terça-feira, 25 de junho de 2024

A Arraisa Joana Càlôa era minha bisavô

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Há coincidências curiosas e esta é uma delas. Tive de ultrapassar as 6 décadas de existência para saber que a minha bisavó materna tinha sido Joana Càloa, “arraisa” das companhas do Sr. João da Cruz, da Costa-Nova. Ou melhor, souberam por mim e depois também fiz alguma coisa por me esclarecer melhor.

Uma tarde, por finais do mês de Abril, há 16 anos, encontrámo-nos, casualmente, à porta do Museu, eu, o Francisco Calão e Senos da Fonseca. Este interpelou-nos, no sentido de, na qualidade de bisnetos de Joana Càlôa, eventualmente, podermos ter alguma fotografia dela, por casa. Ambos franzimos o nariz, encolhemos os ombros e achámos que não tínhamos e que não seria fácil conseguir.

Claro, foi a minha primeira impressão, mas não descansei. Porque o assunto me interessava, comecei a pensar numa maneira de a tentar obter e de saber mais histórias da tal bisavó. Pensei, pensei… relacionei as famílias e decidi fazer, no dia seguinte, uma visita às Irmãs Marques, que achava terem boa memória e muito saberem de factos antigos. Confirmou-se… Joana Càloa era sua avó materna, mãe de Nazaré Correia, com quem sempre vivera.

Mulher trabalhadeira, valentona, bonita, esbelta prazenteira, a Joana tinha sido casada com João Simões da Barbeira (o Pisco) e fora…arraisa, como ela própria se intitulara, nas companhas da Costa-Nova. Morreu em 1935 com 72 anos. Teria nascido lá por 1863.

Entendi, então, a razão de ser do nome do meu avô, que nunca tinha percebido muito bem – Manuel Simões da Barbeira (o Pisco), tal como reza na placa da campainha da minha casa da Costa-Nova – CAPITÃO PISCO – 1º ANDAR, que fiz gosto em manter.

E fotografia da minha bisavó, lá a tinham, religiosamente guardada, tendo-ma emprestado amavelmente, para digitalizar.

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Fotografia de A. Rapheiro – Aradas – Aveiro
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Fizeram ainda questão de me mostrar a foto de parede do meu bisavô, que decorava a sala de entrada, que também havia sido marítimo, tendo ido trabalhar para Sesimbra, no conserto das redes de cerco do atum.

Então e as coincidências?

Em 2009, Senos da Fonseca,  no livro “Costa Nova do Prado –  200 Anos de História e Tradição”, ao tratar os ícones da referida praia, dá a lume, entre outros, a “arraisa” Joana Càlôa.

Transcrevo algo do que refere:

Era uma mulher que para lá de ser muito activa, despachada e trabalhadeira, tinha a seu encargo o desempenho do cargo de «arraisa» – ou governadora de terra, a quem eram remetidas as tarefas de orientação da Companha (…).

Mulher fisicamente poderosa, mas simultaneamente bonita, airosa e prazenteira, tinha a elegância curva e estendida da proa do meia-lua. Braços longilíneos e poderosos a parecerem os remos do Xávega; olhos escuros, profundos, onde se acolhia o turbilhão do mar e de onde ressaltava a grande coragem que a levava a não hesitar, na falta de um tripulante, a emprestar uma mão ao cambão, remando como um maior. E à falta de reçoeiro, era ver a Joana a embarcar no meia-lua, não lhe faltando, nem jeito nem força, e muito menos quebreira, para o ir largando como mandavam as regras. (…)

Era mãe de quatro filhos, todos eles tendo um nome diferente (Manuel da Barbeira, mais tarde conhecido por Cap. Pisco, Francisco Càlão, mais tarde o Cap. F. Càlão, David – oficial da Marinha Mercante que morreu muito cedo – e D. Nazaré Marques). Todos eram, contudo, filhos de seu marido João Simões da Barbeira (o Pisco).

A Joana foi nomeada entre os símbolos humanos da Costa Nova, simples no ser, grandes no arcaboiço heróico.

