quinta-feira, 28 de março de 2024

O bota-abaixo do N/Motor "Novos Mares", em 1958

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Boas memórias para adoçar o efeito do temporal – o bota-abaixo do n/m “Novos Mares”, no dia 19 de Março de 1958. Já lá vão 66 anos…

Então uma “senhorinha”, com os meus catorze anos, calçara, pela primeira vez, uns sapatos de salto alto. Lembro-me como se fosse hoje! Eram brancos!

Com a mudança de alguns actores, todo o cerimonial se repetiu, relativamente ao do lançamento à água de outros navios: a chegada de autoridades em comboio especial, o almoço no “Salão de Festas do Cine Avenida”, em Aveiro.

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Pormenor de alguns convidados
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A ementa era personalizada por uma bonita fotografia de Testa & Cunhas e seus navios: “Cruz de Malta”, “Inácio Cunha” e “São Jorge”.

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Pormenor da ementa
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Terminado o almoço, formou-se um extenso cortejo de automóveis, que se dirigiu aos Estaleiros. Não havia dúvida que era dia de grande festa.

A população ribeirinha de Aveiro e Ílhavo sempre demonstrou especial predilecção pelas cerimónias de bota-abaixo, sentindo-as e compreendendo-as como poucas, não admirando, portanto, que a Gafanha da Nazaré registasse um movimento inusitado.

A nova embarcação era produto do labor esforçado de cerca de 120 operários, durante catorze a quinze meses. Daria trabalho a uma tripulação de oitenta e três homens, que se viam privados do convívio das mulheres e dos filhos, durante seis longos e árduos meses. Foi seu primeiro capitão o Sr. Weber Pereira da Bela, de Ílhavo. A partir de 1961 e até 1974, última viagem de pesca à linha com dóris, seguiu-se o Capitão António Morais Pascoal, também nosso conterrâneo.

Junto à proa do “Novos Mares”, na tribuna habitual para convidados, sucederam-se os acontecimentos usuais: bênção da nova unidade pelo Sr. Bispo auxiliar de Aveiro, D. Domingos da Apresentação Fernandes, discursos, baptismo pela Senhora D. Maria Flor Ferreira Queirós, que já havia sido madrinha do primeiro “Novos Mares” (1938), a quem ofereci um bonito ramo de flores.

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A madrinha do navio (à direita)
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Continuava a ser uma honraria para a tal “senhorinha”, a querer espigar, de coração latejante, participar em actos tão solenes, assistindo, perplexa e deslumbrada.

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Bênção da nova unidade 
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Entre os discursos, com o seu feitio acalorado, o do Mestre Manuel Maria Mónica, era sempre emotivo. Ao falar aos colaboradores, armadores e governantes, o seu facies transformava-se de perturbação e envolvimento.

A um sinal de Mestre Mónica, o Sr. Eng. Higino de Queirós cortou o “cabo da bimbarra”, começando o navio a deslizar suavemente. Depois mais rapidamente, as”obras vivas”, como que num choque, mergulham nas águas da ria pela primeira vez.

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Pormenor, à esquerda, do cabo da bimbarra
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 O “Novos Mares” penetrou nas águas da ria

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Com os navios embandeirados em arco, como sempre, nas cerimónias festivas, entre o estalejar de foguetes e os silvos das sirenes dos barcos, o novo navio procura posição, enquanto ocupantes de pequenas embarcações, como habitualmente, recolhem das águas alguns restos de madeira, com que vão atear a fogueira de Inverno, que os aquecerá.

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Cerimónia sempre impressionante e comovente!
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Estas doces memórias aquecem o coração, em dia de forte temporal, num dia já primaveril, pelo menos no calendário.

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Ílhavo, 28 de Março de 2024

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Ana Maria Lopes

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segunda-feira, 11 de março de 2024

O meu homónimo - o lugre "ANA MARIA"

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Sempre tive uma predilecção muito especial pelo lugre "Ana Maria", porque, de facto, tem o mesmo nome que eu, porque foi dos mais antigos da nossa frota pesqueira, porque era muito elegante e porque a ele associo um oficial de cá de Ílhavo, de quem era conhecida, aparentada e amiga – o Capitão José Fernandes Pereira Júnior, mais conhecido por Capitão Zé Lau (1879-1971) muito sui generis.

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Em bom andamento…

O “Ana Maria” – o “ex-Argus”, construído em Dundee, em 1873, era um veleiro elegantíssimo. Adquirido à Parceria Geral de Pescarias pela Firma Veloso, Pinheiro & Companhia, da Praça do Porto, participou na campanha de 1939 e seguintes.

De exíguas dimensões, cerca de 40 metros de comprimento, de 8 de boca e 4 de pontal, tinha uma capacidade de pesca de apenas 5.000 quintais.

