quarta-feira, 22 de outubro de 2014

A dureza da profissão de sargaceira

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Há dias, num Seminário que houve no MMI sobre Espaço e Paisagem no Cinema Português, atraiu-me, especialmente, o documentário «A Mãe e O Mar», realizado por Gonçalo Tocha, filmado na praia de Vila Chã, em Vila do Conde.

Cartaz

Conta a história das «mulheres-arrais», ou «pescadeiras», tidas como caso único em todo o mundo. Aqui, são representadas por Glória Ramos Costa de 60 anos de idade, a única mulher que, depois de tantos anos e tantas adversidades, ainda se atreve a enfrentar o mar. Através de entrevistas e várias conversas onde se recorda o passado, Tocha revela como estas mulheres corajosas desafiaram a tradição e obtiveram licenças de pesca, dedicando as suas vidas à pesca, uma profissão predominantemente masculina, e ao amor pelo mar.
Gostei de ver a sua participação na pesca com uma coragem inabalável, mas tocou-me mais a participação de Glória na apanha do argaço, como última sargaceira de Vila Chã.
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Passo a explicar. Por ocasião de várias visitas sistemáticas ao litoral português, tive oportunidade de observar algo desta actividade, embora não tenha constituído objecto de meu estudo. Mas, os registos fixaram momentos… E, agora, 30 anos passados, vieram ao de cima…
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Por outro lado, também existe uma semelhança entre o argaço do mar nortenho e o moliço da laguna de Aveiro. Ambos em vias de extinção, senão mesmo extintos e com finalidades idênticas.
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Não vou sacrificar os leitores amigos aos muitos pormenores que a apanha do sargaço envolvia, em diversas praias nortenhas, até meados do século XX.
A recolha das algas que andavam soltas na água ou presas aos rochedos submersos, longe da praia, era feita em embarcações – barcos tipo poveiro, masseiras ou jangadas – conforme os diversos locais, utilizando, para isso, o sargaceiro (geralmente, homem), ferramentas específicas: foicinhas, croques e ganchorras, espécie de ancinhos, de cabo muito comprido, com duas fieiras de dentes de diferentes tamanhos, com um ângulo de 90º, entre eles.
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Já não cheguei a tempo de observar este tipo de apanha.
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Aquela que ainda me foi dado analisar e que me seduziu e marcou até hoje, foi a apanha feita a pé, normalmente por mulheres, que, com grande esforço, entravam na água, vestidas, até à cinta ou ao peito, arrastando as algas que boiavam, junto à praia, com o auxílio da graveta (ancinho mais pequeno e de cabo mais curto) e do ganha-pão, uma espécie de saco de rede entralhado num arco de madeira, munido de um cabo para o manejar.
De madrugada, com a roupa molhada, fria, colada ao corpo, estas corajosas e esforçadas mulheres subiam areal acima, com o ganha-pão carregado, às costas, quantas vezes ainda sob algum nevoeiro, como cheguei a ver.
Para lhes facilitar o trabalho, duas mulheres serviam-se, com frequência, de uma espécie de padiola com dois braços de cada lado, a carrela, sobre a qual transportavam as algas colhidas até ao cimo do areal.
Idêntico à carrela, mas com duas pegas apenas e uma roda, uma espécie de carro, manejado por uma só mulher, usava-se, para o mesmo efeito, o carrelo, que facilitava muito o trabalho, a uma só pessoa.
Não quero deixar de citar o galricho do sargaço, usado só em Vila Chã, e num ou noutro local, a título excepcional, que não tem nada com o «nosso» galricho.
Constituído por um longo saco de rede de 2 a 3 metros de comprimento, também preso a um arco de 1.30 m de diâmetro, com meio arco desimpedido, mas sem cabo, é agarrado verticalmente pela sargaceira, como se pode ver no CARTAZ, que publicita o filme e que me despertou o afecto para estas imagens fechadas no «baú», há cerca de 30 anos.
Por último, em conversa, com a própria Glória, a sargaceira/artista de tão duro trabalho, testemunhou-me que, em Labruge, um jumento tocado por uma mulher acarretava, numa zorra, o sargaço que tinha dado à praia, e que a sargaceira recolhia, com o auxílio do graveto. Confirmou-me o que eu tinha visto e que tinha registado e que vos dou a conhecer, com prazer.
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Registos de outros tempos, de práticas extintas, que foram deixando um eco de memória na praia de Vila Chã.
Mas a Glória, mulher sargaceira e arrais, já não vai mais ao mar, porque os anos começam a pesar e teve o azar de ter partido uma perna.
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Chamo a atenção, isso acontece com frequência no nosso litoral, que há diferenças terminológicas na designação de alguns instrumentos de trabalho, de praia para praia, entre curtas distâncias. São os diversos falares ou linguajares que nos enriqueceram a língua, que estão em risco de serem também perdidos com os novos tempos.
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Vidas difíceis de gerações de mulheres e de mães, no nosso mar…
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As imagens libertadas pelo filme e pela memória testemunham-nos algumas das descrições que acabei de reconstruir.



