Mostrar mensagens com a etiqueta Novos Mares. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Novos Mares. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 28 de março de 2024

O bota-abaixo do N/Motor "Novos Mares", em 1958

 -

Boas memórias para adoçar o efeito do temporal – o bota-abaixo do n/m “Novos Mares”, no dia 19 de Março de 1958. Já lá vão 66 anos…

Então uma “senhorinha”, com os meus catorze anos, calçara, pela primeira vez, uns sapatos de salto alto. Lembro-me como se fosse hoje! Eram brancos!

Com a mudança de alguns actores, todo o cerimonial se repetiu, relativamente ao do lançamento à água de outros navios: a chegada de autoridades em comboio especial, o almoço no “Salão de Festas do Cine Avenida”, em Aveiro.

- 

Pormenor de alguns convidados
- 

A ementa era personalizada por uma bonita fotografia de Testa & Cunhas e seus navios: “Cruz de Malta”, “Inácio Cunha” e “São Jorge”.

- 

Pormenor da ementa
- 

Terminado o almoço, formou-se um extenso cortejo de automóveis, que se dirigiu aos Estaleiros. Não havia dúvida que era dia de grande festa.

A população ribeirinha de Aveiro e Ílhavo sempre demonstrou especial predilecção pelas cerimónias de bota-abaixo, sentindo-as e compreendendo-as como poucas, não admirando, portanto, que a Gafanha da Nazaré registasse um movimento inusitado.

A nova embarcação era produto do labor esforçado de cerca de 120 operários, durante catorze a quinze meses. Daria trabalho a uma tripulação de oitenta e três homens, que se viam privados do convívio das mulheres e dos filhos, durante seis longos e árduos meses. Foi seu primeiro capitão o Sr. Weber Pereira da Bela, de Ílhavo. A partir de 1961 e até 1974, última viagem de pesca à linha com dóris, seguiu-se o Capitão António Morais Pascoal, também nosso conterrâneo.

Junto à proa do “Novos Mares”, na tribuna habitual para convidados, sucederam-se os acontecimentos usuais: bênção da nova unidade pelo Sr. Bispo auxiliar de Aveiro, D. Domingos da Apresentação Fernandes, discursos, baptismo pela Senhora D. Maria Flor Ferreira Queirós, que já havia sido madrinha do primeiro “Novos Mares” (1938), a quem ofereci um bonito ramo de flores.

- 

A madrinha do navio (à direita)
- 

Continuava a ser uma honraria para a tal “senhorinha”, a querer espigar, de coração latejante, participar em actos tão solenes, assistindo, perplexa e deslumbrada.

-

 

Bênção da nova unidade 
-

Entre os discursos, com o seu feitio acalorado, o do Mestre Manuel Maria Mónica, era sempre emotivo. Ao falar aos colaboradores, armadores e governantes, o seu facies transformava-se de perturbação e envolvimento.

A um sinal de Mestre Mónica, o Sr. Eng. Higino de Queirós cortou o “cabo da bimbarra”, começando o navio a deslizar suavemente. Depois mais rapidamente, as”obras vivas”, como que num choque, mergulham nas águas da ria pela primeira vez.

-

Pormenor, à esquerda, do cabo da bimbarra
-

 O “Novos Mares” penetrou nas águas da ria

-

Com os navios embandeirados em arco, como sempre, nas cerimónias festivas, entre o estalejar de foguetes e os silvos das sirenes dos barcos, o novo navio procura posição, enquanto ocupantes de pequenas embarcações, como habitualmente, recolhem das águas alguns restos de madeira, com que vão atear a fogueira de Inverno, que os aquecerá.

-

Cerimónia sempre impressionante e comovente!
-

Estas doces memórias aquecem o coração, em dia de forte temporal, num dia já primaveril, pelo menos no calendário.

-

Ílhavo, 28 de Março de 2024

-

Ana Maria Lopes

-

sexta-feira, 17 de julho de 2009

João Zagalo, um doryman aguerrido - II



Contou-me uma história, que lhe deixou saudades, passada em Agosto, na Groenlândia, no Novos Mares, com o Capitão Pascoal:
O navio deu a emposta (mudou de sítio) para arriar mais cedo. Deu uma pesquisadela. Disse o Capitão:
– Para fora, não tem nada. Ide para o lado de terra!

«Vamos à vida, com Deus, vamos arriar!» – ordem do Capitão.

