domingo, 15 de dezembro de 2019

Homens do Mar - Cap. José de Oliveira Rocha - 54

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Cap. José de Oliveira Rocha
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Sempre aliei o nome do Cap. José Rocha à pesca do bacalhau, mas capitão já só de arrastões, e, neste caso, servidor fiel ao armador Egas Salgueiro, gerente da EPA.
Em conversa franca e amiga com o Hugo Calão, neto dele, perguntou-me: – Ó professora, do meu avô David Calão, não tinha quase nada, mas do meu avô Zé Rocha, tenho algumas fotos. Não pretende caminhar entre os meandros da sua vida profissional? Com dificuldade em elementos fotográficos, mais uma escotilha se me abriu. O Hugo já me valera, ao fornecer-me algumas imagens do bisavô materno, Francisco Calão (1897-1961), o que não estava fácil.
José de Oliveira Rocha, filho de Cândido da Rocha e de Maria de Oliveira, nasceu em Ílhavo, a 12 de Junho de 1923. Era irmão gémeo de Cândido de Oliveira Rocha, mais conhecido por Cândido do Café, falecido em Fevereiro último.

José de Oliveira Rocha, numa das suas amarrações no Porto, apaixonou-se por Margarida Ferreira Coutinho, natural do Porto e aí residente, atraente mulher e de uma grande beleza física. Depois do casamento no Porto, em 20 de Junho de 1948, passaram a morar em Ílhavo. Desta união, nasceram três rapazes, o José Joaquim Coutinho Rocha, que seguiu a carreira náutica, o Ângelo, que de entre as profissões marítimas, foi maquinista, e o Mário, o mais novo.
José Rocha era portador da cédula marítima nº 41623, passada pela Capitania do Porto de Lisboa, em 19 de Agosto de 1943. Conheci-o, enquanto morador da Avenida Senhora do Pranto, mas nunca tive grande convivência com a família.
Ver-me-ei limitada às informações de familiares, colegas ou pessoas que com ele conviveram.
Segundo informações credíveis, começou por ser piloto do arrastão Santa Princesa, pertença da EPA, nos anos de 1946 e 47, perfazendo duas viagens no primeiro ano e uma, no segundo. Foi seu comandante o capitão António Trindade da Silva Paião.
Nas safras de 1948, viagem inaugural, a 1950 (inclusive), passou a imediato do arrastão clássico São Gonçalinho, também pertença da EPA. À oitava viagem, ascendeu a capitão. Aí, foi seu piloto, o conterrâneo Francisco Correia Marques, como já tinha sido, nas duas anteriores viagens do navio.

Com a mulher, a bordo do São Gonçalinho
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E a vida continuou, sempre com muito pouco tempo em terra… viagem atrás de viagem… ele ia a todas – relembram colegas que o conheceram. De 1951 a 1955, foi a era do Santa Princesa, também arrastão clássico da EPA, em que fez oito viagens seguidas, apenas com uma interrupção – a 1ª de 1955, comandada por João Marques Pelicas. Vida dura e cheia de mar!
Nos cinco anos que comandou o Santa Princesa teve como imediatos, seus conterrâneos Adriano Agualusa Nordeste, em 1951, 1ª viagem, João Marques Pelicas, de 1952 a 54 e 2ª viagem de 1955. Como piloto, Manuel Seiça Filipe, de 1953 a 55.
De saco de roupa e aprestos para novo convés, sempre fiel ao mesmo armador, mudou-se para o comando do arrastão lateral Santa Mafalda, que chefiou durante nove anos seguidos, em 17 viagens. Apenas, na primeira de 1962, comandou o navio, o conterrâneo António Trindade Grilo Paião.

