sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O MMI prepara-se para albergar a «nossa ílhava»

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A ílhava, «para mim», só tem uma história mais ou menos consistente, há cerca de 30 anos. Bateira identitária dos ílhavos, foi a mais polivalente das embarcações da região lagunar – na ria, usada, para a apanha do moliço e para carreto; no mar, desde a rede do chinchorro, na quebra da vaga à arte da tarrafa, em águas do Tejo, na baia de Cascais. É enigmática e senti necessidade de sistematizar o que fui aprendendo sobre ela. Não descobri nada. Atenção! Li, observei, pensei e vou tentar pormenorizar coincidências. O processo da ílhava tem tido vários intervenientes, que se foram sucedendo no tempo.
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Sabia desde os meus vinte e tal anos que tinha havido uma bateira ílhava, mas como não havia deixado rasto que me despertasse a curiosidade, esse conhecimento permaneceu em letargia.
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A consulta frequente, pelos anos 60, do brilhante livro de Baldaque da Silva, Estado Actual das Pescas em Portugal, de 1891, não me despertou muito a curiosidade. Os elementos que, na altura, o autor forneceu, não me chamaram ao assunto. Baldaque fez algumas referências a esta embarcação e às tarrafas usadas pelos pescadores ílhavos na enseada de Entre Cabos da Roca e Espichel, em barcos denominados ílhavos. Inclusivamente com uma gravura (p. 403) e com uma descrição não muito vigorosa, relata que são barcos de fundo chato, de proa e popa terminadas em bico recurvado, mastro e leme de xarolo, construídos nas margens da ria de Aveiro, também usados na apanha da vegetação que ali denominam moliço.
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Barco ílhavo, em Baldaque da Silva (gravura)
 
Embarcação, muito possivelmente, já usada pelos ílhavos nos séculos XVIII e XIX para a pesca da sardinha com a arte da tarrafa, em faina no Tejo – conclui-se.
Embora a mesma fotografia (aqui já fotografia), tivesse sido usada por Rocha Madahil in Alguns Aspectos do Traje Popular na Beira Litoral e pelo padre João V. Rezende na sua Monografia da Gafanha (1944), os autores não dão nenhum realce à embarcação, mas sim aos trajes dos pescadores que a usaram, sobretudo ao gabão, barrete, calça, camisa axadrezada e faixa.
 

E, à época, mais ninguém despertara para a ílhava, que eu tivesse tido conhecimento.
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Eis senão quando D. Manuel de Castello Branco, in Embarcações e Artes de Pesca, livro publicado pela Lisnave, em 1981, fala destas embarcações oriundas do litoral de Aveiro, em que os ílhavos se deslocavam durante o Outono e parte do Inverno, temporariamente, para as águas de Cascais, atraídos por melhores condições de trabalho, preços, mercados e mar mais calmo.
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Castello Branco faz uma descrição muito minuciosa da ílhava: as características principais, a construção, as dimensões e tonelagem, a cor, o leme, o velame, os aprestos e acessórios, meios de propulsão (remos e vela), tripulação, actividade, artes de pesca (tarrafa) e porto de armamento. Era sem dúvida a «nossa ílhava» (imagem seguinte).



Luiz de Magalhães, in Barcos da Ria de Aveiro, 1905-1908, fez-lhe uma referência muito fugaz, que, de certa maneira, me confundiu. O próprio Museu de Ílhavo, criado oficialmente em 1937, não tinha no seu conjunto de miniaturas à escala, feitas habilmente por Porfírio Maia Romão em 1934, uma verdadeira ílhava.
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Há pormenores curiosos que me vão engrossando o interesse pela bateira ílhava.
Como nunca deixei de fazer recortes de jornais, de assuntos marítimos relativos ao mar e à ria, ao organizá-los, há cerca de três anos, veio-me à mão um, do Diário de Aveiro de 6 de Junho de 1999, em que a SIMRIA e o Clube de Vela da Costa Nova tinham assinado um protocolo em que uma das suas intenções era trazer de volta a ria antiga. Outro objectivo seria apoiar o projecto de recuperação da ílhava, embarcação que andou na ria de Aveiro, que deu origem a todas as outras, referiu Senos da Fonseca, acrescentando que «o próprio moliceiro é fruto de uma evolução natural da ílhava».
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DA de 6 de Junho de 1999

Achei que essa predilecção pela ílhava já era uma vocação mais antiga de Senos da Fonseca, tanto mais que um tempito antes (meados dos anos 90) tinha aparecido no Museu, para trocar umas impressões com a directora de então, sobre a bateira ílhava, munido de uns projectos da embarcação, em computador. Eu não sabia muito mais e confesso que os computadores, nessa altura, me intimidavam um pouco.
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Revelou-me mais tarde que devido a maleitas de que as informáticas às vezes padecem, perdera, com pena, os referidos projectos. Talvez a razão por que ainda hoje não tivéssemos tido uma bateira ílhava em tamanho real.
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Entretanto, tive conhecimento que na Colecção Seixas do Museu de Marinha existia uma miniatura à escala 1/25, em exibição, de um barco ílhavo.
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Também me apercebi de que o precioso Catálogo Seixas (publicado em 1988, pelo MM), abundante em fartas e seguras informações, nos apresenta, uma fotografia de um barco ilho, assim o apelida, a navegar na ria de Aveiro.
 
