sábado, 6 de fevereiro de 2021

João da Cruz Senos (Carriça)

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                O cozinheiro João Senos (Carriça)

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João da Cruz Senos, de alcunha Carriça, mais um homem de bordo ilhavense, filho de Joaquim André Senos (marinheiro falecido no afundamento do “Santa Irene”) e de Maria da Cruz Gomes, nasceu em 21 de Abril de 1921, em São Salvador, Ílhavo.

Morava na Rua João de Deus, mais conhecida por Espinheiro, para onde dá um dos lados da minha casa.

Casou em 24 de Novembro de 1946 com Maria Marques da Silva, costureira, de cuja união nasceram os filhos João José Senos e Benilde Senos.

Era portador da cédula marítima nº23 115, passada pela Capitania do porto de Aveiro, em 16 de Dezembro de 1940. a bordo,

Desde que há documentos credíveis, João Senos, nas safras de 1942 43, foi moço – difícil tarefa – pau para toda a obra, no lugre-motor de madeira “San Jacinto”, ex- “Encarnação”, construído em Pardilhó, em 1919. Depois de passar pela Empresa de Pesca de Aveiro (EPA), em 1936, passou a ser propriedade da Empresa de Pesca de São Jacinto Lda.

Tendo dado provas de boa vontade e de cumprimento das suas tarefas, o moço João Senos, nas campanhas de 1944 e 45, no mesmo navio, passou a ajudante de cozinheiro, tendo lidado, durante estes quatro anos, com o capitão ilhavense António dos Santos Carrancho.

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O lugre “San Jacinto”

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Tendo deixado “a linha”, definitivamente, passou para o arrastão clássico “Santa Joana”, como ajudante de cozinheiro, nas campanhas de 1946 a 1948, num total de cinco viagens, com os capitães Francisco dos Santos Calão e José Pereira da Bela.

E o tempo de cozinheiro chegou.

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Na cozinha do “Santa Mafalda”, pelos anos 50/60

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Era cargo de grande responsabilidade.

Do cozinheiro e seu ajudante, dependia todo o “combustível” da tripulação, trabalho nada fácil, exaustivo, preocupante, mas rotineiro. E Ílhavo também fora pródigo em fornecer bons cozinheiros para a pesca.

A principal peça da cozinha, incluída «no rancho» era o grandioso fogão, ladeado de pequenas tulhas com os mantimentos que o cozinheiro mais usava: feijão branco e encarnado, grão, arroz e açúcar. As grandes bailas, tachos, panelas, tabuleiros, passe-vites, cafeteiras, penduradas nos vaus. Espaço acanhado…, mas, asseado, limpo, escufenado e arrumado.

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A apanhar a brisa, no "Santa Mafalda"

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Rente à saída para os grandes bancos, vinha a fragata dos mantimentos. Avisado o cozinheiro, ele conferia-os com ajuda de outros companheiros – tudo com peso e medida!

No dia seguinte, chegava o bote com caixas de peixe: pescada, chicharro, pargo-mulato, peixe-espada, corvina… Vinha logo o cozinheiro – vida difícil a deste homem –, estripá-lo com a ajuda da sua mulher (se ela podia ir uns dias para bordo), da do contramestre e de um ou outro marinheiro. Salgava-se no porão, ao lado do encerado com as alfaces, favas, ervilhas, cenouras, para os primeiros dias de viagem. Mais perto da saída, vinha a fragata da água – o cozinheiro que começasse logo a tenteá-la– era-lhe   recomendado.

Na segunda viagem do arrastão lateral “Santa Mafalda”, em 1948, estreara-se como cozinheiro, e por aí ficara até 1965 – no total, cerca de uma trintena de viagens.

Conhecera os capitães, seus patrícios, António Trindade da Silva Paião, José de Oliveira Rocha e António Trindade Grilo Paião. Dera-se bem – conclui-se.


O ano de 1966 tinha sido fatídico para o arrastão “Santa Mafalda e sua tripulação.