 

Com alguma dose de especulação, põe a hipótese, que subscrevo, de a figura da Joana ter servido de fonte de inspiração a Eça de Queirós, ao descrever a personagem de “Joana“ em “A Tragédia da Rua das Flores”, como corpo de estátua, com uma solidez ancestral das mulheres da Ria de Aveiro (…) onde havia um calor morno, dissolvente, delicioso, estonteador.

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Montagem trabalhada de Joana

 

Não esqueçamos que Eça visitara frequentemente a Costa-Nova, pelos anos 80 do século XIX e era um amante das companhas, onde poderia ter encontrado a Joana. Outra coincidência?

Somos vários bisnetos/as que, ao todo, julgo, sermos dezassete. Serei a mais velha. A Luísa Càlão, curioso, é a actual proprietária do palheiro ocre, fielmente restaurado, que era da sua bisavó, sito na Avenida Bela Vista, pressuposto nº 64.

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Palheiro que fora da Joana Càlôa
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Quando me perguntam donde vem a minha tendência marítima, a “dita paixão pelas coisas do mar e ria”, justificava-a pelos genes de meu avô Pisco, capitão dos tempos em que se ia, só à vela, à Groenlândia e sócio ab initio da Empresa Testa & Cunhas. Ele, que me levava, quando menina, a ver a chegada do barco do mar, aqui, na Costa Nova.

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Costa Nova – Anos 50 – Ida ao mar
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E, à seca, muita, muita vez, para saborear uma lasquinha de bacalhau salgado, surripiada das pilhas, às escondidas.

Mas não é só. Passei agora a conhecer a existência da bisavó, de fibra marítima, que tive, a Joana Càloa.

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Ílhavo, 25 de Junho de 2024

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Ana Maria Lopes

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domingo, 19 de maio de 2024

Dia Internacional dos Museus

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Ontem, Dia Internacional dos Museus. pelas 17 h, o Museu Marítimo de Ílhavo inaugurou a exposição “Alegorias do Mar na Cerâmica da Vista Alegre”, integrada nas comemorações do bicentenário da Fundação da Fábrica da Vista Alegre.

Esta exposição reúne um conjunto de peças (cerca de 130) inspiradas no mar e produzidas entre 1870 e 2024. Estará patente até ao dia 17 de Novembro.

Um mar de peças raras, de muito bom gosto, agrupadas por sub-temas, numa adequada e requintada montagem Sendo a Vista Alegre mais inclinada a fabricar peças escultóricas de outro teor e de decorar as suas peças, mais com paisagens a sépia e floreados coloridos, entrelaçados e relevados a ouro, com paciência, tempo e insistência, e graças à boa vontade de alguns coleccionadores particulares, a juntar ao espólio,  que esteve nas origens da fundação  do próprio Museu, a cedências do MHVA e outras instituições públicas, chegou-se à exposição que se apresenta.

Há uma peça que aí faz falta, maravilhosa, rara e funcional, à época – tinteiro, em forma de bergantim com jovem tritão, soprando num búzio, decoração a ouro, negro e pequenas flores, policromadas, pintada à mão. Só não está lá, por causa de um gato. Quem diria? Pertença de uma família ilhavense, que um dia se esqueceu do gato fechado em casa, este escolheu para seu brinquedo, estilhaçando-a, a valiosa peça, deixando-a sem restauro possível.

A exposição abre com a bandeja “Brigue Trocador”, inspirada em motivos marítimos, numa linha precisa, realçada a aguarela, oferta dos AMI ao MMI, neste dia, peça recente, com a marca do bicentenário – 2024. Uma espécie de pote “Mare Clausum”, e o búzio “Novo Inquilino”, 2024, também foram doação dos AMI, neste Dia dos Museus, enriquecendo o espólio museal e dotando-o de mais três belas peças relativas ao bicentenário da Fábrica da Vista Alegre.

Muitas vezes, nestes seis meses, a hei-de revisitar…uma dúvida, uma data, um pormenor…

Só para levantar uma pontinha do véu e aguçar o apetite… vista ao vivo, a exposição é muito mais apelativa.

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Filtro de água, palmatória e prato, de temática regional
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Não falte.

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Ílhavo, 19 de Maio de 2024.

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Ana Maria Lopes

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sábado, 4 de maio de 2024

ÚLTIMA CAMPANHA DA PESCA À LINHA. 1974.