A bordo do Santa Mafalda
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O arrastão Santa Mafalda, como é do conhecimento público, perdeu-se, na saída da barra de Lisboa, no dia 21 de Janeiro de 1996, em frente a S. Julião da Barra – uma avaria do leme, fatal.
Nos nove anos anos que comandou o clássico Santa Mafalda,  Zé Rocha teve como imediatos, Juvenal Carlos Filipe Fernandes, da Gafanha da Nazaré, de 1956 a 58 (1ª v) e seus conterrâneos José Mário de Oliveira Gordinho, em 1958, e de 1960 a 62, e João Manuel Morgado Peixoto da Silva, na 2ª viagem de 1965. Como pilotos, Manuel Paulo Pinto Nunes Guerra, na 1ªv de 1956, José Mário de Oliveira Gordinho, da 2ªv de 1956 até à 1ªv de 1958, Valdemar Aveiro, 2ªv de 1956 até 1ª v de 1960 e António Fernando Paroleiro dos Santos, 2ª v de 1960 até 1963, João Manuel Morgado Peixoto da Silva, 1964 e 1ª v de 1965 e Reinado dos Santos Madaíl, na 2ªv de 1965. Quanto a praticantes de piloto, nem sempre o navio levava, mas, todos de Ílhavo, lembremos, José Carlos Vieira dos Santos, Valdemar Aveiro, Israel Vechina Padinha, António Fernando Paroleiro dos Santos e Libânio Tibério Bóia Paradela.
Outro ano, outro navio, –1966– e, desta vez um arrastão de popa, que, de início, só era entregue a um capitão com renome comprovado. Uma honra e uma mágoa. Esta tinha a ver com a perda do Santa Mafalda – o Cap. José Rocha chorou junto de S. Julião da Barra a perda do «seu navio», que tantos anos comandou com proficiência e sabedoria. Como reconhecimento da sua experiência e do seu saber, largamente demonstrados durante uma vida de mar, teve a honra de ir comandar o arrastão de popa, Santa Cristina, acabado de construir em 1966 para a EPA, pelos Estaleiros Navais de São Jacinto, com todo o conforto, inovações e modernidade.
  
O arrastão de popa Santa Cristina
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Foi comandante do Santa Cristina, de 1966 (em viagem inaugural) a 1972, com 11 viagens realizadas, com excepção da 2ª v de 1972, em que não foi ao mar, para ficar a orientar a construção da sua moradia, na Avenida da Senhora do Pranto, tendo sido substituído pelo capitão António Alberto dos Santos Madaíl. Teve como imediato, Manuel Alves Mendes, nos anos de 1966 e 67 e António Alberto dos Santos Madaíl, na 1ª v. de 1972.
Outro ano – outro rumo – uma nova etapa da sua vida 1973!... O arrastão Santa Isabel, que veio substituir o homónimo, naufragado em 1971, foi construído para a EPA, em 1973, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, com as mais modernas características tecnológicas.
  
Em 1973, o Ministro da Marinha visitou o moderno arrastão
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A viagem inaugural do popa Santa Isabel foi a primeira de 1973, sob o comando de Asdrúbal Capote, mas na 2ª do mesmo ano, passou logo para o comando de Zé Rocha e, por aí adiante, até ao ano de 1978 – duas viagens de 1973 a 75 e, uma, nos anos de 1976 a 83, a sua última viagem, a partir da qual se aposentou.
O filho, José Joaquim Coutinho Rocha, que, amavelmente, me prestou algumas informações sobre o pai, estreou o navio como piloto e passou a imediato do pai, até 1975, tendo feito a viagem de capitão, na safra de 1982. O conterrâneo Manuel Paulo Pinto Nunes Guerra foi imediato do navio, de 1975 a 1983.

Capitão José Rocha junto ao «seu arrastão»
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Após a aposentação, problemas de saúde começaram a perturbar «o nosso capitão». Homem extremamente trabalhador e regrado na sua alimentação, foi atacado por um trombo numa perna, ao qual lhe foi feita uma pequena cirurgia, segundo diagnóstico médico.  As coisas não correram pelo melhor, complicaram-se, tendo-lhe sido amputada uma perna. Acabou por falecer, mais tarde, em Lisboa, relativamente novo, com 65 anos, em 26 de Junho de 1988.
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Fotos gentilmente cedidas pelo seu neto, Hugo Calão
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Ílhavo, 20 de Maio de 2019
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Ana Maria Lopes-

sábado, 7 de dezembro de 2019

Natal de 2019

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Marintimidades à parte, um interlúdio para recordar dois dos presépios da Vista Alegre de que mais gostei, em 1974 e 1979. Na roda do tempo, já lá vão quarenta e cinco e quarenta anos.
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Visitava-os com frequência, em momentos mais vulneráveis da minha vida, para apreciar a ruralidade, a beleza, a simplicidade, a singeleza, o colorido das abóboras e dos carneirinhos, em cabana improvisada e tosca, que albergou, naquela noite, fria e mágica, São José, Nossa Senhora e o Menino Deus, ao colo de sua Mãe. O burro e a vaca não faltaram.
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Os meus filhotes, hoje, homens feitos, retratados ao tempo, eternizaram os momentos.