À saída da barra de Lisboa, no dia 21 de Janeiro (fez 55 anos, há dias), pelas 11 h e 40, em frente a S. Julião da Barra, numa zona da barra onde o mar obrigava às maiores cautelas, pela sua estreiteza, e por ser semeada de rochedos e bancos de areia, ocorreu o naufrágio do “Santa Mafalda”, sob o comando de Asdrúbal José Sacramento Capote Teiga, cujas consequências, entretanto, felizmente, não foram além dos elevados prejuízos materiais.

Esse dia, lá em casatestemunhava o filho – tinha sido um dia de horrores. O meu pai era cozinheiro e o tripulante mais antigo. Tinha ido buscá-lo a Itália, em 1948. Foram 18 anos de tristezas e alegrias!... Estava para ser a última viagem que faria no arrastão.

O “Santa Mafalda” passava em frente de S. Julião, navegando a velocidade reduzida. Batido por rajadas de vento violento, sofreu uma avaria de leme, cujo sistema eléctrico levou o navio trancado a estibordo.

O navio sem governo permaneceu à deriva, ao sabor do vento.

Foi através de uma lancha de Pilotos que os náufragos foram recolhidos, após se ter conseguido estabelecer um género de cabo de vaivém, que se posicionou a barlavento, e muito próximo do “Santa Mafalda”. E nestas andanças, que não teriam sido fáceis, apesar da proximidade de terra, se salvou-se a tripulação do arrastão.

O mar, após dez dias de fúria violenta, partiu em duas partes o arrastão Santa Mafalda, e por ali acabara por ser desmantelado.

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Santa Mafalda encalhado. Do blogue “Navios à vista”

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E, em viagens normais, o pão de bordo? Ah! Ah! De boa farinha de trigo americana, amassado em água salgada, estava sempre em tabuleiros sobre a mesa. Se era igual e creio que sim, àquele que nos mandavam a casa, ainda quentinho, sempre que entrava algum navio da empresa: – Era de comer e chorar por mais!

Segundo informações do filho, depois deste acidente no “Santa Mafalda”, deixou o bacalhau, mas ainda andou uns aninhos no comércio, no navio/motor “Alcobaça”, conhecido por “barco das bananas” em viagens para a Madeira, entre outros.

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N/M “Alcobaça”

 

Mais tarde, já reformado, ali na ponte Juncal Ancho, teve um acidente, que esteve na origem do seu falecimento.

Não à laia de elogio fúnebre, era mesmo um homem bom que emanava calma e tranquilidade infinitas.

Tendo feito três viagens com o amigo João Manuel Peixoto, entre 1964 e 65, este testemunhou que era um bom profissional, simpático e de fácil trato. A sua boca também acusava a falta de uns bons pitéus, que cozinhava a bordo. Fazia uns bolinhos de bacalhau que “faziam crescer água na boca”.

Deixou-nos, em 17 de Abril, com 65 anos.


Fotos cedidas pelo filho João José Senos

Ílhavo, 06 de Fevereiro de 2021

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Ana Maria Lopes
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2 comentários:

André Oliveira disse...

D. Ana Maria Marques quero agradecer ter escrito este artigo, pois trata do meu bisavô (que, segundo a minha mãe, herdei o nome de André) e do meu avô, o João "Carriça".
O primeiro, claro, não cheguei a conhecer, mas com o segundo convivi cerca de 13 anos... foram poucos, mas muito me ensinou e educou. Era uma alegria quando nos ia buscar, ao primo e a mim, ao Centro Paroquial para depois irmos brincar para o parque infantil.
Um dia gostaria ser como ele.
Muito obrigado.
André Miguel Senos de Oliveira

André Oliveira disse...

D. Ana Maria Marques, quero agradecer o artigo sobre o meu bisavô (do qual, segundo a minha mãe, herdei o nome André) e o artigo sobre o meu avô: o João "Carriça".
Apenas convivi 13 anos com o meu avô, mas muito de educou e ensinou. Era uma alegria quando nos ia buscar, ao meu primo e mim, ao Centro Paroquial e depois ainda nos levava para o parque infantil...
Recordo-o com muita saudade... e se fosse possível, gostaria de ser como o "Carriça".
Muito obrigado.
André Miguel Senos de Oliveira.