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A prosa romanceada do mais recente livro de Manuel Martins, intitulado” Última campanha da pesca à linha”, foi elaborada a bordo do penúltimo navio da citada pesca  – “São Jorge”.

O primeiro episódio passa-se com o 25 de Abril, quando o navio “São Jorge”, navegava no canal com o mesmo nome, a caminho dos bancos da Terra Nova.

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“São Jorge” em S. Pierre, em 1974
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Desde que me comecei a interessar pela Faina Maior, já lá vão muitos anos, logo soube que, no ano de 1974, os únicos três navios que foram à pesca à linha, do bacalhau, foram o “O Ilhavense”, o “São Jorge” e o “Novos Mares, os três, navios-motor.

O “São Jorge” navegava serenamente, com mar de pequena vaga, a caminho dos mares da Terra Nova, a 22 de Abril de 1974.

Este navio, baptizara-o, eu, na Gafanha da Nazaré, com doze anos, e naufragara, por incêndio, entre a tripulação, com o imediato, Manuel Martins, que chegara a ver a morte, a 26 de Julho de 1974 – contrastes.

Depois de algumas pesquisas de fundos, para a pesca, a  primeira semana no Rocos fora proveitosa para todos. Mas, um dia, pela manhã, 26 de Junho, o “Ilhavense” emitiu um SOS, comunicando que tinha fogo a bordo. O capitão do “São Jorge” logo ordenou que fossem em auxílio do navio incendiado.  Em menos de meia hora, estava a 200 metros do dito navio, que já tinha o pessoal, dentro dos botes, na água, bem como a baleeira com os oficiais e a restante tripulação.

Um acidente!..., mas sem perda de vidas! Era um cenário desolador, para o pescador, já a salvo, ver o seu bote à deriva, para ser tragado pelo oceano. Entretanto, o “Novos Mares”, que estava mais distante, ainda chegou a tempo de salvar alguns náufragos, que, entretanto, foram levados até St. John`s, para ser tratado o repatriamento.

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“O Ilhavense”

Pelas condições climatéricas e pelas diversas notícias, chegadas de Portugal, o Verão, na Terra Nova, estava mesmo a ser um Verão quente…Muitas reuniões, muitas reivindicações, mutos problemas, mas nada se resolvia. Só o regresso a Portugal era o desejo dos tripulantes.

Era, pois, meio-dia de 26 de Julho do ano de 1974, quando os dois navios sobreviventes da frota branca, largaram de St. John`s. Era um adeus até sempre, na esperança de, no ano seguinte, regressarem, possivelmente, como tripulantes, a bordo de um arrastão.

Apesar de não serem as condições ideais, eram, contudo, boas condições para navegar para a terra-pátria.

Mal tinham acabado de comer a sopa do jantar, pelas 18 horas, sentiram a máquina parar. O ajudante, esbaforido, avisou: venham ajudar, há fogo na casa das máquinas!... Começou o capítulo o “naufrágio”, de todos o mais pungente e aflitivo. Todo o processo de salvamento para bordo do “Novos Mares” foi muito complicado e perigoso, mas o do imediato Norberto transcendeu tudo o que é narrável. O autor, Manuel Martins, apesar de o ter sentido na pele e na alma, optou por ser um narrador não participante, sob o heterónimo de Norberto, através de um narrador que conta, na terceira pessoa, o seu salvamento. Deixo para o leitor a avaliação de todos os pormenores e aflições. Já no “Novos Mares”, o Antenor disse para o imediato Norberto: Você salvou-se por um triz. É preciso ter uma força anímica muto forte para conseguir um feito tão audacioso.

Tendo atracado o “Novos Mares”, em St. John`s, o repatriamento dos náufragos seguiu-se nos trâmites habituais.

Sobrou o “Novos Mares”, que saiu da Terra Nova e chegou à Gafanha da Nazaré, sem peixe, carregado de sal, com a companha em greve, em inícios de Agosto de 1974.

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“Novos Mares”, à chegada…
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Terminava assim a epopeia da última campanha da pesca do bacalhau à linha, nos bancos da Terra Nova.