E a manobra do arriar começa. Eu, como era chasman (presumivelmente corrupção do inglês lastman), orientei, com outro camarada, a manobra de arriar.
Deduzi que o chasman era o dono do último bote do cimo da pilha, que não se desarmava. Tinha de ser um homem responsável, com jeito, traquejo e muita prática. Havia um chasman em cada pilha, que ajudava a arriar e a içar os botes e era sempre o último a partir para a pesca, depois de ter orientado estas lidas.
Eu, então, depois de botar as mãos no peitilho do avental para as aquecer, já que não trabalhava de luvas, remei de cu p’rà ré e fui p’ra fora, por estar mais desempachado (livre, disponível).
Larguei o trole e quando o grampolim chega ao fundo, comecei a sentir bacalhau na linha do grampolim. Bom sinal!

No meu dóri, era eu o capitão…


Acabei de largar, comi o pequeno-almoço que levava no foquim (peixe frito, pão e azeitonas), deixei passar uma hora e, em cada anzol, um bacalhau. Carreguei até ao bico do bote.

A propósito, recordámos as designações das cargas do dóri, consoante o espaço que o peixe ocupava a bordo:

fundo tapado, peixe a meio balde, peixe a balde, peixe à sarreta de baixo, sarreta tapada, uma popa de peixe, peixe à proa e peixe ao bico.

Fui descarregar e enchi outro bote de bacalhau.
O capitão chamou os botes para irem para mais perto daquele sítio.
Cheguei ao balão do trol, mas à terceira vez, nada. Era peixe a meia água, que passou e não voltou. Assim acontecia tantas vezes!
Este relato mostra a instabilidade, a precariedade e incerteza da vida.

Mas o João Zagalo não o esqueceu.

Dóris à espera de descarregar…


Trabalhou com os capitães João dos Santos Labrincha (Laruncho), de 1947 a 49 e de 1956 a 58, José Simões Bixirão (Ponche), de 1950 a 55 e António Pascoal, de 1959 a 1974.

Recordou alguns camaradas de faina, tal como o Manuel Pinto (n. a 26.1.1923 e já falecido), de Ílhavo, contramestre, também muito bom pescador e trabalhador fiel da casa, para a qual foi fazendo uns trabalhos específicos de marinharia, quase até ao fim dos seus dias.
Falei-lhe no vila-condense de gema, Jaime Pontes (n. a 10.12.1943), de alcunha Pião, de quem devia ter sido companheiro de lide nos anos de 1967 a 69, no Novos Mares, também bom pescador e bom amigo. Recordava-o.
Senti que, longe de aborrecer o João Zagalo, consegui proporcionar-lhe uma tarde agradável, cheia de recordações, duras recordações, mas, para ele, compensadoras.

Fotografias – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 17 de Julho de 2009

Ana Maria Lopes

terça-feira, 14 de julho de 2009

João Zagalo, um doryman aguerrido - I



Na semana passada, marquei um encontro na seca com João Teixeira Filipe, homem de boa têmpera, trabalhador fiel de Testa & Cunhas, durante 59 anos, desde 1943 até 2002.

João Zagalo (alcunha), seu nome de guerra, nasceu na Gafanha da Nazaré, a 28 de Agosto de 1924. Foi no início e crepúsculo da vida, carpinteiro naval, mas, no seu auge, foi um grande pescador do bacalhau, um audacioso, sabedor e afortunado homem do dóri. Tem um certo orgulho nas categorias que teve a bordo e no apreço que capitães, colegas e empresa nutriam por ele.

Recorda o leme e o Novos Mares


Na vida do mar, teve sustos… era inevitável, mas talvez nenhum daqueles que marcam para toda a vida… Concorda com o facto de a pesca à linha ter sido uma profissão árdua, muito dura e perigosa, mas tem saudades do mar, sobretudo do da Groenlândia, pelo muito peixe que lá se pescava e pelo tempo que lá fazia…recorda.

Começou, na adolescência, a aprender a arte de carpinteiro naval nos Estaleiros Mónica.