Curioso, as rectas finais de vida do “Ana Maria” e do Capitão Zé Lau confundiram-se.

No Jornal do Pescador de Outubro de 1955, foi dada a grande notícia de que, num belo dia do anterior mês de Setembro, o primeiro navio da pesca do bacalhau à linha a entrar no Douro, foi o lugre “Ana Maria”.

“Em viagem directa da Terra Nova, chegou ao Douro o navio "Ana Maria", tendo fundeado junto do cais do Bicalho”.

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O “Ana Maria” entra no porto de Leixões…pelos anos 50
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Foi com grande júbilo que a gente ribeirinha da capital do norte aguardou a chegada do veleiro. As famílias dos pescadores mostravam a sua impaciência, enquanto se procedia à manobra da atracação.

Logo foram beijos, risos, abraços, recordações evocadas e notícias trocadas, numa demonstração de ternura entre pessoas queridas que não se viam há seis meses.

Entretanto, o capitão do barco, também de Ílhavo, Sr. José André Alão deu as boas notícias de que o seu barco se portara maravilhosamente e estava apto para continuar na faina do bacalhau. A viagem fora óptima e os porões vinham completamente carregados. Foi também do Ana Maria que se lançou o alarme à navegação sobre o fogo do Ilhavense Segundo, quando se encontrava a 60 milhas do lugre incendiado.

O Capitão Lau nasceu em Ílhavo a 5 de Dezembro de 1879, tendo ido para o mar aos catorze anos, como era normal, à época.

Deixou o mar em 1958, com a provecta idade de 79 anos.

Quem, de idade á madura, não se lembra da sua figura física? Baixote, velhinho, de cabelos muito alvos, rapioqueiro e sempre bem aperaltado, mas de feitio difícil, com quem era preciso saber lidar. No meu casamento, em 1965, para que fora convidado, com uma vetusta idade, fartou-se de dançar. Gravei-o na memóris…

Entre os postos de moço, piloto, imediato a capitão, lá foi sulcando os mares, no meio de muitas peripécias e alguns naufrágios, em tempos bastante difíceis, passando pelo Lusitânia III (futuro Terra Nova), Maria Preciosa, Paços de Brandão, Alcíon, Silvina, Delães (torpedeado e afundado por submarino desconhecido, em 1942), Labrador, Oliveirense, Infante de Sagres III e Paços de Brandão. De 1952 até 1958, ocupou o cargo de imediato no “Ana Maria”, ano em que o velho lugre do Porto naufragou, com água aberta, a 7 de Setembro.

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O lugre “Delães”, em alto mar, cerca de 1940
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O Capitão, Sr. Joaquim Agonia Vieira, de Vila do Conde, e o “nosso imediato”, entre os seus quarenta tripulantes, foram salvos pela escuna costeira norte-americana “Spencer”, que os entregou posteriormente a um navio espanhol. O velhinho Zé Lau, pelos seus 79 anos e pernas enfraquecidas, já teve de ser auxiliado, nestas andanças e mudanças de embarcação para embarcação. Abandonou, então, a vida do mar.

O lugre cumprira o seu destino com 85 anos e o imediato contava menos seis.

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Em primeiro plano, o lugre “Paços de Brandão” e o “Ana Maria”; pela popa, o “Aviz” e, semi-encoberto, o lugre de quatro mastros, que sabemos ser o “Senhora da Saúde” (in A Campanha do Argus, de A. Villiers)

Em terra, ainda duraria até aos 91 anos (até 1971), a saborear o aconchego do lar e seus familiares, com invejável memória e vivacidade inusitada.

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Capitão Zé Lau, já de idade avançada
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O seu temperamento prejudicou-o, por vezes na sua vida profissional, mas era amigo do seu amigo e por ele os colegas tinham grande estima.

Na última viagem que efectuou, numa entrevista que deu a um repórter do “Primeiro de Janeiro”, em 14 de Abril de 58, contou as suas histórias de mar, revelando: – o veleiro mais antigo da frota portuguesa é o Ana Maria e eu o tripulante mais antigo.

E assim o “Ana Maria” e Capitão Zé Lau ficaram na memória dos illhavenses.

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Ílhavo, 11 de Março de 2024

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Ana Maria Lopes

sexta-feira, 8 de março de 2024

Nunca é tarde

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Zé António Paradela

José António Bóia Paradela nasceu em Ílhavo, em 30 de Outubro de 1937, filho de José António Paradela Júnior e de Rosa de Jesus Bóia. Foi casado com Matilde Ventura Nunes Henriques, amor de uma vida.  Adoptaram dois filhos, o Marco e o Jorge.