Dezembro de 1974
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Dezembro de 1979
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Ílhavo, 7 de Dezembro de 2019
AML-

sábado, 31 de agosto de 2019

Recordando o «Chiadinho»


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Ontem, tendo passado pelo espaço de loja, com porta entreaberta e apelativo cartaz à porta, senti falta do «Chiadinho», de que era grande freguesa, na minha adolescência, cujo proprietário era José Neto Peixoto da Silva, nascido em Ílhavo, em Março de 1918.


Dos seus 90 anos de idade, 82 foram vividos na Costa Nova. Com 8 anos (1926), começou com a irmã Lucinda, com uma tenda do pai, que expunham à beira-ria. Com 12 (1930), o pai, que tinha uma loja em Ílhavo, abriu outra na Costa Nova. José Peixoto deixou de estudar para ir tomar conta da loja da Costa Nova.
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Começou no local do antigo Hotel-Casino Beira-Ria e, em 1943, estabeleceu-se naquele espaço que perdurou até ao fim… e que foi por todos conhecido de Chiadinho.
O Chiadinho? Um Chiado em ponto pequeno, que tinha de tudo e do bom – bonecas, brinquedos, carrinhos, fatos de banho, ténis Sanjo, lãs, linhas, cremes, livros, muitos livros. Camisas, camisolas, botões variados, óculos de sol. Enfim...um mundo, em reduzido espaço.Também se encarregava de mandar revelar rolos fotográficos e vendia postais ilustrados, até ao encerramento definitivo.
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Mal chegava à praia, lá ia eu comprar um óleo de protecção solar, dos primeiros que houve, que me deixava como que lambuzada em azeite. Era assim. À época, não havia mais ofertas. Mas, não ficava por aí. Àquilo a que hoje, as minhas netas, chamam de paez, eram, nesse tempo, uns sapatos de pano de cores garridas e sola de corda. Lá os havia variados e de cores diversas, como «os palheiros». Já agora, um livrinho para ler na praia, dentro da barraca listada e colorida, em tardes morrinhentas ou de nortada. E sempre que tirava fotos com amigas, lá ia mandar revelar os rolos, que esperava, ansiosamente.
De inverno, o proprietário tinha uma loja em Ílhavo e as feiras, que suspendia no Verão, para trabalhar na loja da Costa Nova.

José Peixoto incorporava-se, quando lhe era possível, nos picnics lagunares, onde embarcava com o seu saxofone e os colegas do «Rádio Jazz», com vista à animação do passeio.

Foi um ícone da Costa Nova, tendo feito parte do «mobiliário» imaterial da praia, durante 82 anos.

Costa Nova, 31 de Agosto de 2019
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Ana Maria Lopes-

Homens do Mar - Cap. Francisco Leite - 53


Cap. Francisco Leite

Numa tarde cálida de fim de Agosto, soalheira, luminosa, de maré cheia, eis que se plasma, longínqua, no horizonte, a imagem de um barco à vela, impulsionado por uma brisa suave e mansa, na Costa Nova. De casco envernizado, de linhas quebradas, dá pelo nome de OK (apa), duas letras também estampadas a negro, na vela branca, alumiada pelo sol poente reflectido na Gafanha da Maluca. É o dono eterno deste barco que, hoje, vem à baila, em Homens do Mar, a que, aos poucos, venho dedicando algumas horas do meu trabalho e do meu lazer.
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Além dos dados, que, oficialmente, pude recolher, dos que tenho conhecimento, foi a filha Teresa que, amavelmente, me cedeu alguns materiais que foram do pai e que conversou comigo, entusiasmada, saudosa e exuberante.
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Sempre aliei o nome do Cap. Chico Leite à pesca do bacalhau, porque foi, sobretudo, no Museu de Ílhavo que mais contactei com ele e muitas vezes lá foi, como amigo do Cap. Chico Marques, também. Por lá aparecia, com frequência.