Numa ocasião, o Cruz de Malta estava em frente à empresa, virado à querena, para levar uma nova roda de proa, pois precisava substituída. O jovem Zagalo veio trabalhar para o navio, ao serviço do estaleiro, mas a vida do mar atraía-o e, assim, mudando para a carpintaria da seca, tinha a possibilidade de vir a embarcar. Ele e o Sr. António Cunha entraram em “acordo de cavalheiros”, como era normal. E o João Zagalo veio trabalhar para a primitiva carpintaria da empresa com o saudoso Zé Vicente.
Mas o apelo do mar era mais forte. E o seu sonho cumpriu-se.

Em 1947, embarcou de moço no Novos Mares, lugre de quatro mastros, a que ele passou a chamar o seu navio; mas, no ano seguinte, já foi de verde (pescador que ia à pesca pela primeira vez), no mesmo navio e pescador maduro, de aí por diante, até 1955.
De 1956 a 58, passou para o n/m São Jorge, que estreou.


De 1959 a 74, embarcou sempre no novo n/m Novos Mares. Aí foi um óptimo pescador e, nos serviços de bordo, como escalador, orientava a escala, tratando também cuidadosamente de todos os derivados: caras, línguas, samos e lombos.
Durante as viagens, no caso do Novos Mares, fazia quarto com o Capitão.

De moço, passou a verde e de verde a pescador especial (aquele cuja pesca ultrapassa os 200 quintais), estando sempre na categoria dos melhores pescadores do navio.

Depois da difícil viagem de 1974 e das greves de então, estava na altura de ficar em terra e aí, pela década de 90, muito contactei com ele, enquanto ia fazendo uns biscates na carpintaria, até 2002, ano em que se aposentou.

Em conversa, recordou alguns episódios de bordo.

– Sabe, menina (ainda me trata assim, imaginem), a melhor viagem que fiz foi no São Jorge (ali pelo ano 57) e foi mesmo a melhor do navio e a mais curta. Largámos a 31 de Agosto, viemos directos da Groenlândia e ainda fomos à feira de S. Mateus, em Setembro, em Viseu.
Era um bom navio. Dormia no beliche, à ré, e não fazia nenhuma “ringedeira”
(barulho que os navios de madeira quase sempre faziam).

(Cont.)

Ílhavo, 14 de Julho de 2009

Ana Maria Lopes

sexta-feira, 3 de abril de 2009

As "viagens " do Avô Pisco - II



1921 a 1926 – Mudou para os navios da Praça de Aveiro, começando por comandar o lugre Silvina.

Lugre Silvina, frente à seca


O Silvina, lugre com motor, de madeira, foi construído em 1919 por Manuel Maria Bolais Mónica para a Empresa de Navegação e Exploração de Pesca, Lda., de Aveiro. Em 1928 passa a ser propriedade de Testa & Cunhas, Lda. Naufraga, devido a incêndio, em 1941, no Grande Banco da Terra Nova.

1927 – Foi capitão do lugre Laura, porventura, capitão orientador (?) e vigilante da reconstrução a que o navio foi submetido nesse ano, passando a ser em 1928, o Cruz de Malta.

Entre Laura e Cruz de Malta – 1927

1928 a 1937 – Capitaneou o Cruz de Malta.

A este lugre, dediquei um extenso post, neste blog.

O Cruz de Malta, em tempo de guerra…


1938 a 1942 (inclusive) - Fez a viagem inaugural no lugre de quatro mastros Novos Mares, sobre o qual já escrevi o post, O “velhinho” Novos Mares.

O Novos Mares a entrar em Leixões – Fotomar


Por informação do Jornal de Notícias de 8.12.1938, tive conhecimento de que o Novos Mares, no dia anterior, ao entrar a nossa barra e ao passar a restinga, encalhou, pelo que os restantes cinco navios, que aguardavam fora do porto, ficaram para o dia seguinte. Este encalhe, felizmente sem consequências, foi originado pelo lamentável estado da barra, agudizado pela não existência de motor, a bordo. Na campanha de 39, embora um pouco mais tardiamente, o Novos Mares já partiu, com o novo equipamento, indispensável.

