domingo, 30 de dezembro de 2018

NOVO ANO DE 2019


Se há imagens que me marcaram, esta foi uma delas -  O Beijo dos Moliceiros


Ílhavo, 30 de Dezembro de 2018

Ana Maria Lopes


quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Homens do Mar - David Manuel Mendes Calão - 51


-
Cap. David Calão (Ficha do Grémio)

Há em Ílhavo famílias cujo nome logo denuncia que nelas houve, geracionalmente, «pilhas» de homens do mar. E esta é uma delas – família Calão.
Que eu tenha conhecido e com alguma ligação com meu avô materno, pois era seu irmão, o patrono era o Capitão Francisco dos Santos Calão, de quem o visado de hoje é filho.
David Manuel Mendes Calão, filho, pois, de Francisco dos Santos Calão e de Maria Oliveira Mendes, nasceu em Ílhavo, em 27 de Julho de 1926, na rua Dr. Samuel Maia, lá bem para o fundo do Arnal, onde foi criado.
Do casamento com Maria Luísa Pinto Nunes Guerra, nasceram cinco filhos: duas raparigas, Maria Irene e Maria Luísa e três rapazes, Francisco Manuel, David Manuel e José Luís Guerra Mendes Calão, tendo, pelo menos, um deles, o David, vida ligada ao mar.
Capitão já das mais recentes gerações, era possuidor da cédula marítima nº 25165, passada pela Capitania de Aveiro, em 12 de Dezembro de 1945.
É perfeitamente natural que o mar fosse o grande objectivo da sua vida profissional, e, nesse sentido, fez a sua primeira viagem como praticante de piloto (ainda sem curso), na 1ª viagem do ano de 1946, sob o comando do seu pai, Francisco dos Santos Calão, no já citado e conhecido primeiro arrastão de pesca lateral, Santa Joana, mandado construir pela Empresa de Pesca de Aveiro (EPA), na Dinamarca e estreado na safra de 1936 por João Ventura da Cruz.
David Calão, na safra de 1948, fez a viagem inaugural, a única do arrastão Santa Mafalda, construído em 1948, para a EPA, pelo estaleiro Odero Terni Orlando, em Livorno, Itália, como piloto, sob o comando de António Trindade da Silva Paião (1895-1971).
Retomando o Santa Mafalda no ano de 1950, com duas viagens, exerceu o cargo de piloto na primeira e o de imediato na segunda, sob o comando do mesmo capitão, bem como na única viagem do navio, em 1951, nas duas de 1952 e na primeira de 1953.
 -
Arrastão São Gonçalinho na Gafanha da Nazaré
 -
E eis que lhe foi proporcionada a mudança de navio, – o São Gonçalinho – do mesmo armador, Egas Salgueiro. Construção nos Estaleiros de Viana do Castelo, que o seu pai vigiara em 1946/47 e estreara no ano de 1948. Neste navio fizera, o «nosso» homem do mar, a segunda viagem de 1953, como imediato, sob o comando de Manuel Gonçalves da Silva, Paroleiro (1898-1972), situação que se manteve, durante o ano seguinte. A partir de 1955, a situação inverteu-se e o Cap. David Calão passou a capitão do «seu São Gonçalinho», com num ritmo de viagens alucinante, até ao ano de 1966. Apenas não fez a segunda viagem de 1963, tendo sido substituído por António Trindade Grilo Paião (1928-2002).
Neste espaço de tempo, foram seus imediatos, todos de Ílhavo, Manuel Gonçalves da Silva, Paroleiro, Francisco Manuel Mendes Calão (1961, 62 e 63), seu irmão, Manuel Alves Mendes (1964 e 65) e Valdemar Aveiro (1966).
Ao todo, entre imediato e capitão serviu-lhe de «habitat aquático» o São Gonçalinho, durante catorze anos, num total de 25 viagens, entre 1953 e 1966.  Este ritmo vertiginoso só seria conseguido por um homem trabalhador, dinâmico, sabedor e amante da sua profissão, que o levava a vencer a saudade da família, durante meses e meses no mar, em prol do sustento e conforto da mesma.