Apenas durante 11 anos foi homem dos bacalhaus, se bem que tenha comandado durante bastantes mais anos, outros e diversos navios.
Sempre viveu entre mar e ria e dentro ou perto de navios e embarcações.
Francisco Manuel de Oliveira Leite, filho de José Gonçalves Leite Júnior e de Alzira Teiga Leite, nasceu em Ílhavo, a 27 de Agosto de 1929, um de três irmãos, no masculino e no feminino, tendo sido José Teiga Gonçalves Leite, irmão mais velho, digno oficial da Marinha Mercante.

Do casamento em 6 de Dezembro de 1958 com Joana Maria Peixe Rodrigues, nasceram duas filhas, a Ana Margarida e a Teresa Paula Leite.
Francisco Leite era portador da cédula marítima nº 116.148, passada pela Capitania do Porto de Lisboa, em 16 de Junho de 1949.
O facto de ser de Ílhavo, os genes familiares eram o suficiente para o terem levado para a Escola Náutica. Pertenceu a uma última geração de capitães-pescadores, que não acabou a sua vida profissional, na pesca do bacalhau, tendo-lhe dado, posteriormente, outro rumo.
A sua primeira viagem ao mar, em 1950, foi no arrastão Fernandes Lavrador, da praça de Lisboa, como praticante de piloto, apenas na 2ª viagem, sob o comando do ilhavense Fernando Oliveira da Velha.


Junto ao arrastão Fernandes Lavrador, à esquerda, em 1950
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Na campanha seguinte, de 1951, fez-se ao mar como imediato do belo lugre-motor Hortense, sob o comando do Cap. João Simões Chuva, o Anjo, também de Ílhavo.

E chegou o ano de 1952 para rumar, de saco e enxoval, ao convés do navio-motor de ferro, da praça de Viana, São Ruy, onde ocupou o cargo de piloto, tendo como capitão, José Pelicas Gonçalves Bilelo e imediato, João Araújo, de Viana do Castelo. Nos anos de 53 e 54, assim se manteve a oficialidade, com pequenas alterações – o capitão, sempre o mesmo, Chico Leite alternou o cargo de piloto com o de imediato, em 1953, sendo piloto, Orlando Brandão Vidal, nesse ano.
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Chegou-me às mãos uma relíquia da viagem de 1952, no São Ruy – agenda pessoal, pormenorizada, escrita pela mão do piloto, que li com grande interesse e entusiasmo, apesar de não ser um diário oficial.

O amigo Chico Leite continuou como piloto do São Ruy, até 1954, alternando o cargo com o de imediato, na safra de 1953, sempre sob o comando de José Pelicas Gonçalves Bilelo.
  
A bordo do São Ruy, em 2º plano, à direita. 1953

E numa «emposta», desta vez, para o navio-motor de ferro, Sam Tiago, construção dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), em 1955, para a Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau (SNAB), nos anos de 1955, 56 e 1957, sob o comando de seu irmão, José Teiga Gonçalves Leite, estreou-o como imediato, com o piloto Orlando Brandão Vidal, em 1955, Samuel Guerra Tavares Maia, em 1956 e Amândio Manuel da Rocha Pinguelo, em 1957.