E aí, depois de muitas procelas, maus bocados, aflições, preocupações, angústias, saudades da família, próprias deste tipo de vida rude e dura, ficou em terra, depois de trinta e quatro anos de mar, apto a, em 1943, iniciar as suas funções de Avô. Adorava-me, “estragava-me” com mimos, levava-me com frequência à chegada das redes, nas companhas da Costa-Nova e, amiúde, no quadro da bicicleta, à seca, na Gafanha da Nazaré. Bonacheirão, bondoso, humano e afável, empreendedor e trabalhador, entregou-se, após as fainas do mar, às visitas sistemáticas à firma Testa & Cunhas de que fora sócio-fundador, em 16 de Dezembro de 1927. As lides agrícolas ali, no quintal do Curtido de Baixo, ocupavam-lhe o resto do tempo. Deixou marcas profundas na minha existência e, ainda hoje, guardo, com carinho, alguns dos instrumentos náuticos de seu uso pessoal.
Foi curiosa a diversidade de navios em que ele embarcou. Daí, não ter sido fácil, mas atractivo e apelativo, articular as informações.

Fotografias – Arquivo pessoal da autora, com a colaboração de vários Amigos


Ílhavo, 3 de Abril de 2009

Ana Maria Lopes

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Triste fim, o do Novos Mares...




O berço de um barco é a carreira do estaleiro e a sepultura mais digna é o fundo do mar, a que ele pertence. Sem perda de vidas, entenda-se…

Ora o Novos Mares, em 1974, depois de ter passado o 25 de Abril ancorado no Tejo, ainda seguiu para a Terra Nova, ano difícil para a campanha do bacalhau. Regressou em fins de Julho por ordem da Secretaria de Estado das Pescas, uma vez que se haviam malogrado todas as tentativas de conciliação com os tripulantes, que reivindicavam melhores remunerações e outros benefícios.
Tornara-se um navio-histórico, pois fora o último barco da chamada Frota Branca a navegar no estreito de Narrows, com os seus dóris cautelosamente alinhados no convés (in Disasters & Shipwrecks of Newfoudland and Labrador, Vol. 3, de J. P. Andrieux, pp.121 e 122).


Dóris empilhados no convés



Já em viagem para Portugal, a cerca de 150 milhas de St. John’s, socorreu o São Jorge, com incêndio declarado a bordo, tendo recolhido toda a tripulação. Por excesso de peso, voltou a S. John’s, para a deixar, fazendo-se, de novo, rumo ao seu país.
Foi ainda, depois disso, transformado em navio com redes de emalhar com lanchas.

Passados uns três anos, o caminho errante do Novos Mares começara…


Mais parece um navio-fantasma…



Em 1977, foi adquirido pela Cooperativa de Produção Ria de Aveiro, tendo sido vendido em praça, em 1980, à Sociedade de Pesca Alavarium; mais tarde, passou para a propriedade de Brites, Vaz e Irmãos. Em 1986, por despacho da Secretaria de Estado das Pescas, foi excluído da frota pesqueira.
Em Janeiro de 1991, a empresa proprietária ofereceu o Novos Mares à Secretaria de Estado das Pescas, para fins museológicos. A localização do “navio transformado em museu” foi uma guerra incessante entre diversas personalidades, sem que nunca a S.E.P. tivesse posto o preto no branco.
Após alguns impasses e decisões definitivas não tomadas, o navio assentou no fundo da ria, em Fevereiro e, de novo, em Dezembro de 1992.


O navio semi-afundado



Foi-se degradando, recaindo os custos da reparação em cima da empresa doadora.
Um rombo no casco foi a última machadada na “bonita atitude do doador”: o Novos Mares ia ser desmantelado. Já lá ia uma indefinição de quase três anos.


O desmantelamento. 10.2.1994



Embora a viabilidade da musealização não fosse muito exequível e o tipo de navio não o justificasse plenamente, é sempre desagradável e degradante assistir a um espectáculo destes. Num bonito e solarengo dia de Inverno, lá fomos, o Francisco e eu, apreciar o bom estado de conservação das madeiras.

Durante o desmantelamento. Fevereiro de 1994



Perante o bom estado da madeira, achámos oportuno, com a colaboração da Associação dos Amigos do Museu, recolher alguns pedaços do casco desse navio, pois, à data, já era o último da valente estirpe dos construídos em madeira em estaleiros portugueses, com as dimensões que se atingiram nos Estaleiros Mónica.
Com pena de, até à data, não termos conseguido, por razões de vária ordem, levar a bom termo a ideia inicial, e tendo estes destroços, quer os que estão junto ao esteiro da Malhada, quer os do Largo fronteiro ao Museu, um aspecto pouco digno, perguntámos a opinião ao Amigo Marques da Silva, expert nestes assuntos de reconstrução e preservação, que nos disse:


O nosso Amigo Francisco Marques e outros colaboradores conseguiram deslocar, com enorme esforço e dedicação, esses pedaços do casco do Novos Mares até Ílhavo. Estou certo que quem tanto trabalhou e lutou para que essas belas peças, únicas no mundo de hoje, chegassem até cá, foi, certamente, com grande desgosto que nos deixou, vendo-as abandonadas como ainda se encontram, à espera que o tempo as consuma.