À beira do mar, liso, espelhado, brilhante e esquartejado entre penedos, uma sargaceira, de roupa molhada até ao peito, retira do ganha-pão para o areal, as algas arrastadas na praia. Aver-o-Mar.

 


Duas gerações de sargaceiras – uma, de preto vestida, quem sabe, viúva de homem do mar, de costas voltadas para nós; outra, jovem e bonita, orgulha-se do seu trabalho, deixa-se fotografar, ao acarretar as fitas, a bodelha e os limos do argaço, num carrelo, pelo areal acima. Aver-o-Mar.

 

Duas gerações de sargaceiras, talvez mãe e filha, acarretam sargaço com as típicas padiolas, as carrelas, plasmadas num ambiente marítimo de barcos tipo poveiro, aprestos, trouxas de redes, montes de algas, que salpicam o areal da Apúlia.
 

Sargaceira, em Labruge, de graveto ao ombro, acabou de apanhar sargaço, trazido até à praia, para uma zorra que um jumento arrasta. Cena inédita.
 

Sargaceira idosa, entre rochedos, curvada pelo peso do ganha-pão, esconde o rosto, de vergonha, perante os fotógrafos, que, ainda revoltada, trata mal, por divulgarem o seu grande sacrifício. Apúlia.
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Vidas pesadas e difíceis, que entretanto acabaram, mas foram deixando alguns preciosos testemunhos.
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Fotos de Paulo Godinho (inéditas). Anos 80
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Ílhavo, 26 de Setembro de 2014
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Ana Maria Lopes
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4 comentários:

reimar disse...

Cara amiga,
Mais um excelente texto sobre uma actividade em vias de extinção. Sou naturalmente do tempo da apanha do sargaço, quando este dava às praias, por acção de forte agitação marítima ou tão simplesmente devido a um brusco e anormal aquecimento das águas. Depois era vê-lo exposto no areal, para secar ao sol, antes de ser recolhido e utilizado nos campos de cultivo, como adubo fertilizante.
E como cheirava mal, atraindo a pulga do mar e as irritantes moscas!
Não me recordo de ver alguém reclamar dessas situações, bem pelo contrário, havia respeito pelo trabalho do pescador-sargaceiro e um correcto entendimento dos fins em vista.
Detalhe, a apanha do sargaço só existia entre as praias de Caminha até Leça, pois a Sul de Matosinhos só era possível encontrar algas verdes, que identifico por rapeira.
Muitos cumprimentos,
Reinaldo

Ana Maria Lopes disse...

Boa tarde:

Obrigada, caro amigo, pelo testemunho.
Cumprimentos

Anónimo disse...

Como de costume, mais um belo texto, magníficamente ilustrado por cenas verdadeiras do labor das nossas sargaceiras.
Confesso que estas imagens são muito distintas de algumas outras do filme, já que essas me cheiram um tanto a «falsete», na medida em que aquela representação nos deixa muito a desejar.
Provavelmente, faltou ali um tal Manuel Oliveira a orientar.
Parabéns.
Albino Gomes
ps: Como diz o nosso povo e com razão, que «ninguém gosta de andar de cavalo para burro», e se me permite, apenas um reparo à legenda do jumento, que não é jumento, mas sim um cavalo da raça «garrano», oriundo da Serra do Gerez, o qual arrasta uma improvisada zorra, feita a partir de um bidão vazio, tal como teriam 'inventado' os visinhos sargaceiros de Aver-o-Mar.

Ana Maria Lopes disse...

Sr. Albino Gomes:

De cavalo para burro, não.
Por isso, o cavalo «garrano» agradece a sua defesa de classe.

Cumprimentos