A bordo do Sam Tiago, ao centro, com Orlando Vidal. 1955
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E nos anos de 1958, 59 e 1960, «saltou», desta vez, para o comando do Sam Tiago, com Amândio Manuel da Rocha Pinguelo, como imediato e com António José Ferreira da Costa, de Lisboa, como piloto, nos anos 1958 e 59.  Em 60, o piloto fora Fernando Duarte Vieira do Coito, de Lisboa.
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O ano de 58 foi um ano de pescas muito fracas, de muito mau tempo e de fortes ciclones. Só navios, naufragaram seis. Os de 59 e 60, pouco melhores.
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Uma vez que tive acesso aos «diários de pesca» do Sam Tiago, nestes três anos, o ano em que o navio deu à descarga maior quantidade de peixe foi o de 1958 15.000 quintais, sensivelmente.
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Passei-lhe os olhos com interesse, para ver se referia algo de especial, para além das datas, posições, ventos, estado do mar, estado da atmosfera, quantidade e qualidade de isco, hora legal de arriar e de chamar, nº de pescadores ao activo e quantidade de pesca diária. A saber:
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  entradas e saídas em St. Jonh’s e em que condições
  botes a aliviarem, sinal de razoável ou boa pesca
  a aproximação do navio-hospital Gil Eannes, sinónimo de assistência a bordo, na doença, abastecimento de diversos mantimentos, troca de encomendas, etc., etc.
  navios à vista, com os quais se mantinha bom relacionamento e um espírito solidário de interajuda, eram indicados, frequentemente. Cediam, se possível, uns aos outros, por empréstimo, isco, botes, remos, estrafego (linhas, anzóis…), mantimentos, etc.
o naufrágio do Maria das Flores, do capitão Vidal, que estava com água aberta, no dia 17 de Setembro de 1958, pelo que foi pedido ao Sam Tiago que se aproximasse, perto de Eastern Shoals, nos bancos da Terra Nova. 
Lá foram o Chico Leite, o irmão, José Leite, o Capote e o João Costa, tendo-se decidido abandonar o navio, posteriormente incendiado. Dele vieram para o Sam Tiago seis pescadores.
– o produto da «pesca ao pingalim», por vezes, superava o rendimento da «trawlada».
– à saída de Faeringerhavnen, nos baixios, na Groenlândia, encalhou neste ano de 1959, no dia 10 de Agosto, o Santa Maria Madalena, do cap. José Bolais Mónica, que já estava a ser assistido. Depois da recolha dos botes, o Sam Tiago dirigiu-se ao São Ruy para buscar seis náufragos: 1º maquinista, 2º motorista e quatro pescadores.
Na leitura do diário de 1960, para além das rotinas, melhores ou piores, de notar o naufrágio do navio Condestável, do comando do capitão Pascoal, com incêndio a bordo, a 30 de Agosto.  Uma amizade notória do cap. Chico Leite com um camarada e a perda de um homem da tripulação, chamaram-me peculiar atenção.
A amizade fui certificá-la numa visita ao capitão Manuel Machado, já que um navio que frequentemente era citado era o Avé Maria que sempre associei a este capitão. O amigo Manuel Machado confirmou-me toda uma grande amizade e simpatia pelo Chico Leite, – um bom camarada, um bom amigo, uma boa pessoa, competentíssimo – certificando o grande convívio que houve entre eles, nesta viagem de 1960, Francisco Leite, enquanto capitão do Sam Tiago e Manuel Machado do Avé Maria – os vários encontros, conversas, almoçaradas e jantares, a bordo de um dos seus navios.
Relativamente à trágica perda de um tripulante, entre as folhas do diário de pesca, um rascunho solto, dactilografado, que passo a transcrever, atraiu-me a atenção.
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RELATÓRIO

No dia 18 de Abril de 1960, encontrando-se este navio Sam Tiago na recolha dos botes, cerca das 16.30 horas locais verificou-se faltar um bote, pelo que eu, capitão do navio, mandei o imediato procurar com o binóculo, o bote em falta, tendo-se visto imediatamente uma vela bastante longe e para os lados de SW. Por faltar unicamente um bote, por não haver outro navio à vista e pela cor da vela, adquiriu-se a certeza tratar-se do bote em falta. Este foi-se aproximando do navio, mas a dado momento e quando ele já se encontrava próximo, deixou de se ver repentinamente. Imediatamente mandei suspender o ferro e segui a toda a velocidade cerca de dez minutos para barlavento para as proximidades do local onde havia sido visto pela última vez. Quando ainda navegava, avistei pela proa vários objectos a flutuar; calculando tratar-se de pertenças do bote, aproximei-me e verifiquei assim ser e avistando próximo o bote voltado de fundo para o ar. Imediatamente mandei arriar dois botes e a baleeira motorizada para tentar encontrar o náufrago e recolher os objectos que flutuavam. O bote encontrava-se com a vela içada e a escota amarrada à borda e com o cesto do trol amarrado à proa, tudo indicando que se tinha voltado quando seguia à vela. Também foi encontrado bastante peixe boiando. Recolheram-se todos os objectos à vista não se tendo encontrado o corpo do pescador.
O pescador desaparecido chamava-se António Simões Batista, de 33 anos de idade, filho de João Batista Camilo e de Felicidade de Jesus, era natural de Ílhavo, casado, inscrito na Capitania de Aveiro com o número 24806, em 15 de Fevereiro de 1945.
Foram expedidos no mesmo dia telegramas a informar o Grémio e os Armadores do navio.
Na altura, havia as seguintes condições atmosféricas: céu forrado, horizonte limpo, vento SW, força 2 a 3 e ondulação sudoeste moderada. Já se encontravam estas condições desde cerca de meio-dia.