Pedaços do casco do Novos Mares. 2008



Mas ainda tenho esperança de que com os meus lamentos possa comover quem, de direito, volte a reparar nelas, arranjando-lhe um lugar adequado, onde seja possível ver e apreciar tão belo trabalho. Era, ao menos urgente, que fossem levantadas do chão para arejarem e se lhes mandasse dar cuprinol e carbonil, como sempre receberam, no estaleiro, para sua conservação.
Tenhamos esperança!

Algumas novidades! O guincho do Novos Mares, após ter sido restaurado, já foi reutilizado no Santa Maria Manuela.
Parece também que há boas notícias, por parte da Direcção do Museu, ainda não confirmadas. Aguardemos.


Fotografias – Arquivo pessoal da autora, do Comandante A. São Marcos e de Carlos Duarte

Ílhavo, 5 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes



sábado, 1 de novembro de 2008

Entrada do N/M Novos Mares - Campanha de 1964


A entrada do n/m Novos Mares, em 1964, para mim, teve um sabor especial.
Desde que me lembro, sempre fui assistindo à entrada dos navios de bacalhau, pelo menos, os pertencentes a Testa & Cunhas, com toda a carga emotiva que acarreta.

Na Meia-laranja, as mulheres, saudosas, ansiosas e adornadas nos seus mais domingueiros trajares, bem arreadas de ouro, esperavam os seus homens, que, na proa do navio, acenavam, igualmente comovidos, e ansiosos por calcar terra firme e por abraçá-las a elas e aos filhos, que, por vezes, ainda nem conheciam. Haviam nascido na sua ausência! Que longos seis meses!

Nesse ano, decidi passar para o lado de lá e ter uma perspectiva diferente da entrada de um navio.

Numa manhã setembrina, de ria calma e envolta numa doce neblina, embarquei no Cais dos Bacalhoeiros na lanchita da Empresa, conduzida por um fiel servidor da casa, o Zé Vicente.

Propunha-me fazer um documentário, filmado, em 8 mm (era o que se usava, então), com a minha maneirinha Bell & Howell.

Tem tudo menos grande qualidade, mas fez já 44 anos e foi filmado com grande ternura e curiosidade. Desculpem, pois, as imperfeições e apreciem os aspectos positivos. Além de não ser “profissional”, ainda tive o azar de ter de fazer a inversão obrigatória do filme, exactamente, no momento em que o Novos Mares se aproximava e nos ultrapassou. Mesmo assim, valeu a pena.

Na viagem para a boca da Barra, passaram, por nós, traineiras, pujantes mercantéis à vela, graciosos e esbeltos moliceiros, quer à vela, quer à vara, a abarrotar com elevadas marés de moliço, bateiras berbigoeiras, para não falar de dragas e navios de carga, que não me despertam tanto a atenção.

O nevoeiro lá fora, adensava, mas, por bombordo, avistava-se, altaneiro, o nosso Farol riscado de vermelho e branco.

Pela frente, o navio, imundo, bem surrado e bem pesado (tinha sido um dos melhores anos de pesca), saúdou a população no seu silvo roufenho e profundo! Já entrou a barra e dirige-se a S. Jacinto. Eis que se lê, à popa: NOVOS MARES – AVEIRO.

Saltei para bordo.

Não tinha olhos para tanto movimento e estrafego!

Os pescadores, já bem lavados, barbeados e aperaltados, aguardavam, pelo convés, que era exíguo, para tanta tralha: sacos de lona das suas roupas, uma golpelha ou goropelha algarvia, barricas que levaram 30 litros de vinho e traziam caras, samos e línguas (a caldeirada dos pescadores), bidões de óleo, gasóleo e óleo de fígado de bacalhau (brrrr!), sessenta e seis dóris atulhados de panas, bancos, ferros, remos, forquetas, etc., distribuídos por dez pilhas, para sessenta e quatro pescadores.