Ílhavo, 4 de Maio de 2024

Ana Maria Lopes

quinta-feira, 25 de abril de 2024

O "Inácio Cunha" foi para a água, há 79 anos

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O “Ilhavense”, de 11 de Janeiro de 1945, referencia: Em 1945 a frota bacalhoeira será aumentada de algumas novas e grandes unidades. Pode contar-se como certa a incorporação do Maria Frederico e do Inácio Cunha de Testa & Cunhas Lda., que descerá na carreira, no fim do corrente mês ou em princípios de Fevereiro.


 O Inácio Cunha na carreira – 1945

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Chegou, então, o dia festivo para o navio-motor Inácio Cunha, o dia 25 de Abril de 1945. Há 79 anos. Tudo a postos para a grande cerimónia.

Como a maré para o bota-abaixo fosse só pelas 17 horas, a empresa armadora decidira oferecer, entretanto, a cerca de 200 convidados, um lauto e regional almoço, num salão dos seus armazéns.

Na presença de todos os membros do Governo, vindos de Lisboa, das individualidades civis e religiosas, locais, dos armadores e dos muitos convidados, tiveram lugar as cerimónias da praxe, nos estaleiros da Gafanha da Nazaré: discursos, agradecimentos, bênção do navio pelo Sr. D. João Evangelista de Lima Vidal, o baptismo com o partir da simbólica garrafa de espumoso contra a roda da proa da embarcação, pela madrinha, Sra. D. Adília Marques da Cunha.

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Manuel M. Mónica num discurso inflamado e a madrinha

(…)

Finalmente, o Sr. Ministro da Economia cortou o cabo da bimbarra, mas o navio manteve-se, por algum tempo, estático. Correram pressurosos os construtores e demais pessoal, para alguns trabalhos de emergência, e, passado algum tempo, o Inácio Cunha deslizou serenamente na carreira para nadar, tranquilo como um cisne, nas salsas águas da Ria.

Acenaram-se lenços, estalaram foguetes, a música executou um número alegre e os armadores e construtores receberam os abraços e parabéns da praxe. – refere o jornal, “O Ilhavense”, de 2 de Maio de 1945.

O novo navio-motor, um dos primeiros do tipo CRCB., construídos por Manuel Maria Mónica, na Gafanha da Nazaré, media 52,72 metros de comprimento, fora a fora, 10, 44 m. de boca e, aproximadamente, 5, 50 m. de pontal.  Dispunha de todos os aperfeiçoamentos modernos, incluindo telegrafia e telefonia, belas instalações para a tripulação (69 tripulantes e pescadores e três oficiais), dispondo de 57 dóris.

A propulsão era feita por um motor Deutz de 550 H.P., deslocando-se a cerca de 9/10 milhas horárias. A tonelagem bruta era de 775,42 toneladas. e a líquida, de 494,83.

Por cálculos de construção, esperava-se que viesse a carregar nos seus porões, sensivelmente, 12 000 quintais de bacalhau.

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O Inácio Cunha, frente à empresa – 1945
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A viagem inaugural do Inácio Cunha foi feita pelo Capitão José Gonçalves Vilão, bem como a campanha seguinte (1946). Por lá passaram, no seu comando, nos anos de 1947 a 49, Elias Andrade Bilhau, natural de Lavos, Figueira da Foz; João dos Santos Labrincha (Laruncho), de 1950 a 1955; Manuel da Silva de 1956 a 60. Entre 1961 e 1962, comandou-o David Calão Marques.

Na campanha de 1950, trouxe os náufragos do navio-motor Cova de Iria, que havia naufragado, devido a água aberta.

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Entrada em Leixões com os náufragos do Cova de Iria. 1950
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Parece-me ter tido uma existência pacífica, com as atribulações e perigos, inerentes àquela dura faina.

No ano de 1962, o Capitão David Marques declarou à empresa 11 162 quintais de bacalhau, de acordo com o seu diário de pesca, pelo que o navio abandonou a pesca e chegou a Aveiro sobrecarregado, pondo em perigo o navio, a sua carga, seus pertences e vidas humanas. O que se fazia por mais uns quilitos de bacalhau, para ganhar a vida!!!!