Subiu a pulso. Foi embarcadiço na pesca do bacalhau, tendo feito uma campanha de moço, em 1955, no navio-motor “Lousado”. Depois, bolseiro da Fundação Gulbenkian, durante cinco anos, formou-se em Arquitetura, na Escola Superior de Belas Artes.

O seu curriculum vasto compreendeu várias disciplinas e tipologias, desde as arquitecturas, especialmente habitação colectiva e equipamentos, ao ordenamento do território e ao planeamento urbanístico. Nesse aspecto, podemos dizer que na ilha da Madeira, teve um papel fundamental.
No planeamento urbanístico, a sua área de trabalho preferida foi o POTRAM (1990) – Plano de Ordenamento Territorial da Região Autónoma da Madeira, em que   coordenou uma vasta equipa pluridisciplinar.

Para Ílhavo, a sua terra natal, fez o projecto dos Paços do Concelho, o Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, o edifício antigo dos Bombeiros Voluntários, que adaptou ao Centro de Religiosidade Marítima e o Jardim Henriqueta Maia.

Usava como pseudónimo literário Ábio de Lápara.

Na escrita, deixou-nos dois livros de crónicas e pequenas estórias sobre os lugares onde cresceu e conviveu “Uma Ilha no Nome” e “A Rua Suspensa dos Olhos”, e um livro de textos poéticos, “O Livro das Santinhas de Apegar”.

O Zé António era um homem bom, honesto, culto, sem pretensões e com humor. E a juntar a tudo isto – um grande arquitecto e urbanista. Apresentou-nos, em Ílhavo, com saber e boa vontade o livro “Moliceiros” – A Memória da Ria”, em 2012.

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Apresentação de “Moliceiros – A Memória da Ria”
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Depois de doença prolongada, a que resistiu estoicamente, faleceu em 21 de Fevereiro de 2023, com 85 anos.

A título póstumo, foi-lhe concedida a medalha de ouro, de mérito cultural, em 2023, pela CMI.

Ílhavo, 8 de Março de 2024

Ana Maria Lopes

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quinta-feira, 7 de março de 2024

João Juff, o "capitão preto" de veleiros, Comandante de uma "tripulação de brancos"

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João Juff

Vem isto a propósito do título que encima uma notícia/entrevista de 7 de Abril: “Para a pesca do bacalhau / O capitão preto [expressão sublinhada] seguiu hoje no ‘Navegante’ para a Terra Nova a comandar uma tripulação de brancos e contou-nos a sua história” .

Quem era então João Juff? Segundo a ficha/declaração destinada a marítimos matriculados para as campanhas bacalhoeiras existente no Museu Marítimo de Ílhavo, preenchida em 24 de Novembro de 1938, o seu nome completo era João Juff Tavares Ramos.

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Ficha do grémio
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Nascera em 5 de Setembro de 1891 em São Vicente de Cabo Verde, filho de Tomaz Juff e de Joana Tavares. Casado com a ilhavense Silvina de Jesus Ramos desde 12 de Novembro de 1913, residia no Largo da Capela, em Ílhavo. Livre da condição militar, começara a ir aos bancos da pesca do bacalhau em 1908 mas interrompeu a profissão de marítimo em 1914, por motivo de estudo.

Ora o nosso homem surge-nos com grande destaque no “Diário de Lisboa” de 7 de Abril de 1949, sob o título “Para a pesca do bacalhau / O capitão preto seguiu hoje no ‘Navegante’ para a Terra Nova a comandar uma tripulação de brancos e contou-nos a sua história”. Antes de reproduzirmos o que ele declarou, lembremos o que tinha sido a sua carreira de marítimo com responsabilidades de navegação até aí. Juff fora piloto por cinco vezes e imediato outras tantas, os postos de maior importância abaixo do de comandante, em lugres apenas à vela ou nalguns casos com motor. Após essas longas 10 viagens, na campanha de 1949 seguiria pela primeira (e afinal única) vez como comandante. Desta feita, do “Navegante II” , elegante lugre de casco de madeira e três mastros, feito em 1912 em Fão, ao qual tinha sido dado em 1936 um motor.