Entrou para bordo o encarregado da Alfândega, que marcava os sacos, um a um, a giz vermelho.

De S. Jacinto, em bateiras, chegavam famílias de pescadores, de lá naturais, para aquele forte abraço entre marido e mulher e entre pais e filhos!
O imediato, à época, Tibério Paradela, junto da escada de portaló dava andamento às diligências necessárias.
Por estibordo do navio, atracaram dois possantes mercantéis, para onde eram arriados, por um sistema de teques, os sacos já inspeccionados. Pertenciam aos pescadores que moravam em localidades cujo acesso era fácil através da ria: Murtosa, Gafanha da Encarnação, Costa-Nova, Vagueira e outras.
O Capitão, António Morais Pascoal, pomposamente fardado, localizado na asa da ponte, controlava todo o movimento do convés, assim como supervisionava manobras e alcançava o horizonte com amplitude.
Chegada a hora conveniente da maré, o rebocador procurou posição e passou ao navio o cabo de reboque.
Começara, para mim, a grande viagem de S. Jacinto até à Gafanha da Nazaré!

Avistam-se as instalações da seca, já parcialmente remodeladas.

Homens, em botes, auxiliam, a atracação do navio, à proa e à popa.
Entretanto, o guarda-livros e auxiliar entram para bordo, para procederem ao pagamento dos salários, de acordo com a informação de pescado previamente fornecida pelo capitão.
No cais, as famílias, que, entretanto se deslocaram da Barra para a Gafanha, esperavam com ansiedade, os seus entes queridos. Ei-los que começam a sair, bem preparados, aos poucos, em botes, normalmente com duas lembranças, uma em cada mão, quase sempre do mesmo género: um Cristo luzente e cintilante para a parede do quarto e uma boneca, bem vistosa, para a sua menina, de quem tinham tantas saudades!


Agradeço ao amigo Tibério Paradela que, gentilmente, me tirou algumas dúvidas, bem como ao Sr. Capitão Pascoal que, com os seus 85 anos, me foi explicando, pacientemente, ao visionar o filme, a sequência das acções. Também consegui proporcionar-lhe uns agradáveis momentos, já que não sabia da existência de tão modesto documentário!

Saboreiem-no, pois, que vale a pena, apesar de alguns evidentes defeitos!


E assim terminou a campanha de 1964 do n/m Novos Mares, com um dos melhores carregamentos!


Filme – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 1 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Bota-abaixo do N/M Novos Mares





Passados vinte dias, já que outros assuntos oportunos surgiram..., vamos retomar o Novos Mares.
A 19 de Março de 1958, tive pois oportunidade de reviver toda a minha emoção de madrinha, com o bota-abaixo do N/M Novos Mares, agora já uma “senhorinha”. Com os meus catorze anos, calçara, pela primeira vez, uns sapatos de saltinho alto. Lembro-me tão bem! Eram brancos!

Relembrar, neste blog, o bota-abaixo do São Jorge:



Com a mudança de alguns actores, todo o cerimonial se repetiu, relativamente ao do lançamento à água do São Jorge: a chegada de autoridades em comboio especial, o almoço no Galo d’ Ouro, em Aveiro.

Pormenor de alguns convidados

A ementa era personalizada por uma bonita fotografia de Testa & Cunhas e seus navios: Cruz de Malta, Inácio Cunha e São Jorge.


Pormenor da ementa



Terminado o almoço, formou-se um extenso cortejo de automóveis, que se dirigiu aos Estaleiros. Não havia dúvida que era dia de grande festa.

A população ribeirinha de Aveiro e Ílhavo sempre demonstrou especial predilecção pelas cerimónias de bota-abaixo, sentindo-as e compreendendo-as como poucas, não admirando, portanto, que a Gafanha da Nazaré registasse um movimento extraordinário.

A nova embarcação era produto do labor esforçado de cerca de 120 operários, durante catorze a quinze meses. Daria trabalho a uma tripulação de oitenta e três homens, que se viam privados do convívio das mulheres e dos filhos, durante seis longos e árduos meses. Foi seu primeiro capitão o Sr. Weber Pereira da Bela. A partir de 1961 e até 1974, última viagem de pesca à linha com dóris, seguiu-se o Capitão António Morais Pascoal.

