terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Bota-abaixo do "São Jorge" (Parte I)

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Escolhi este assunto para iniciar o blogue (2008), porque o recordo com enorme nostalgia e saudade. Após quase 13 anos, resolvi revisitá-lo.

Num sábado, 10 de Março de 1956, com 12 anos (há 65 anos), fui madrinha do navio-motor “São Jorge”.

Há em mim qualquer gene que me faz amar tudo que saiba a maresia, tudo o que é mar e ria.

Havia, então, assistido, só entre o público, a um bota-abaixo e a cerimónia fascinara-me. Não me imaginava personagem principal do que para mim, com aquela idade, era um conto de fadas.

Um belo dia, aparece-me em casa, ali no Curtido de Baixo, o Sr. António Cunha, então gerente da Empresa Testa & Cunhas, a convidar-me para madrinha do “São Jorge”, que estava em construção.

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No estaleiro – 20 – 1 – 1956

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Porquê eu? Que sensação! Parecia-me convite só para gente importante e crescida!

O nervosismo e a ansiedade intensificavam-se à medida que a data se ia aproximando… a “toilette” (vinha a fina flor da sociedade lisboeta ligada às pescas), o quebrar da garrafa…

Passei a treinar insistentemente nos troncos de laranjeiras do quintal, mas em vão! O tronco ficava esfolado, mas o resistente vidro da garrafa de “champagne” cheia de água, intacto… Havia de ser o que Deus quisesse. Tinha que partir a garrafa.

No sábado escolhido, o dia estava soalheiro, mas com um ventinho norte a soprar com alguma intensidade.

Pelas 13 horas da tarde, na estação de Aveiro, o Sr. Governador Civil, proprietários do novo navio, autoridades locais, militares e civis e muita gente aguardavam o Sr. Ministro da Marinha, Almirante Américo Tomás e sua comitiva que se deslocara propositadamente a Aveiro em comboio foguete especial.

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Chegada à Estação de Aveiro

 

Teve lugar no salão de festas do então famoso edifício do Teatro Avenida um lauto almoço que a empresa proprietária ofereceu a cerca de trezentos convidados.

A ementa constava de linguado à Colbert, arroz de pato à Beira Mar, leitão assado; ovos moles regionais, fios de ovos, pudim de laranja, ananás ao Madeira e café (sobremesa); vinhos tinto e branco das caves do Galo d’Ouro, espumante Raposeira, aguardente de 1920 e licores (vinhos).

Usaram da palavra algumas individualidades a desejarem as maiores felicidades à firma armadora, à nova unidade e ao construtor. Pormenor curioso… os leitões, antes de trinchados e servidos, desfilaram elegantemente em braço de criados, tal passagem de modelos, dentro de pequenos “botes” embandeirados em arco, construídos para o efeito.

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Pequenos dóris com os leitões

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Aguardava a hora da maré o “São Jorge”, na carreira, donairoso e altaneiro, na imponência da sua altura, de cores claras, hasteando o mariato colorido, da proa à popa, esvoaçando ao vento.

Um bota-abaixo na Gafanha é sempre um acontecimento festivo: no estaleiro e em todos os caminhos em redor via-se muita gente para assistir ao sempre emocionante espectáculo. Ansiedade! Emoção! Expectativa! E na ria, toda a frota bacalhoeira, embandeirada em arco pela “camaradagem” de mais um navio que a ia enriquecer.

O “São Jorge” era um navio-motor que deslocava mil toneladas com capacidade para catorze mil quintais de pesca. As suas características principais eram: comprimento, 54,15 metros; boca, 10,48 m. e pontal, 5,62 metros. Embarcava uma tripulação de 80 homens, entre os quais 62 pescadores. Dispunha de um motor principal de 600 H.P. e motores auxiliares, guinchos, sonda eléctrica, radar e câmara frigorífica para isco e conservação de alimentos, com capacidade de 60 toneladas. Foi seu primeiro capitão o Sr. João dos Santos Labrincha. (Laruncho), de Ílhavo.

São Jorge – quis a empresa dar-lhe esse nome e eu, como madrinha, ofereci-lhe uma bonita imagem do Santo a cavalo, de espada em riste, a lutar com o dragão, que sempre viajou durante anos, a bordo, na Câmara dos oficiais, até 1972, ano em que a empresa o vendeu. A imagem, depois de ter sido cedida ao MMI. para a exposição “Faina Maior” até 1999, voltou à procedência, ao fazer parte dos meus bibelots de estimação, para que olho com enlevo. Definitivamente, há dois anos, ofereci-a ao Museu (MMI).

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A imagem do patrono
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Em tribuna construída à proa da nova unidade, tomaram lugar muitos convidados e personalidades, dentre os quais os Senhores Arcebispo-Bispo de Aveiro, D. João Evangelista de Lima Vidal, Sr. Comandante Tenreiro, Governador Civil do Distrito, Dr. Francisco do Vale Guimarães, Almirante Alves Leite, Director Geral de Marinha; Engenheiro Higino de Queirós, presidente da C. R.C.B.; presidentes das Câmaras Municipais de Aveiro e Ílhavo; Comandante António Caires da Silva Braga, capitão do Porto de Aveiro; presidente e vogais do GANPB., os comandantes militares de Aveiro, representantes oficiais da base aérea de S. Jacinto e muitos armadores e capitães da frota bacalhoeira.

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Tribuna dos convidados, pela proa do navio
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Em momento solene, sua Ex.ª Reverendíssima benzeu a nova embarcação, augurando-lhe “um bom futuro, atendendo ao espírito verdadeiramente cristão de quantos nela trabalharão em árdua e perigosa tarefa, confiados unicamente na fé em Deus”.

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Bênção do navio
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Antes, porém, do lançamento, fizeram-se os discursos da praxe, falando primeiro pela empresa armadora o Sr. António Cunha, seguido pelo Sr. Comandante Tenreiro, Sr. Governador Civil e do Mestre Manuel Maria Mónica. Finaliza o Sr. Ministro da Marinha:

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– (…) O “São Jorge vai descer na carreira. A este, outros navios se seguirão. É a tradição que se mantém. O Governo do Estado Novo jamais deixa perder o que signifique valor nacional”.

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Oradores e convidados na tribuna
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Realçou-se que o lançamento à água de um navio para a pesca do bacalhau representava um acréscimo de riqueza e de trabalho, exprimindo a continuidade de uma política que desde há 30 anos vem operando, em paz, uma transformação profunda na vida da Nação.

Lá no meu canto (dada a minha pequenez) nem era notada a minha presença; eu pouco ou nada percebia daqueles “chavões” que mais tarde foram sendo desmistificados à luz das épocas que lhes sucederam, susceptíveis de várias interpretações e considerações.

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(Cont.)

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Ílhavo, 26 de Janeiro de 2021

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Ana Maria Lopes

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