segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Inter-relação da iconografia do barco moliceiro/canga vareira (Parte I)


A minha paixão pelo barco moliceiro é francamente conhecida. Após um estudo, de certo modo aturado, sobre o referido barco, desde os anos 70, por que não um breve apontamento sobre a canga vareira, um artefacto que lhe está intimamente ligado?
Vários autores têm evidenciado a semelhança entre a canga vareira e o moliceiro, quer quanto à sua morfologia, quer quanto à decoração.

Na opinião de Luís Chaves, a canga, de frente, lembra o perfil do moliceiro carregado; a carga não se estende a todo o comprimento de proa à ré, ficando avultada a meio, em prisma quadrangular e volumoso. Quando o mastro já é inútil, é apeado e estendido por cima da carga. Assim, o perfil torna-se de arqueado em rectilíneo; a igual distância, com o centro de simetria no mastro ou no seu lugar, a linha recta quebra verticalmente e é, em baixo, continuada pela curva até às pontas enroladas do barco. Talvez este perfil tivesse influenciado a forma da canga.


Maré de moliçoAnos 60


Não menos curiosa é a interpretação de Domingos José de Castro que compara a sua morfologia com a rede da arte xávega, composta pelo saco trapezoidal, mangas e rolos do cabo. No centro, o saco rectangular, corresponde ao castelo da canga; dos lados, os cabos de arrasto da rede, enrolados sobre si, sugerem a parte baixa da mesma.

Canga em carro

A canga vareira, imprescindível nas juntas de bois, era utilizada na alagem das redes da arte xávega, em toda a extensão do cordão litoral, desde Espinho à Torreira. A sua infiltração na lavoura explica-se pelo facto das juntas de bois em prestação de serviço de pesca serem, normalmente, propriedade de lavradores das vizinhanças, lavradores esses que, por vezes, se dedicavam também à faina do moliço. A sua adopção no campo, imediatamente pressupunha a proximidade do mar e a alternativa compreensível da sua aplicação em ambos os serviços.

Quer barco, quer canga, complemento do carro de bois, eram ambos alfaias agrícolas, que, muitas vezes, se complementavam. O moliceiro, segundo Raul Brandão, “rapa os cabelos verdes da ria” que o carro de bois descarrega e transporta para os campos.



Descarga de moliço – Anos 80

Para além da sugestão mórfica e da complementaridade de funções, a semelhança entre canga vareira e o moliceiro da zona norte da ria existe a vários níveis:


– geograficamente, o moliceiro e a canga vareira constroem-se nos mesmos locais, nomeadamente, Bunheiro, Pardilhó e Monte (Murtosa).
– decorativamente, painéis de moliceiro e cangas são idênticos pela álacre policromia e pela ingenuidade dos motivos utilizados. As cores são fortes, puras e luminosas: o branco, o vermelho, o azul, o verde, o amarelo, o zarcão (cor-de-laranja) e o rosa, umas de origem, outras manipuladas pelo próprio artista, através de algumas composições.
Quanto à temática, certos motivos são comuns: o vaso florido, o sino-saimão, o escudo português. Os elementos decorativos menores (círculos gravados e ramagens), podem ou não constituir frisos. Na canga, nunca existe o elemento figurativo.
Esta simbiose entre a iconografia do moliceiro e da canga tem sido representada por alguns jugueiros, desde os finais do século XIX.

(Cont.)

1ª Imagem – Arquivo pessoal da autora
Restantes fotografias – Cedência de Paulo Miguel Godinho

Ílhavo, 26 de Outubro de 2009

Ana Maria Lopes


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3 comentários:

Anónimo disse...

Há mais de 50 anos que nãolia,nem ouvia,"sino saimão",corruptela de "signo de Salomão".Cumprimentos."kyaskyas"

fangueiro.antonio disse...

Boas.

É precisamente este um exemplo daquilo que mais me apaixona nos barcos e artes tradicionais, o enorme universo que podemos explorar em volta deles até às origens, quando possível. Compreender porquê que têm determinada forma e dimensões, os detalhes de como eram construídos e pintados. Entende-se assim que nada está ali ao acaso, embora pareça a muitos apenas umas tábuas pregadas e pintadas.
É um trabalho de detective cheio de obstáculos, e neste caso como noutros, reparar que o homem do mar e neste caso da Ria, não estavam tão afastados do homem do campo como por vezes aparenta.
Parabéns à Drª por mais este artigo.

Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt

Anónimo disse...

Achei interessante o que refere no seu texto...Mas no sul da Ria de Aveiro as cangas utilizadas tanto na agricultura como na pesca eram diferentes e muito mais simples como os barco moliceiros eram geralmente cobertos na totalidade de pez negro....apesar das novam terras das Gafanhas serem grande parte colonizadas por povos do norte do Douro... Penso que tanto as cangas e pinturas dos barcos do norte da Ria tiveram uma maior influencia dos povos do norte enquanto os do sul mantiveram as suas caracteristicas e tradições...

O que pensa sobre o assunto????????