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Bem no fundo, à chegada. 1962
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Também Ernesto Manuel dos Santos Pinhal comandou o navio de 1963 a 1966, ano em que naufragou, a 28 de Agosto, por motivo de incêndio a bordo, quando estava prestes a completar o carregamento, nos mares da Gronelândia.

A tripulação foi acolhida a bordo do navio-motor Sotto Maior, que a encaminhou para o navio-hospital Gil Eannes, a fim de ser repatriada.

Todos os Capitães, de quem me lembro e com quem convivi, foram nossos conterrâneos, com excepção de Elias A. Bilhau.

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Nas tranquilas águas da Ria, na Gafanha da Nazaré, frente a Testa & Cunhas, eis, em primeiro plano, o Inácio Cunha e, pela popa, o São Jorge, de braço dado com o Novos Mares; avista-se, em último plano, o Avé-Maria.

Reinavam, por aqui, os navios-motor.

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Ílhavo, 25 de Abril de 2024

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Ana Maria Lopes

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segunda-feira, 15 de abril de 2024

Colecção Manuel Mário Bola

 

Catálogo

Ontem, saí das minhas preguiças, e fui até à Gafanha da Nazaré, visitar a Colecção Manuel Mário Bola, que se exibe na Fábrica de Ideias.

Manuel Mário Bola nasceu a 4 de Agosto de 1945, na zona da Chave e viveu e conviveu com toda a envolvência na Pesca do Bacalhau, especialmente, quando, ainda em criança, passava os verões no Estaleiro do Mestre Mónica, a ajudar os carpinteiros e a aprender a arte da construção naval em madeira.

O saber adquirido e o gosto ficaram e a possibilidade de não ir para o Ultramar, levou-o para a pesca do bacalhau, a bordo arrastão lateral “Santa Joana”, donde saiu como ajudante de motorista, depois da viagem de 1972.

A imponência dos navios construídos nos Estaleiros Mónica e os ensinamentos dos velhos carpinteiros são hoje aplicados na construção de maquetas de navios, sobretudo bacalhoeiros, que, com minúcia e dedicação constrói, como se de um navio à escala real se tratasse. Peças de arte que demoram, por vezes, mais de 5000 horas a concluir, mas que são como toda a colecção que recolheu ao longo da vida, a sua homenagem aos marítimos.

A exposição consta dos seguintes núcleos: Construção Naval, Gaiúta, A Arte de construção naval em miniaturas e Apetrechos de pesca e navegação.

A Gaiúta foi o núcleo  que achei mais bem conseguido. Inclui as peças – sino, odómetro de barca, bitácula, máquina da roda do leme, roda do leme, porta-voz e lanterna de antepara, brilhantes no seu areado aprimorado., enquadradas em fundo fotográfico bonito e adequado.

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Gaiúta
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Odómetro de barca
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Das miniaturas, fixei aquelas de cujos originais ou imagens mais me lembrava: “Gazela Primeiro”, “Santa Isabel”, “Brites”, “Primeiro Navegante”, “Santa Maria Manuela”, “Inácio Cunha”, entre outras.

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“Hortense”, em construção, 1930
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Painel de Apetrechos de pesca e navegação
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Entre estes, saboreei a polé, as forquetas, a agulha do bote, o foquim, o rile, os anzóis, o sueste, luvas de lã, nepas e outros mais.


Colecção de relógios de bordo e barómetros
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Parabéns ao Sr. Mário Bola, pela sua habilidade, paciência  e dedicação. Não dei a tarde como perdida, antes pelo contrário.

Ílhavo, 15 de Abril de 2024

Ana Maria Lopes

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quinta-feira, 28 de março de 2024

O bota-abaixo do N/Motor "Novos Mares", em 1958

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Boas memórias para adoçar o efeito do temporal – o bota-abaixo do n/m “Novos Mares”, no dia 19 de Março de 1958. Já lá vão 66 anos…

Então uma “senhorinha”, com os meus catorze anos, calçara, pela primeira vez, uns sapatos de salto alto. Lembro-me como se fosse hoje! Eram brancos!

Com a mudança de alguns actores, todo o cerimonial se repetiu, relativamente ao do lançamento à água de outros navios: a chegada de autoridades em comboio especial, o almoço no “Salão de Festas do Cine Avenida”, em Aveiro.