 - 
Capitão David Calão, a bordo…
 -
O São Gonçalinho foi o primeiro arrastão com uma linha de veios e pás reversíveis, inovação que penalizou frequentemente o capitão com reparações e alguns dias de estadias em terra, que ele foi ultrapassando sempre.
Nesta mesma década de 60, começaram a surgir os chamados arrastões de popa, novos tipos de navios com novos métodos de pesca – o Maria Teixeira Vilarinho, em 1964, o Santa Isabel, em 1965 e o Santa Cristina, em 1966, para a EPA, ambos construídos nos Estaleiros de S. Jacinto.
Fez a viagem inaugural, em 1965, o Santa Isabel, pelas mãos de João Laruncho de São Marcos (1919-2018).
Em 1967, que grande desafio foi feito ao «nosso» capitão – o comando deste arrastão – … e assim aconteceu.
 -
O arrastão de popa Santa Isabel. 1965
 -
Depois de várias e rentáveis viagens, neste novo navio de arrasto de popa, em 1967 (três viagens), em 1968 (duas), em 1969 (duas) e em 1970, uma, visto que na segunda do ano, comandou o navio, Manuel Mendes, o inesperado aconteceu…
Foram seus imediatos Valdemar Aveiro (1967 e 68), António Virgílio (1969, 70 e 71) e seus pilotos, António Manuel Silva (1967 e 68), Manuel Luís Chuva Machado dos Santos (1969) e José Manuel Maia de Oliveira, nos restantes, todos de Ílhavo.
A 23 de Abril de 1971, prestes a largar para Portugal com um carregamento de cerca de vinte mil quintais, segundo noticia O Ilhavense de 1 de Maio, perdeu-se no Labrador, por choque com uma ilha de gelo, baixa mas profunda, o arrastão de popa Santa Isabel, belo navio, relativamente novo, pertença da EPA, salvando-se toda a tripulação, que já vem a caminho. Era seu comandante o distinto oficial náutico Cap. David Mendes Calão.
A perda fatídica na Terra Nova do Santa Isabel provocada por um iceberg só, por milagre, não deixou de luto setenta famílias de pescadores – é o título da notícia do Jornal do Pescador de Junho de 1971, pp. 41 a 44, de que respigo alguns excertos.
O drama, pois de drama se tratou, na medida em que se perdeu uma das mais valiosas unidades da nossa marinha mercante, teve lugar pelas vinte horas do dia 23 de Abril.
Noite cerrada, com toda a tripulação a bordo, depois de um longo dia de faina, eis que um som surdo, proveniente de algo que batera no arrastão, se fez sentir. Surpresa! Baque! Susto! – não se vislumbravam quaisquer luzes, o silêncio era total. A verdade dos factos surgiu e o Santa Isabel estava de água aberta… O seu destino encontrava-se traçado. Não seria preciso muito tempo para que toda a tripulação, composta por setenta homens, assistisse, à partida para um mundo submerso desse navio que era o seu orgulho, impotente para o evitar.
E mais do que o navio, desapareciam, devorados pelas águas, singelos, mas afectuosos bens pessoais, como uma simples fotografia de família, de muitos pescadores do nosso litoral.
Não aconteceu que estes homens, muitos, chefes de família, com bastantes filhos, fossem devorados para sempre. Nem tudo era drama, mas muito de mal havia sucedido.
O Santa Isabel já se preparava para dentro de breves dias, iniciar o regresso para Portugal. Tudo se perdera, mas a vida, essa, salvara-se.
Nesse salvamento, foi de louvar a actuação do capitão, tripulação e pescadores do Vasco d’Orey, arrastão da Empresa de Pescas de Viana, sob o comando de Manuel Machado dos Santos, Praia, de Ílhavo.
A luta pelo salvamento heroico dos seus semelhantes fora inexcedível, até à «captura» do último homem.