Barco ilho navega na ria de Aveiro… (Foto cedida pelo Museu de Marinha. Colecção Seixas)

 
E mais umas tantas preciosas imagens da bateira ílhava, na pesca da tarrafa, na baía de Cascais e imediações.
Entre os Amigos do Museu havia uma vontade não divulgada, mas intrínseca, de que o Museu viesse a ter uma bateira ílhava, mas tal desejo também nunca se cumpriu. Era capaz de ser um bocadinho arriscado, em vários domínios, assumir a sua construção.
E o tempo foi passando…
Com a mudança de século e já em Junho de 2007, SF., após uma pesquisa aturada e entusiasta, lançou o Ílhavo – Ensaio Monográfico do Século X ao Século XX, em que informa, a propósito da ílhava que, com base nas informações de Castello Branco, encomendara a Manuel Rufo, de Pardilhó, um modelo à escala de 1/27.
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Conclui (pp. 225 e 226) que havendo referências deste barco ter sido utilizado na apanha de moliço, não será estulto admitir ter sido a ílhava a precursora do barco moliceiro, tantas similitudes são patentes na forma e no conceito das duas embarcações…
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Nesse mesmo ano de 2007, o MMI exibira a exposição A Diáspora dos Ílhavos, no seu 70º Aniversário, de 8 de Agosto a 31 de Outubro, em que um modelo da bateira ílhava executado pelo hábil Marques da Silva fora vedeta. O plano, à escala 1/25, do Museu de Marinha, pertence ao desenhador e modelista, Luís António Marques, investigador da equipa H. M. Seixas, entre 1926 e 1948.

Modelo de barco ílhavo, em exibição, no MM

 
E com a força do Verão de 2011, o livro Embarcações que Tiveram Berço na Laguna, de Senos da Fonseca foi dado à estampa pela Papiro Editora. O autor revelou mais pormenores sobre a embarcação e teceu as suas considerações, algo discutíveis, mas admissíveis, pela sua viabilidade.
Já agora, seria realizável, hoje em dia, com os associados da AMI, em causa, e os meios de que dispomos (ou não dispomos) levar a efeito a recriação de uma ílhava em tamanho real? – pergunta-se. A nossa embarcação identitária? E para abicar onde? Não numa rotunda…exposta às intempéries. Na água, não duraria muito tempo – é sabido. O nosso museu, concordemos, à parte algumas limitações, temos consciência, seria mesmo o local de eleição.
Fica o desafio….
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Ílhavo, 20 de Outubro de 2011
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PS. Este blogue está em banho-maria desde o inverno de 2010. Parece-me o momento oportuno de ele vir a lume.

Como nas novelas…dois anos mais tarde…

A ílhava é um desejo concretizado. Chegou, no passado dia 30, ao Museu Marítimo de Ílhavo, graças ao saber e empenhamento de uma comissão da AMI, com a participação entusiasta e sabedora do construtor António Esteves, de Pardilhó, de Marco Silva (que se encarregou da vela) com cobertura fotográfica completa de Etelvina Almeida. No Verão passado, já com a ílhava em construção, Paulo Horta Carinha, reconhecendo o meu interesse pelo assunto, teve a gentileza de me oferecer um postal antigo de Aveiro, de que é grande coleccionador. Mostra nada mais nada menos que uma ílhava, já de menor dimensão, junto às Pirâmides, numa fase de vida já mais tardia, eventualmente pelo segundo ou terceiro decénio do século XX.
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A ílhava vai ser apresentada aos ílhavos, a 11 de Janeiro 2014, como nossa embarcação identitária, que levou muitos conterrâneos de antanho, por essa borda fora, que se transformaram em colónias mais ou menos fechadas de pescadores oriundos da zona, dando até origem a várias localidades litorâneas. Rogamos aos ilhavenses que estejam presentes.

Ria de Aveiro, junto às Pirâmides
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Imagens – Do arquivo pessoal da autora do blogue (livros, postais e jornal)
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Ílhavo, 3 de Janeiro de 2014
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Ana Maria Lopes
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2 comentários:

Anónimo disse...

Concordo em grande parte com aquilo que refere mas discordo: Da ideia de se referir uma data inicial para o surgimento da embarcação em causa... Ela faz parte de uma sequencia canoas de tabuas usadas pelos nossos antepassados ao longo de muitos séculos...
Acho que todas as outras embarcações/barcas da Ria tb foram evoluindo até aos nossos dias sem que umas fossem filhas das outras e todas elas tinham por base o principio da NECESSIDADE...
Os Ilhavos navegavam e pescavam nas suas embarcações mas geralmente tinham-nas estacionadas nos locais de pesca e seguiam a pé por um caminho existente junto à costa de então e em Peniche divergiam para os vários locais onde já tinham os meios... Por tradição as mulheres e filhos levavam-nos ao Caminho de Aveiro e eles lá iam... Dizem que as mulheres regressavam a casa, desfaziam a cama e dormiam no chão...
Por exemplo é referida como tripulação da Ilhava um pequeno numero de homens esquecendo que há uma embarcação semelhante com cerca de metade do tamanho...
Há muitos mais dados... mas eu acho que todos aqueles que têm informação deviam formar um grupo para ir discutindo o problema e criar-se no museu ou CIEMAR um arquivo dos dados seguros e também, a uma só voz, contestar muito do que é referido por outros que querem «abichar a nossa brasa à sardinha deles...

Antonio Angeja

Anónimo disse...

Estive a olhar aquele barco ILHO e porque tinha um leme de grande porta diferente da ilhava, um mastro inclinado com brandais fixos previamente fiquei com a ideia que seria um barco usado ao longo do Tejo para levar carga envergando um estai e uma vela triangular bastarda como a das caravelas ou com uma vela de espicha... tinha carregados pipos, tinha dois homens e estava com uma vela de pendão... possivelmente era mais uma ENVIADA de partida para Lisboa... tenho diversas fotos destes barcos ligeiramente diferes da ilhava...

Antonio Angeja