De tão significativa a introdução biográfica do capitão feita no jornal, transcrevemo-la na íntegra: “E é bem engraçada a história deste capitão Juff, do ‘Navegante II’! Tem cinquenta e tantos anos e é um cabo-verdiano dos quatro costados [não era assim tanto, como veremos], espadaúdo, de cor retinta, modesto e tímido, respeitado e amado da sua tripulação. Pela primeira vez, um capitão de cor vai à Terra Nova a comandar um grupo de brancos… Isto para um país de colonialistas, onde as leis não põem parágrafos restritivos, fechando as portas aos seus filhos de todas as latitudes e meridianos, seja qual for a tintura da sua pele – não é de admirar. Mas só é de distinguir, porque o caso é o primeiro.” Acontece que, segundo Juff, seu pai teria ido parar a Cabo Verde na qualidade de carpinteiro de obras públicas. Mas a mãe, dita de nascimento sul-africano, chamava-se Joana Tavares… Juff parecia bem ligado ainda à terra de nascimento. Dizia ele: “Tinha eu 13 anos, quando um dia vim para a Metrópole. Deixei a querida terra cabo-verdiana, as suas mornas tão doces, os seus tristes escarpados, tão gratos ao meu coração, quando em 1904 o sr. dr. Samuel Maia me trouxe para Ílhavo (…) era um bom médico. E também escrevia (…). Era (…) muito meu amigo. Vim para seu paquete e ouvi os seus conselhos (…). Meti-me a praticante de farmácia e, como Ílhavo é terra de pescadores e São Vicente de Cabo Verde é terra de mareantes, também um dia me fiz ao mar como moço de bordo.” Juff embarca em 1906 no “Luanda”, ganhando pela safra 90 mil réis, quando um pescador recebia 160.000. Depois, torna-se cozinheiro. E, já casado com uma ilhavense e pai de duas filhas, a conselho do seu protector Samuel Maia tira o curso de piloto no Porto e em Aveiro. O depoimento do capitão Juff terminava com alusão à morte recente de uma das suas filhas mas com alguma esperança: “É a primeira vez que vou à Terra Nova como capitão de um barco. Conheço aquilo tudo como as minhas mãos. A vida, sem dúvida, é agora menos dura. Temos o Mundo mais perto de nós, a rádio leva-nos notícias dos nossos, o médico vela por quem trabalha e os motores deixam descansar os músculos do homem. Este ano já não poderei ouvir a voz da minha filha, morta há um mês. Não posso, é como quem diz: ouço-a na minha saudade.”

Ora a vida de marítimo na pesca do bacalhau configurava-se de facto extremamente dura. Não eram raros os encalhes, incêndios e naufrágios, fora acidentes pessoais a bordo dos lugres e arrastões ou dos pequenos dóris que cada um transportava. Apenas a título de exemplo, poderemos recordar o incêndio com afundamento do “Júlia IV”, da praça da Figueira da Foz, já com 3000 quintais de pescado a bordo, para uma capacidade de 4300, neste caso sem perda de vidas humanas ou o arrastão “Águas Santas” que encalhou mas acabou por safar-se pelos próprios meios, embora com algumas avarias. Os primeiros barcos da campanha de 1949 regressaram no início de Setembro: o “João Costa”, da praça da Figueira da Foz, e o “Rio Lima”, da de Viana do Castelo. O “Coimbra”, de Leixões, arribou no final do mês e os restantes, mais ou menos por estes dias. Mas não o de João Juff…

A 25 de Agosto, o “Diário ide Lisboa” noticiava: “Naufragou na Terra Nova o lugre ‘Navegante II’ mas a tripulação está toda salva”. E de novo a cor da pele de João Juff alcançava honras de nota: “O barco era comandado pelo capitão Juff Tavares Ramos (o único capitão negro da frota de pesca portuguesa), tendo como imediato João Esteves Naia, ambos de Ílhavo, um motorista, um ajudante e mais 32 tripulantes e pescadores”. Do mal o menos, salvou-se toda a tripulação, recolhida por outros barcos da frota, para além de que carga, pescado e haveres dos tripulantes estavam no seguro. O mesmo jornal, no dia seguinte, dava mais pormenores. O “Maria Frederico” e o “Cova da Iria” deram o apoio necessário. Parte da tripulação regressou a Portugal neste e a restante no navio de apoio ou navio-hospital “Gil Eanes”.

Quanto ao nosso capitão, nunca mais o foi… Faria ainda as campanhas de 1950, 1951 e 1952 no “Maria Frederico” (que naufragou após incêndio a 12 de Julho de 1952 em Virgin Rocks, Terra Nova) e as de 1954 e 1955 no “Dom Denis” (que teria idêntico fim bastante mais tarde, em 26 de Agosto de 1966), todas como imediato, cargo honroso mas certamente injusto para um sábio lobo do mar como ele, detentor de enorme experiência. Em 1955, última vez que ouvimos falar deste são-vicentino, teria uns 64 anos de uma vida dura mas aventurosa.

 

Alguns dos navios em que andou João Juff:

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“Delães”

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“Novos Mares”
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“Senhora da Saúde”
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“Maria Frederico”
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“Dom Denis”
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Texto de Joaquim Saial, in “Revista Bordo Livre”, nº 154

Ficha de João Juff gentilmente cedida pelo MMI.

Ílhavo, 7 de Março de 2024.

AML

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