantasma, cadeirinhas voadoras, poço da morte –, ir ao Circo, flanar, pavonear as toilettes já primaveris, almejar encontros agradáveis, flirtar, renovar as bijouterias, etc., etc.….

O ambiente favorecia a diversão!

Mas porquê no “Marintimidades”, estas intimidades? Apesar dos meus verdes anos, os barcos moliceiros já não me eram indiferentes. E daí ficou a chapa que bati em 25 de Março de 1961. Não há dúvida que já atraíam as minhas atenções. Eis a prova.

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Inauguração da Feira de Março – 1961
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A ria, inspiradora e calma, espelhava a paisagem!

Estava um bonito dia primaveril! O Rossio é, era, (será?) sempre o Rossio! Alimentava-se da água que bebia! ….

Além do mais, era hábito os barcos moliceiros estarem presentes, por iniciativa dos arrais, movidos pela tradição, em razoável número, no Canal Central, para exibirem as suas elegantes formas e garridismo cromático. Com eles vinham, também, alguns mercantéis, mais pesadões, mas sempre pujantes senhores da Ria.

Esta imagem deixa-me alguma saudade. Apesar de continuar a apreciar a beleza do Canal Central, algo mudou e, se calhar, não foi para melhor. Opiniões!...

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Da antiga ponte Aveiro/Barra
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De passagem pela antiga ponte de Aveiro/Barra, naquela manhã resplandecente e de águas cristalinas, cliquei uma bela imagem do n/m “Ilhavense” e já em pleno Cais dos Bacalhoeiros, outra, do lugre-motor “Coimbra”.

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Lugre-motor “Coimbra”

 

Que bela, soalheira e calma manhã de 25 de Março, há 61 anos!... o que não acontece, hoje. Tudo é cinzento, o que aperta e arrefece o "coração".

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Ílhavo, 25 de Março de 2022

Ana Maria Lopes


quarta-feira, 16 de março de 2022

Então, como estamos de galeota?

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Já o Março passou a quinzena e ainda não ouvi nenhum pregão de galeota! Este ano tem tardado…

Comi noutro dia, mas comprada, lá em baixo, perto da peixaria. Haverá pouca? Ou haverá problemas com a certificação da “arte”, como já me zuniu?

Galeooooota!

Pregão único, mas bem timbrado, prolongado e amiúde!

Faz-me falta, sobretudo, o pregão. Faz-me bem à alma e ao paladar – dizia um apreciador.

Marca esta época – a época da galeota.

É tempo dela! Amanhã, vou “investigar” à Costa Nova, mas, atenção, não sou “fiscal” e não vou vigiar nada. Só tentar recolher informações.

Parece que os grandes apreciadores estão ògadinhos por ela – lê-se pelo facebook, perante a imagem de um prato bem apresentado e cativante à vista e ao paladar.

Costumava durar, cerca de um mês a mês e meio (de Março a Abril), a venda da galeota pelas ruas de Ílhavo e zona das Gafanhas, porta a porta. No início da safra, é sempre cara como fogo; pudera! há um ano que não se lhe chinca!!!! Mas à medida que se banaliza (por se ir transformando no lingueirão), o preço desce, permitindo que bolsas menos folgadas já lhe acedam.

Sempre mais apoquentada com as embarcações e processos de pesca usados do que com os prazeres gastronómicos, ia frequentemente até à Costa Nova (junto à Biarritz e San Sebastian), observar a sua apanha e ver as redes, bastante sui generis, nos trapiches, a secar.-

 

Arte a secar nos antigos trapiches, à borda da ria
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Hoje já não teria forças para andar de botas de água, pela borda da ria ou junto às coroas, para gravar conversas e bater chapas.

Já abordei esta apanha da galeota no Marintimidades, por umas duas vezes, mas não é que, ontem, numas arrumações do “baú de memórias”, encontrei mais umas tantas imagens que cliquei em 11 de Março de 1986 de um lanço de galeota? Que maravilha! Já com trinta aninhos…registadas por mim, «à coca» de todos os pormenores. Conheço a “arte” de cor e salteado. Toca de ordenar as imagens e de preparar a conversa para captar os leitores/amantes do peixinho milagroso.

 

Trata-se um aparelho envolvente, tipo chincha, especialmente adaptado para a apanha da galeota, uma espécie de recém-nascido lingueirão.

Consta, essencialmente, de uma tira de rede, que adelgaça para os calões, tendo, no centro, um rectângulo de pano branco, um pano tipo mosquiteiro, muito franzido e folgado, que substitui o saco da chincha. O comprimento da rede é de cerca de 40.00 metros, tendo o pano mosquiteiro cerca de 2 de comprimento. A arte é feita com rede usada, de traineira.

Uma bateira vulgar (ou qualquer outro género de embarcação de fundo chato), é o tipo de embarcação utilizada neste processo de pesca.

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Fica um camarada em terra…
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Fica um pescador em terra aguentando o cabo do reçoeiro, enquanto a bateira se afasta da margem, largando a rede, a favor da corrente.