Bordo, 18 de Abril de 1960
O Capitão
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Após esta viagem, por ter nascido a primeira filha e não querer estar longe da família, tanto tempo, Francisco Leite deixou a pesca do bacalhau, para estar em casa, com mais frequência. E, assim, teve uma longa carreira na Sacor Marítima Limitada, de onde se aposentou, em 1985.
Tendo feito, intervaladamente, algumas viagens de imediato no navio Sacor, com o capitão Ferreira da Silva, logo passou definitivamente a capitão do mesmo navio, até 1968.
  
A bordo do Sacor, à esquerda, em 1961
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Entre 1968 e 84, comandou o navio Bandim e, entretanto, supervisionou a construção do navio Galp Sines, entregue a de 2 de Abril de 1985, que, seguidamente, comandou, até à reforma.
Comandante muito competente e fortemente respeitado por colegas e superiores, recomendou a entrada de alguns oficiais ilhavenses mais jovens para a Sacor, sempre e apenas aqueles que considerava também competentes.
No princípio de vida do bacalhau, entre viagens, fez algumas de comércio nos navios Moçambique, Santa Rita I e Pátria, segundo consta da sua Cédula de Inscrição Marítima.
Depois da aposentação, passou a viver quase definitivamente na Costa Nova, entre ria e mar, em palheiro atípico, bonito, branco, listado de vermelho, na horizontal, nº 102 da Calçada Arrais Ançã, finamente decorado, comprado a Joaninha Ramalheira e marido, casal de portugueses, emigrados nos Estados Unidos.
Mas, mais algumas aventuras marítimas o esperavam, antes de, extemporaneamente, nos deixar.
Ligado familiarmente a viagens turísticas através da filha Ana Margarida, fez uma viagem de turismo, no renovado paquete Funchal com a mulher. Tanto perguntou, tanto colaborou, tanto se «meteu como o piolho pela costura», que foi convidado a fazer, e fez, algumas viagens nesse paquete, como comandante.
Saiu de Lisboa a 4 de Dezembro de 1991 para Salvador, Rio de Janeiro e Santos, após o que efectuou um programa completo de cruzeiros de Verão para o mercado brasileiro, tendo regressado a Lisboa a 21 de Março de 1992.
Anteriormente, no paquete Vasco da Gama, ex- Infante D. Henrique, já também fizera uma viagem de volta ao mundo, comandando o navio juntamente com o Comandante Kotrozos, grego, com saída de Génova a 7 de Janeiro de 1989 e regresso a 27 de Abril do mesmo ano, com 110 dias de viagem, com passageiros alemães (dados fidedignos e confirmados por Luís Miguel Correia). Ambos os paquetes navegavam, na altura, com registo e bandeira do Panamá, propriedade de empresas do armador grego Potamianos e geridos a partir de Lisboa, pela empresa Arcália.
Em viagem aos Estados Unidos, de recreio e de visita à filha Teresa, em Junho de 1992, correu tudo quanto era museu marítimo ou navio musealizado. Não poderia faltar o «nosso» Gazela, em Filadélfia, «dando cartas», ao descobrir e informar que a fotografia do irmão, José Teiga, que havia sido capitão (nº12) daquele mítico navio em 1950 e 51, não era a verdadeira imagem. No dia seguinte, acima de tudo, tornou-se clara, até para os curadores do Museu, a profundidade do conhecimento náutico que tinha –  paixão pelo mar, navios e pelos tempos do bacalhau. Depois de «dar uma lição de Gazela» aos conservadores do navio-museu, deixou-lhes a fotografia certa.


Junto ao navio-museu Gazela I, em 1992
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Pela Costa Nova, ensinou muitos jovens a velejar. Sobretudo, desde que mandou construir o OK(apa), em 1973, descobriu o «Cruzeiro da Ria», que,  para ele, era uma oportunidade de ir mais longe pela ria acima e de fazer amigos velejadores para além da Costa Nova. Adorava o convívio e a camaradagem dos costanovenses que se apoiavam na competição e na logística de levar e trazer os barcos, quando não havia ainda clube de vela. Foi sócio fundador do Clube de Vela da Costa Nova e participou activamente em regatas e eventos do clube, até ao fim.
Pela mesma altura, foi Presidente da Assembleia Geral da Associação dos Amigos do Museu de Ílhavo, desde 1994 até 2001, tendo colaborado imenso no evento, «De novo na Terra Nova», no Verão de 1998.
Depois de uma doença súbita e cruel, deixou-nos em 16 de Junho de 2001, com 71 anos de idade, levando-nos a recordá-lo com saudade.
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Fotografias cedidas pela filha Teresa Leite
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Ílhavo, 31 de Agosto de 2019
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Ana Maria Lopes-