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Pormenor de alguns convidados
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A ementa era personalizada por uma bonita fotografia de Testa & Cunhas e seus navios: “Cruz de Malta”, “Inácio Cunha” e “São Jorge”.

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Pormenor da ementa
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Terminado o almoço, formou-se um extenso cortejo de automóveis, que se dirigiu aos Estaleiros. Não havia dúvida que era dia de grande festa.

A população ribeirinha de Aveiro e Ílhavo sempre demonstrou especial predilecção pelas cerimónias de bota-abaixo, sentindo-as e compreendendo-as como poucas, não admirando, portanto, que a Gafanha da Nazaré registasse um movimento inusitado.

A nova embarcação era produto do labor esforçado de cerca de 120 operários, durante catorze a quinze meses. Daria trabalho a uma tripulação de oitenta e três homens, que se viam privados do convívio das mulheres e dos filhos, durante seis longos e árduos meses. Foi seu primeiro capitão o Sr. Weber Pereira da Bela, de Ílhavo. A partir de 1961 e até 1974, última viagem de pesca à linha com dóris, seguiu-se o Capitão António Morais Pascoal, também nosso conterrâneo.

Junto à proa do “Novos Mares”, na tribuna habitual para convidados, sucederam-se os acontecimentos usuais: bênção da nova unidade pelo Sr. Bispo auxiliar de Aveiro, D. Domingos da Apresentação Fernandes, discursos, baptismo pela Senhora D. Maria Flor Ferreira Queirós, que já havia sido madrinha do primeiro “Novos Mares” (1938), a quem ofereci um bonito ramo de flores.

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A madrinha do navio (à direita)
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Continuava a ser uma honraria para a tal “senhorinha”, a querer espigar, de coração latejante, participar em actos tão solenes, assistindo, perplexa e deslumbrada.

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Bênção da nova unidade 
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Entre os discursos, com o seu feitio acalorado, o do Mestre Manuel Maria Mónica, era sempre emotivo. Ao falar aos colaboradores, armadores e governantes, o seu facies transformava-se de perturbação e envolvimento.

A um sinal de Mestre Mónica, o Sr. Eng. Higino de Queirós cortou o “cabo da bimbarra”, começando o navio a deslizar suavemente. Depois mais rapidamente, as”obras vivas”, como que num choque, mergulham nas águas da ria pela primeira vez.

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Pormenor, à esquerda, do cabo da bimbarra
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 O “Novos Mares” penetrou nas águas da ria

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Com os navios embandeirados em arco, como sempre, nas cerimónias festivas, entre o estalejar de foguetes e os silvos das sirenes dos barcos, o novo navio procura posição, enquanto ocupantes de pequenas embarcações, como habitualmente, recolhem das águas alguns restos de madeira, com que vão atear a fogueira de Inverno, que os aquecerá.

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Cerimónia sempre impressionante e comovente!
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Estas doces memórias aquecem o coração, em dia de forte temporal, num dia já primaveril, pelo menos no calendário.

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Ílhavo, 28 de Março de 2024

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Ana Maria Lopes

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segunda-feira, 11 de março de 2024

O meu homónimo - o lugre "ANA MARIA"

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Sempre tive uma predilecção muito especial pelo lugre "Ana Maria", porque, de facto, tem o mesmo nome que eu, porque foi dos mais antigos da nossa frota pesqueira, porque era muito elegante e porque a ele associo um oficial de cá de Ílhavo, de quem era conhecida, aparentada e amiga – o Capitão José Fernandes Pereira Júnior, mais conhecido por Capitão Zé Lau (1879-1971) muito sui generis.

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Em bom andamento…

O “Ana Maria” – o “ex-Argus”, construído em Dundee, em 1873, era um veleiro elegantíssimo. Adquirido à Parceria Geral de Pescarias pela Firma Veloso, Pinheiro & Companhia, da Praça do Porto, participou na campanha de 1939 e seguintes.

De exíguas dimensões, cerca de 40 metros de comprimento, de 8 de boca e 4 de pontal, tinha uma capacidade de pesca de apenas 5.000 quintais.

