sábado, 1 de abril de 2023

A salga, na exposição Faina Maior de 1992

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A salga é a última operação que o bacalhau sofre, a bordo, indispensável à sua conservação e que é efectuada no porão.

Este é o espaço do navio destinado à carga, limitado pela antepara da proa contígua ao paiol de mantimentos e ao rancho, e pela antepara da ré, que, nos antigos veleiros, era contígua aos aposentos dos oficiais (câmara ou salão). Neste porão, aparecem prumos de madeira no sentido longitudinal e transversal, que sustentam a estrutura do convés (os pés de carneiro) e ainda os vimes, que, no sentido transversal, ajudam à travação da ossada do navio. É entre estes prumos, que, por colocação de madeira, se fazem as divisórias do porão – as panas. Estas ainda são subdivididas em três partes chamadas hinos, dois à amurada (de bombordo e estibordo) e o hino do meio.

Na impossibilidade de expor um porão inteiro, limitámo-nos a apresentar meia secção de um porão de um antigo veleiro, desde a sobrequilha até meia altura.

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Secção de porão de antigo veleiro
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Quando o navio se dirigia para os pesqueiros, o porão ia carregado de sal, só com uma das divisórias, a pana de proa vazia; esta levava, por vezes, barricas de farinha, amarras, apetrechos de pesca, remos, madeiras dos dóris, varas de eucalipto, isto é, material que, em viagem, era distribuído para estrafego e aliviava a pana.

Iniciado o processo da salga, o peixe era passado do escorredouro do convés para o porão, através de uma mangueira de lona, caindo na dala, onde era garfado pelo passador de peixe para um dos hinos vazios, pronto a recebê-lo. Aí, dois salgadores, vestidos de roupa oleada e botas de borracha, com os joelhos protegidos da humidade por joelheiras, ajoelhavam-se sobre um encerado, ligeiramente virados um para o outro, com o alfabuche entre os joelhos.

O passador de sal (sempre sobre um hino com sal), gritava:” Sal! Sal! Sal!” e o salgador instintivamente puxava o balde de sal e despejava-o no alfabuche.

O garfeiro ou passador de peixe, junto à dala, gritava: “Peixe! Peixe! Peixe!” e ia atirando o bacalhau para o meio dos dois salgadores. Estes gritos de aviso facilitavam a mecanização do serviço e faziam com que os salgadores quase instintivamente pegassem no balde do sal, sem olharem para ele e se acautelassem no sentido de não apanharem com algum peixe sobre as mãos, o que iria redundar por possível ferimento, em prejuízo do seu próprio trabalho. Os salgadores, consoante a posição em que se encontravam, agarravam no peixe com a mão direita ou esquerda e estendiam-no com os cachaços para as anteparas de vante ou de ré do hino e começavam a salgar o peixe á mão (só mais tarde as luvas de lã de cinco dedos, protegidas por luvas de borracha foram introduzidas), com mãozadas de sal, do cachaço para o rabo. Seguidamente, a meio da canja (primeira corrida da salga de peixe com cerca de meio metro de altura por meio metro de largura), punham o peixe quer de cachaço quer de rabo para a amurada, ficando todos os espaços; o peixe, ligeiramente mais alto a meio, fazia com que a salmoura escorresse para os extremos da canja. Acabada esta primeira canja, os salgadores limpavam o sal caído no encerado e recuavam para fazer a mesma operação. Geralmente, faziam três canjas por hino do meio (estamos a exemplificar com meio hino) e para efectuar a terceira canja, passavam por cima do peixe salgado, viravam-se na posição contrária à que estavam, tapavam o último terço do hino e elevavam-se como se efectuassem, de novo, a primeira canja. Este hino ia subindo, subindo, subindo, até cerca de dois metros de distância do tecto do porão. Safavam-se os hinos da amurada, indo

o sal destes hinos para as panas contíguas (serviço feito com o auxílio de pás) e passavam a salgar os hinos da amurada…. E assim se ia repetindo sucessivamente a operação.

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Imagem de Alan Villiers. 1950
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O peixe ia abatendo bastante devido à dissolução do sal, por força do balanço e sobrecarga de sal que levava em cima. Daí que, em anos de carregamento, houvesse duas operações finais: o abarrote e o empanque. O abarrote consistia em salgar o peixe até ao cimo da pana desde que houvesse possibilidade do salgador trabalhar, muitas vezes já com a cabeça encostada ao tecto do porão: o empanque consistia em encher uma pana já abatida com peixe curado com bastantes dias de salga), de uma pana contígua.

Os salgadores eram pescadores com mais vocação para a salga e que se iam mantendo de uns anos para os outros. Formação especial ou técnica, não tinham; iam aprendendo com a prática e essa escola ia-se aperfeiçoando durante a descarga, a que os pescadores assistiam, e ao verem a qualidade da salga, contrariavam a tendência de mais ou menos sal, no ano seguinte.

Por mais arriscado que fosse o trabalho da pesca, por mais custoso e árduo que fosse o dos escaladores, o pior ainda era o dos salgadores. Em algumas povoações de pescadores, mulheres havia que diziam aos filhos pequenos, quando faziam maldades: “Se não tens juízo, mando-te embarcar de salgador num navio de bacalhau”. A posição incómoda, a frouxa claridade vinda da escotilha, umas pobres velas, os efeitos da humidade, as consequentes feridas nas mãos, a responsabilidade do trabalho controlado sistematicamente pelo capitão, faziam do cargo uma tarefa extremamente penosa.

De recordar os utensílios: mangueira, dala (que não se vêem na imagem), vertedouro, garfo de meio cabo, touco de vassoura, balde, pá, galão, joelheiras, encerado, alfabuche, tabuinhas e cachimbos, suportes de velas de estearina, com que se fazia a iluminação do porão.

Ílhavo, 01 de Abril de 2023.

Ana Maria Lopes

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