sexta-feira, 5 de março de 2021

Cenas litorâneas - Buarcos

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A minha mente está recheada de belas cenas litorâneas – algumas, muitas, dei-as ao prelo em livros, e, mais tarde, no blogue Marintimidades. Outras há que não tiveram essa sorte e ainda não foram contadas, narradas, exibidas, retratadas por palavras ou imagens.

É o caso desta, passada em Buarcos, pelos anos oitenta que sempre me deixa saudades, pela vida que ornamentava o nosso litoral. Menos meios, vida mais precária, mais faltas, mas mais riqueza e beleza antropológica e etnológica.

Chegada a Buarcos, à procura do dito bote de Buarcos, à volta do primeiro decénio deste século, o desânimo invadiu-me. O que é feito dos botes que daqui saíam para o mar de uma forma encantadora? Seduziu-me este recanto, pelos anos oitenta, noutra investida remota de inquirições.

Areia deserta, mar deserto, ninguém na praia, sequer, a quem perguntar.

Nos anos sessenta em Buarcos, o bote tinha «grosso modo» a silhueta dos botes do bacalhau. E não é por acaso que isto acontece. Desaparecidos gradualmente os navios de pesca à linha do bacalhau, os dóris ou botes, construídos nas carpintarias das empresas por hábeis carpinteiros, foram perdendo a razão de existir. Construção simples permitia que em alguns pormenores não fossem totalmente iguais, mas as suas dimensões principais geralmente eram respeitadas: 5,30 metros de comprimento, 1,50 m. de boca e 0,60 m. de pontal. Alguns museus marítimos exibem-nos com orgulho, como o da Póvoa de Varzim, o de Ílhavo e o Museu de Marinha, em Lisboa.

Em algumas das localidades que forneceram homens para a pesca do bacalhau (Costa Nova, Gafanhas, Cova/Gala e outras), foram transferidos alguns para a pesca local, sofrendo algumas modificações.

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Na Costa Nova, na apanha do crico. Anos 80

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Aos poucos, foram abandonando o tabuado trincado, recebendo à popa um banco em U, e passaram a ter bancos fixos, ganhando castelo de proa fechado por portinhola e popa, mais larga, com um pequeno motor.

Pelos anos 80, a silhueta do bote foi abrindo, pois as águas a que se destinava não eram as mesmas e o comprimento também excedeu os 5 metros.

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À espera e à conversa, na praia…Anos 80
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Em Buarcos, assistimos ao encalhe do último bote daquele dia, puxado por uma junta de bois que todos os dias se dirigia à praia com aquela finalidade. A dona da junta fazia este trabalho há 40 anos, desde que se casara em Buarcos e recordou a existência de grandes bateiras (maiores que os botes) e de lanchas poveiras (ainda muito maiores).

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Junta de bois a varar o bote, em Buarcos. Anos 80
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O bote era utilizado para a rede de um pano para a faneca, para o tresmalho (rede de três panos) para o linguado, sargo, robalo, etc., para o aparelho a que chamavam troles com muito inzóis, para a linha de mão para o safio e para os cofos.

Que encanto! Como vemos, a venda do peixe era feita na praia directamente aos banhistas, colaborando a mulher com o marido na separação do peixe e sua pesagem.

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O peixeiro a pesar… Anos 80
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Em 2005, a visita ao local foi desmotivante. Apenas um bote para amostra, de 6 metros de comprimento, 2 m. de boca e 0,60 m. de pontal, em madeira, anódino, e mesmo assim, protegido e coberto, fora de uso, porque pertencera a um ex-pescador de 84 anos, já bastante doente.

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Este local tornou-se muito perigoso e «tudo desistiu, não há autorização» – informaram-me.

– A Senhora encontrará alguns botes no porto de abrigo da Cova-Gala – e lá fui, meia murcha, observá-los, com saudades da algazarra, movimento e alarido do areal, pelo menos dos anos 80.

Vi bastantes, de cores alegres, quase todos de madeira e muito poucos revestidos a fibra. Actualmente, são usados na pesca, no rio.

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Botes usados no rio. Porto de abrigo da Cova-Gala. 2006

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Por estas e por outras, tenho a mente cheia de belas cenas litorâneas, que passaram ao lado da maioria das gentes.

 

Ílhavo, 05 de Março de 2021

Ana Maria Lopes

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