Mal chegaram a bordo, foi-lhes proporcionado o maior conforto com a ingestão de bebidas fortes, para lhes restituir o calor de que tanto necessitavam e com a cedência de roupas da própria tripulação, pois mais fartura não havia… são assim os homens do mar. Por vezes rudes, mas humanos e amigos do seu amigo. Logo que possível, a tripulação do Santa Isabel foi dividida entre o Santa Mafalda e o Santa Cristina, ambos arrastões da mesma empresa, em que navegaram até à barra de Aveiro. Se cada um sentiu a seu modo, para o Capitão David, a perda do «seu navio» nunca mais foi ultrapassada. Constou mesmo que foi muito difícil convencê-lo a abandonar o navio numa balsa salva-vidas, já que a sua decisão obstinada era afundar-se com ele. Este dramático episódio, sempre presente na sua mente, aí durou até ao fim dos seus dias.
Nesse mesmo Verão de 71, de férias na Costa Nova com a família, teve um acidente solitário de lancha, em que esta capotou, ao ter-se baixado, o capitão, para acender o cigarro.
Sói dizer-se que a vida é uma roda que anda e desanda para qualquer um dos lados. E nesta época, o azar bateu à porta do Cap. David. A roda resolveu andar para trás. Em fins de Agosto, dia 29, na sua casa de férias, no 1º andar, voltada para a ria, lá ao norte, nº 108, 1º, da Avenida Marginal da Costa Nova, desmaiou na banheira, intoxicado por uma fuga de gás do esquentador. A má notícia espalhou-se entre amigos e correu pela praia mais célere que a nortada.
Apesar de levado para o hospital com vida, urgentemente, foi reanimado, mas as lesões no cérebro provocadas pela falta de oxigénio, deixaram marcas irreversíveis na visão e no controle da fala. Com o andar dos tempos, foi recuperando, mas nunca mais foi quem era, nem voltou ao activo, apesar de ir mantendo alguma bonomia.
Ainda muito novo, partiu a 9 de Outubro de 1983, acabando a sua tormenta, com 57 anos, vítima de um ataque cardíaco. Aquele maldito iceberg gelara-o para sempre.
-
Segundo declara Valdemar Aveiro (VA) no seu livro Ecos do Grande Norte (pp.117 a 120), o Cap. David foi o seu último capitão, sendo sem dúvida uma figura carismática da terra de Ílhavo e da pesca do bacalhau.
Ainda não o conhecia pessoalmente e já ouvia falar dele como um homem independente, arrojado, que se lançava em aventuras sozinho, sem mendigar a companhia de ninguém. Se as pescas não eram do seu agrado, abandonava a zona à procura de melhores resultados – grande marinheiro, que teve a oportunidade de confirmar pessoalmente.
Como já referido, o Capitão David, em 1967, passou para o comando do Santa Isabel, navio novo e de arrasto pela popa, onde este grande capitão mostrou o seu real valor, quer como Pescador, quer como Marinheiro.
Afável, calmo, bondoso, bom conversador – assim o retrata Valdemar Aveiro, de quem foi imediato nos anos de 1966, no São Gonçalinho e de 1967 e 68, no Santa Isabel.
A certa altura da vida, em plena actividade e na força da vida, foi morar para uma casa alugada esverdeada, pertença do Sr. Durão, que mais tarde comprou, ainda hoje, uma das mais bonitas e melhores moradias, logo no início da dita Avenida dos Capitães (e das primeiras construídas, pelo início dos anos 50), junto ao Pavilhão Desportivo do Illiabum Clube.
Segundo Valdemar Aveiro, não tendo sido ele o seu primeiro mestre, foi com ele que mais aprendeu, mais cresceu e ganhou dimensão, tendo-o preparado para que pudesse enfrentar com êxito, futuros combates.
 -
Ílhavo, 13 de Dezembro de 2018
 -
Fotos – Foto do Grémio cedida pelo MMI e a outra, pela família
 -
Ana Maria Lopes-