Curioso, as rectas finais de vida do “Ana Maria” e do Capitão Zé Lau confundiram-se.

No Jornal do Pescador de Outubro de 1955, foi dada a grande notícia de que, num belo dia do anterior mês de Setembro, o primeiro navio da pesca do bacalhau à linha a entrar no Douro, foi o lugre “Ana Maria”.

“Em viagem directa da Terra Nova, chegou ao Douro o navio "Ana Maria", tendo fundeado junto do cais do Bicalho”.

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O “Ana Maria” entra no porto de Leixões…pelos anos 50
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Foi com grande júbilo que a gente ribeirinha da capital do norte aguardou a chegada do veleiro. As famílias dos pescadores mostravam a sua impaciência, enquanto se procedia à manobra da atracação.

Logo foram beijos, risos, abraços, recordações evocadas e notícias trocadas, numa demonstração de ternura entre pessoas queridas que não se viam há seis meses.

Entretanto, o capitão do barco, também de Ílhavo, Sr. José André Alão deu as boas notícias de que o seu barco se portara maravilhosamente e estava apto para continuar na faina do bacalhau. A viagem fora óptima e os porões vinham completamente carregados. Foi também do Ana Maria que se lançou o alarme à navegação sobre o fogo do Ilhavense Segundo, quando se encontrava a 60 milhas do lugre incendiado.

O Capitão Lau nasceu em Ílhavo a 5 de Dezembro de 1879, tendo ido para o mar aos catorze anos, como era normal, à época.

Deixou o mar em 1958, com a provecta idade de 79 anos.

Quem, de idade á madura, não se lembra da sua figura física? Baixote, velhinho, de cabelos muito alvos, rapioqueiro e sempre bem aperaltado, mas de feitio difícil, com quem era preciso saber lidar. No meu casamento, em 1965, para que fora convidado, com uma vetusta idade, fartou-se de dançar. Gravei-o na memóris…

Entre os postos de moço, piloto, imediato a capitão, lá foi sulcando os mares, no meio de muitas peripécias e alguns naufrágios, em tempos bastante difíceis, passando pelo Lusitânia III (futuro Terra Nova), Maria Preciosa, Paços de Brandão, Alcíon, Silvina, Delães (torpedeado e afundado por submarino desconhecido, em 1942), Labrador, Oliveirense, Infante de Sagres III e Paços de Brandão. De 1952 até 1958, ocupou o cargo de imediato no “Ana Maria”, ano em que o velho lugre do Porto naufragou, com água aberta, a 7 de Setembro.

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O lugre “Delães”, em alto mar, cerca de 1940
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O Capitão, Sr. Joaquim Agonia Vieira, de Vila do Conde, e o “nosso imediato”, entre os seus quarenta tripulantes, foram salvos pela escuna costeira norte-americana “Spencer”, que os entregou posteriormente a um navio espanhol. O velhinho Zé Lau, pelos seus 79 anos e pernas enfraquecidas, já teve de ser auxiliado, nestas andanças e mudanças de embarcação para embarcação. Abandonou, então, a vida do mar.

O lugre cumprira o seu destino com 85 anos e o imediato contava menos seis.

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Em primeiro plano, o lugre “Paços de Brandão” e o “Ana Maria”; pela popa, o “Aviz” e, semi-encoberto, o lugre de quatro mastros, que sabemos ser o “Senhora da Saúde” (in A Campanha do Argus, de A. Villiers)

Em terra, ainda duraria até aos 91 anos (até 1971), a saborear o aconchego do lar e seus familiares, com invejável memória e vivacidade inusitada.

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Capitão Zé Lau, já de idade avançada
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O seu temperamento prejudicou-o, por vezes na sua vida profissional, mas era amigo do seu amigo e por ele os colegas tinham grande estima.

Na última viagem que efectuou, numa entrevista que deu a um repórter do “Primeiro de Janeiro”, em 14 de Abril de 58, contou as suas histórias de mar, revelando: – o veleiro mais antigo da frota portuguesa é o Ana Maria e eu o tripulante mais antigo.

E assim o “Ana Maria” e Capitão Zé Lau ficaram na memória dos illhavenses.

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Ílhavo, 11 de Março de 2024

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Ana Maria Lopes