A partir do meio da rede, a embarcação dirige-se para a margem, completando o cerco, para o que fez um percurso, sensivelmente, em semicírculo.

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Já completo o percurso em semicírculo
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Aproada a bateira, os pescadores saltam para a água e, em conjunto com o que havia ficado na margem, alam a rede. Vão-lhe dando sacudidelas rítmicas, para espantar e conduzir o peixe para o pano.

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Camaradas alam a rede
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Percorrem a tralha da cortiça, até que ao chegar ao centro, com a galeota agrupada junto ao pano, levantam a rede fora de água, fechando a boca do saco.

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Pescadores vão fechando o saco de pano branco
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A galeota, quando perseguida, esconde-se na areia branca, enterrando-se rapidamente. A arte aproveitou engenhosamente esta particularidade, pois o pano branco consegue enganar a galeota, dando-lhe a ilusão de areia. Por vezes, apenas dois pescadores lançam a rede.

Finalmente escolhem-na dos moliços e de outas mínimas ervagens, para a passarem para um balde ou para o quete da bateira.

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Escolha da galeota
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A galeota mais apreciada pelos entendidos é a primeira, por ser mais pequena (a larva do lingueirão). Depois de crescida, já não é tão saborosa (dizem os degustantes).

Apanhado o petisco sazonal, é preciso fazer o seu escoamento imediato no mercado da Costa Nova, nos restaurantes da zona, porta a porta, em grito estrídulo:

Galeooooota! É tempo dela!...cantava o pregão.

E compradoras assomavam às portas!

Mas pareceu-me que o pregão estridente e bem-sonante foi interrompido por exigências marítimas que transtornam os pescadores. Continuemos de atalaia!...

Fotografias – nos anos 80

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Ílhavo, 16 de Março de 2022

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Ana Maria Lopes

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domingo, 13 de março de 2022

Lugre "Ariel"

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Fiz várias consultas para saber um pouco mais do “Ariel”, bonito lugre que também fez parte daqueles que tiveram como cemitério a barra de Aveiro, em princípios do século XX.

Mas com tão, tão curta existência, não poderia ter longa história. Foi o que consegui.

 

O "Ariel”, lugre de madeira, de três mastros, com arqueação líquida de 191 toneladas, foi construído na Gafanha da Nazaré por Manuel Maria Bolais Mónica para a Companhia Aveirense de Navegação e Pesca, Lda., de Aveiro, e lançado à água no dia 7 de Abril de 1919.

Há quem lhe tenha atribuído como primeiro proprietário Testa & Cunhas, mas, em minha opinião, tal seria impossível, pois a empresa ainda não estava constituída.

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Única foto conhecida do Ariel
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Depois de realizar a 1ª campanha na pesca do bacalhau, naufragou à entrada da barra de Aveiro, em virtude da escassez de vento e agitação do mar, no dia 11 de Novembro de 1919.

Durou nada mais do que seis meses, de Abril a Novembro.

Sabendo-me interessada no assunto, pessoa amiga fez-me chegar às mãos estas notícias, que, por raras, não deixam de ser curiosas.

 

Título – "Barco em perigo"

De Aveiro foi pedido ao Ministério da Marinha um rebocador com a força precisa para socorrer um navio em perigo.

In "Comércio do Porto", 12.11.1919


Título – "Lugre encalhado – Os socorros"

Pela Capitania de Aveiro, foram na noite de anteontem pedidos socorros para a Capitania de Leixões, por se encontrar encalhado na barra de Aveiro, um lugre português, cujo nome se desconhece e que parece ser bacalhoeiro. Imediatamente foram dadas ordens para saírem daquele porto a Canhoneira "Limpopo" e o rebocador "Magnete".

Estas embarcações, que voltaram ontem para o porto de Leixões, onde chegaram pela 1 hora da tarde, nenhum socorro puderam prestar, devido à forte agitação do mar. O lugre continua na mesma posição.

In "Comércio do Porto", 13.11.1919


Título – "Naufrágio"

Acerca do navio que naufragou na costa de Aveiro, a que nos referimos, recebemos do nosso correspondente em Ílhavo as seguintes informações, que o correio nos retardou, pois que as devíamos ter recebido anteontem…

 

Ílhavo, 12 – O lugre "Ariel", que regressava da pesca do bacalhau com um carregamento de cerca de cinco mil kilos de peixe, ao demandar ontem, à tarde, a nossa barra, encalhou num banco de areia, e perdendo o governo por falta de vento, veio dar à costa ao sul da barra.

A tripulação foi salva com um cabo de vaivém, e é possível salvar-se parte da carga.

O "Ariel", porém, considera-se perdido. Era um lindo barco, construído há pouco nos estaleiros da Gafanha, sendo esta a primeira viagem que fazia.

In "Comércio do Porto", 14.11.1919

 

Obrigada, pois, pelas informações conseguidas, após pouco mais de 90 anos do acidente, que vitimou o “Ariel.

E aos poucos, se vai reconstituindo a história trágico-marítima da nossa frota bacalhoeira.

Fotografia – Amável cedência do MMI.

Ílhavo, 13 de Março de 2022

Ana Maria Lopes

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