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

A «estória» da Joana Labrega


Dos Postais da CASA do BICO que Senos da Fonseca tem escrevinhado no blogue Terra da Lâmpada, não há dúvida que, para mim, o último, que relata um parto improvisado a bordo de uma bateira labrega, seduziu-me mais profundamente. 
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Todos eles têm o seu atractivo, porque relatam histórias ficcionadas entre figuras características da Costa Nova, que, por sua vez, lhe são hipoteticamente relatadas pela Zefa e pela Bernarda, em encontros de passeios matinais.
Elogio no autor, a capacidade criativa, a preocupação do registo dos nossos regionalismos, em contexto, bem como o entusiasmo com que nos brinda com os seus relatos.

No entanto, a «estória» do parto da Joana Labrega fascinou-me demais …Porquê?
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Por ter a ria como cenário, a bordo de uma bateira labrega, de vela bastarda, com toldo espalmado (pata de rã)?
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Por registar os tais regionalismos (vertedouro, escalamões, saltadouro, castelo da proa, traste, orça, etc.), sobretudo, de cariz marítimo?
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Por nos contar um parto improvisado, o desabrochar de uma vida, com toda a sua emoção?
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Eu, que assisti a partos e, principalmente, fui mãe, sem os artifícios que envolvem os partos actuais, pensei, depois de ter acabado de ler a história:
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 – há cinquenta anos, quase que preferia ter parido a bordo de uma labrega que numa «cama de bilros», de pau-santo.
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E fiquei ferrada naquele pensamento!!!!!!!!!! que navegou comigo até de manhã. Que beleza!
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Costa Nova, 29 de Agosto de 2019

AMLopes-

sábado, 3 de agosto de 2019

Memórias - 30 anos a pintar a Ria - José Oliveira


Memórias – 30 anos a pintar a Ria. José Oliveira

Ontem, dia 2 de Agosto, fui à Murtosa, assistir à apresentação do livro «Memórias – 30 anos a pintar a Ria», que pretende homenagear o pintor José Manuel Oliveira, mais conhecido por Zé Manel, pelo seu trabalho e dedicação, sobretudo, à pintura de barcos moliceiros.
O Zé Manel surge numa fase de crise de decoração dos barcos lagunares, em que Avelino Marcela já não estava no activo e em que Jacinto Viera da Silva (mais conhecido por Jacinto Lavadeiro), nos tinha deixado precocemente.
Foi, pois, por esse tempo, que o Zé Manel começou o seu labor, seguindo a linha do Jacinto, não deixando de respeitar o mais característico e tradicional, mas soltando inovação e criatividade. E assim o foi fazendo, durante 30 anos, de 1989 a 2019.
Conheci-o, exactamente, nessa altura, à beira-ria, quando pintava o barco moliceiro A 2040 M – JOÃO MANUEL, um dos primeiros barcos que decorou.

Zé Manel, à direita, há 30 anos

Durante estes trinta anos, não deixei de ir acompanhando o seu trabalho, sempre que possível, registando os painéis que brochou, de duração efémera, como é natural.
De convívio bastante agradável, o Zé Manel sempre respeitou painéis de temática religiosa e patriótica, mas os brejeiros é que davam prémios nos Concursos. Oh! Quem o conhecer… que o compre! Tem a brejeirice à flor da pele! Mas, em seu dizer, os proprietários das embarcações é que são uns malandrecos, pois, nos seus painéis, «só querem gajas». Estes é que dão prémios!...
Muitos parabéns ao Pintor, que nos continue a brindar com as suas telas flutuantes, muitos parabéns à Etelvina Almeida, que, com o seu saber e competência, foi a coordenadora desta obra, parabéns ao Município da Murtosa, que, em boa hora a fez nascer, para ampliar o memorial da nossa laguna.
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Tema patriótico
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Tema religioso
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Alguns temas brejeiros

Costa Nova, 3 de Agosto de 2019

Ana Maria-