sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Entrevistando o capitão do "IlhavenseI"

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As causas do sinistro – Uma tripulação inteira em riscos de perder a vida – O cemitério dos navios – Horas de tortura e de fome – Uma saudade e um sonho – Coragem, marinheiros!

 

Ao respigar Ilhavenses antigos, por outro assunto, passou-me pelas mãos no de 25/8/1929, esta entrevista que me interessou, ao Capitão do «Ilhavense I».

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Lugre «Ilhavense I»
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Catando-a, (…) Homem experimentado nas lides do mar, o nosso amigo Sr. João André Alão era o capitão, há já alguns anos, do lugre «Ilhavense I», naufragado no dia 15 de Julho passado nos Bancos da Terra Nova.

Chegado a Ílhavo na terça-feira pretérita, era nosso dever ouvi-lo sobre o sinistro que causou a perda do barco do seu comando que em 11 de maio havia deixado o porto de Lisboa, impelido pela leve brisa que no tope dos seus mastros cantava a canção dolente que aprendera ao roçar no dorso das vagas – brisa cantante e benéfica a cujo sopro adormecem os nautas portugueses, os nautas da nossa terra, cheiinhos de sonhos e de saudades, sonhos que são uma vida, saudades que são consolo para as suas almas de lutadores nevróticos.

À sua casinha da rua Direita nos dirigimos, pois, na manhã escaldante de 5ª feira.

E, em frente do arrojado marinheiro, de rosto tisnado e magrizela, ali nos dispusemos à entrevista, rápida, instantânea:

– Em que dia haviam chegado ao Banco?

– No dia 12 de Junho.

– Tinham, portanto…

– Já tínhamos perto de 500 quintais a bordo.

– E porque levantaram ferro?

– Porque o peixe falhou.

– A que atribui o sinistro?

– A névoa cerrada que apareceu cerca das dezanove horas e a um desvio de agulha, duas coisas frequentíssimas naquelas paragens.

– Houve falta de precauções?

– Não senhor; flutuávamos de acordo com as exigências de flutuação em tais casos.

– Queira contar-nos o que foi esse momento tremendo?

– Devia ser uma hora da madrugada quando fomos surpreendidos pelos gritos das vigias, anunciando terra na proa. Sentindo o perigo iminente, imediatamente mandei arribar. O barco rodou, mas a popa bateu no rochedo. Mandei largar ferro. O navio estava encalhado de popa à proa, rebentando grandes mares no convés.

– Havia possibilidades de salvar o navio?

– Não. Só havia a possibilidade de salvar a tripulação, que ali estava toda em riscos de perder a vida. Por isso, mandei proceder ao imediato desembarque.

– Que se fez…?

– Com grandes sacrifícios e enormes dificuldades. Foram arriados doze dóris, em que se recolheram todos os tripulantes, tendo eu deixado o navio somente depois de verificar que mais ninguém estava a bordo.

– Houve salvados?

– Quando saltei para o meu dóri, levava comigo todos os livros e documentos de bordo, incluindo dois diários do piloto, mas o meu dóri foi ao fundo, sendo eu salvo nessa ocasião, por outro dóri que veio em meu auxílio, perdendo-se os livros e os documentos.

– Depois…

– Às três horas da manhã, como visse que já nada se podia fazer, para salvamento do navio, mandei remar para terra, em busca de local para desembarque

– Que foi…?

– Perto de uma povoação chamada Saint Shotts.

– Não voltaram ao navio?

– Voltámos por um cabo de vaivém que se estabeleceu de terra para o barco.

– E fizeram, então, alguns salvados?

– Apenas alguma roupa dos tripulantes e alguns objectos de insignificante valor, pois o navio já estava raso de água e impossibilitava, em absoluto, os trabalhos de salvação. Vendo que nada mais se podia ali fazer, voltámos a terra e fomos, então, em busca das autoridades. De Saint Shotts, comuniquei para Trepassey, povoação distante daquela, cerca de vinte milhas. Telegrafou-se para o cônsul de Portugal em Saint John’s, Sr. João José Denis.

– O local onde encalharam é de boa navegação?

– Não. Até lhe chamam o cemitério dos navios. Dias antes de nós, naufragou um vapor inglês, que ainda lá vimos, morrendo toda a tripulação. Contam-se já perto de vinte, os barcos encalhados.

– Passaram muitas torturas?

– Muitas torturas e muita fome. Saint Shotts é uma povoação pequena, com cerca de 20 habitantes e onde não há recursos de espécie alguma. Havia de ser uma hora da tarde quando, extenuados, nos desjejuámos com uma chávena de chá.

– As autoridades fizeram-se demorar?

– Só passadas algumas horas depois que telegrafei é que chegaram ao local do sinistro o Juiz de Trepassey, o oficial da Alfândega e um polícia.

– E o nosso cônsul?

– Telegrafou imediatamente ao Juiz de Trepassey, pedindo que nos fossem dados imediatos socorros. Também o nosso conterrâneo Sr. Copérnico da Rocha* foi incansável e dispôs tudo para que nada nos faltasse. Fomos transportados para Trepassey em pequenos carros, por caminhos perigosíssimos, tendo ficado no local do naufrágio um polícia de guarda ao navio e aos salvados. De chegada a Trepassey, também lá estava o cônsul de Saint Jonh’s.

– Que providências tomou o cônsul?

– Averiguados todos os detalhes do naufrágio, e informado de que nada mais se podia fazer e vendo que os marinheiros estavam passando as piores privações, dormindo no soalho de uma sala e cheios de cansaço e fome e tendo ido ao local do sinistro comigo, com o piloto e autoridades verificaram a situação e posição do navio, ordenou, então, a nossa partida para Saint John’s, onde embarcámos a bordo do paquete «Nova Scotia» que nos transportou ao Havre, tomando neste ponto o vapor «Pancras», que nos desembarcou em Leixões.

– Vieram todos?

– Vieram 23 homens. Os restantes 5, em cujo número se contam o piloto, Sr. José Fernandes Matias de Melo e o contramestre Sr. Joaquim Fernandes Serrão, devem estar a chegar a bordo do vapor «Catalina»

– Quantos homens eram de Ílhavo?

– Seis. E outros tantos da Gafanha. Os restantes eram da Nazaré, da Figueira e do Algarve.

E o nosso entrevistado, sem dar mostras de aborrecimentos pelas nossas constantes e contínuas interrogações, cerrou neste momento os olhos.

Calámo-nos. Naquele instante, devia passar-lhe pela mente a recordação de um sonho feito saudade, evocando as horas tormentosas do naufrágio em que correndo da proa à popa, gritava aos seus homens:

– Coragem, marinheiros!

Antes fosse um sonho!

Mas, infelizmente, a perda do «Ilhavense I» fora uma dura e cruel realidade!

Degustem esta entrevista levada a cabo há 92 anos, tal como eu a saboreei, apesar de todo o seu dramatismo.

*Ainda conheci o Sr. Copérnico Rocha e sua Esposa, quando vinha a Ílhavo, irmão de Conceição e Rosa Rocha, tio de Maria da Conceição Rocha Mano e de José (Zeca) Mano.

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Ílhavo, 08 de Outubro de 2021

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Ana Maria Lopes

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