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Tragédias marítimas ... que enlutaram a nossa terra...


--
Como já referi, muito mais do que pensamos, se perderam gentes ilhavenses no mar. Em qualquer dos mares, que é todo um. 
Sabendo que dois amigos meus, irmã e irmão, perderam o Pai num naufrágio, há mais de 50 anos, na altura, não lhe dei o merecido valor da perda.
Agora, que pondero mais os factos e os aprecio mais, lembrei-me de ir revirar os jornais da época, para saber se a notícia tinha sido dada e com que profundidade a tinham tratado. 
E no jornal «O Ilhavense» de 10 de Dezembro de 1965, está-se a aproximar o aniversário, dei de caras com o que pretendia.
Na primeira semana do corrente mês, há 53 anos, Ílhavo saiu enlutado de uma grande tragédia marítima.
Havia desparecido o velho cargueiro «João José I», naufragado ao norte do Furadouro, na sua viagem de Lisboa ao Porto, nos fins de Novembro. Vapor onde navegavam 9 homens, que perderam a vida, sendo de Ílhavo, o cozinheiro, Manuel Francisco Grilo, de 45 anos e o motorista, Leopoldo dos Santos Barreto, de 60 anos, homens muito admirados e estimados pelos camaradas pelo seu profissionalismo e capacidade de trabalho.
O cargueiro «João José I», antigo Merwestein, que o capitão João Cândido Cristiano comandou durante muitos anos, fazia viagens de cabotagem sob o comando do capitão cabo-verdiano, Manuel da Silva.

O cargueiro «João José I»
-
Saíra de Lisboa para o Porto e a quatro horas de Leixões ainda o capitão comunicava com a esposa, dizendo-lhe que o navio estava a meter água. Nada mais se soube. E esta tragédia marítima poderia ter ficado por aqui…
Teria sido melhor? Pior? Esperou-se um dia, outro e outro, até que…
Cenas muito chocantes se seguiram.
Deu à costa, perto de S. Jacinto, o corpo do desditoso cozinheiro ilhavense Manuel Francisco Grilo de 45 anos, casado com Alzira Chibante.
O coração da família dos outros tripulantes desaparecidos apertou-se mais um bocadinho, numa esperança … de quê? Seria sempre uma má esperança, que talvez diminuísse um pouco a dor da perda. Seria? Não faço ideia, nem opino sobre tal…
Na manhã do dia 6 de Dezembro, encontrado por um pescador madrugador, apareceu arrolado o corpo de Leopoldo dos Santos Barreto, na praia da Costa Nova, um pouco ao norte da casa do conhecido, à época, Dr. Ferreira da Costa. O desafortunado motorista era casado com Júlia Vidal Figueiredo (Mariazinha) e pai da Maria Alice e do Júlio Barreto, meus amigos, e, ao tempo, respectivamente, professora do Externato de Ílhavo e finalista do Instituto Superior Técnico de Lisboa.
 -
Leopoldo Barreto
 -
Perante a cena traumática e arrepiante e cumpridas as disposições legais, o corpo, depois de colocado numa urna, foi velado, na Costa Nova, na sala da casa «das Rolinhas», irmãs do capitão Salta e daí para o cemitério de Ílhavo, em funeral, no dia seguinte.
Leopoldo Barreto andava há cerca de 34 anos no navio, que lhe havia servido de sustento para si e para a Família. Nele, agora, encontrou a morte.
O jornal «O Ilhavense» lastimou o sucedido, desejando que as famílias dos desditosos marinheiros encontrassem a resignação para o desgosto que as feriu perante perda tão dolorosa.
-
Ílhavo, 03 de Dezembro de 2018
-
Fotos cedidas pelos filhos
--
Ana Maria Lopes-