Junto à proa do Novos Mares, na tribuna habitual para convidados, sucederam-se os acontecimentos usuais: bênção da nova unidade pelo Sr. Bispo auxiliar de Aveiro, D. Domingos da Apresentação Fernandes, discursos, baptismo pela Senhora D. Maria Flor Ferreira Queirós, que já havia sido madrinha do primeiro Novos Mares (1938), a quem ofereci um bonito ramo de flores. Continuava a ser uma honraria para a tal “senhorinha”, a querer espigar, participar em actos tão solenes, assistindo, perplexa e deslumbrada.

Bênção da nova unidade



Entre os discursos, com o seu feitio acalorado, o do Mestre Manuel Maria Mónica, era sempre emotivo. Ao falar aos colaboradores, armadores e governantes, o seu facies transformava-se de perturbação e envolvimento.


A um sinal de Mestre Mónica, o Sr. Eng. Higino de Queirós cortou o cabo da bimbarra, começando o navio a deslizar suavemente. Depois mais rapidamente, as obras vivas, como que num choque, mergulham nas águas da ria pela primeira vez.

Pormenor, à esquerda, do cabo da bimbarra


O Novos Mares penetrou nas águas da ria



Com os navios embandeirados em arco, como sempre, nas cerimónias festivas, entre o estalejar de foguetes e os silvos das sirenes dos barcos, o novo navio procura posição, enquanto ocupantes de pequenas embarcações, como habitualmente, recolhem das águas alguns restos de madeira, com que vão atear a fogueira de Inverno, que os aquecerá, nos dias mais frios.

Cerimónia sempre impressionante e comovente!


(Cont.)

Fotografias – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 29 de Outubro de 2008

Ana Maria Lopes

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O "velhinho" Novos Mares





É minha intenção falar do bota-abaixo do navio-motor Novos Mares, não sem antes “dar” umas palavrinhas sobre o Novos Mares que o antecedeu.

O velho lugre-motor, de madeira, de quatro mastros, Novos Mares, fora construído no ano de 1938 por Manuel Maria Bolais Mónica, nos seus Estaleiros na Gafanha da Nazaré para a Empresa Testa & Cunhas, Lda., que desde 1927, se dedicou à faina do bacalhau.


O Novos Mares, na carreira, em vésperas de bota-abaixo


O Novos Mares era um navio de quatro mastros, de formas muito finas e elegantes. Embora mais tarde com motor-auxiliar, os seus capitães consideravam-no muito bom de vela.

Pormenor do convés – 1938



Caso curioso o facto de ter sido o meu Avô Pisco (Manuel Simões da Barbeira) a estreá-lo, tendo feito uma viagem, pelo menos, nesse mesmo ano, à Terra Nova e Groenlândia, só à vela. Que perigos esforçados não representaria uma viagem só à vela, naqueles tempos? Os riscos, as tempestades, os ciclones, os gelos, a falta de mantimentos, as notícias que não se recebiam… O velho Gil Eanes começara só a dar apoio à frota em 1937, interrompendo-o em 1941… Em 1942, o meu Avô deixou definitivamente a pesca do bacalhau. Ainda bem; quando eu nasci, já ele se pôde dedicar a mim, quase em exclusivo.


O Novos Mares, acostado junto à Empresa, faz prova de pano – 1938


O Novos Mares, na Groenlândia, com mar de senhoras…



Serviço da escala, a bordo do Novos Mares, durante a viagem de 1938



Depois de 18 anos sofridos de mar, naufragou com incêndio a bordo, sob o comando de João Fernandes Matias, em 21 de Julho de 1956, no Virgin Rocks, tendo sido salva a tripulação pelo lugre Maria das Flores.

Resolveu então o seu armador construir um novo Novos Mares, no mesmo estaleiro, mas já com formas diferentes, seguindo os moldes da época, de acordo com a política que há cerca de 30 anos vinha operando no país.

Era este navio de construção mista, pois embora a madeira fosse básica (na sua construção), aplicada no forte casco na qualidade e forma tradicionais, era reforçado com uma sobrequilha metálica. Tinha fortes sicordas longitudinais e anteparas transversais, também em chapa de ferro.

No convés, tinha igualmente instaladas amplas casarias metálicas para alojamento dos oficiais e espaçosa casa de navegação. Como já não usava velas, os motores instalados eram de potência suficiente para lhe garantir uma boa marcha.

(Cont.)

Fotografias – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 9 de Outubro de 2008

Ana Maria Lopes