sábado, 28 de novembro de 2009

Moliceiros - Outras zonas decoradas - I



O barco moliceiro, com as suas quatro iluminuras de uma diversificação estonteante, fez da ria de Aveiro uma galeria de arte flutuante, em que todos os elementos estéticos foram mergulhando.

Porém, há outras zonas da embarcação que não dispensam a decoração.

A antepara da proa exibe um motivo floral de grande dimensão ou motivo geométrico, com preferência pelo sino-saimão (signum salomonis), de protecção mágica, cuja origem Celestino Gomes procurou na deformação da estrela-do-mar: sino-saimão, sanselimão ou sinaimão, diversas nomenclaturas para o mesmo signo.

Motivo floral da antepara do castelo da proa

Signo-saimão


Nos golfiões, terminações exteriores do forcado da proa, não faltam o rapaz e a moçoila, ora amigos, ora zangados, conforme as voltas das amarras que a vida dá.

Golfiões entrelaçados por amarras


Na base da bica, um motivo floral, vaso com planta florida, umas pétalas singelas ou apenas umas riscas transversais, sempre garridas, encimadas por vasito singelo.

Motivo floral da base da bica


As extremidades dos forcados biqueiros, por vezes, são também decoradas, bem como a parte vertical da entremesa da ré, sobre a qual se senta o arrais.

Pormenor do interior da ré


(Cont.)

Ílhavo, 28 de Novembro de 2009

Ana Maria Lopes

sábado, 21 de novembro de 2009

Evocação de Mestre Cândido Teles, o pintor da Ria



A próxima palestra integrada no 3º Ciclo de Conferências sobre “Aveirenses Ilustres” que a Câmara Municipal de Aveiro leva a efeito no auditório do Museu da Cidade, das 18, 30 às 19,30 horas, do dia 26 de Novembro, presta homenagem ao Artista ilhavense Cândido Teles.

Com esta iniciativa pretende a CMA homenagear personalidades que, activamente, deram o seu contributo para o desenvolvimento sociocultural e político-económico da região, valorizar a Historiografia Local e formar pedagogicamente públicos.
Associada à palestra evocativa decorre também uma pequena mostra de objectos e literatura alusiva à individualidade evocada que estará patente durante 15 dias no espaço do Museu da Cidade.
Tem hoje, também, o Artista, um lugar de destaque no Marintimidades, porque a oradora convidada será a autora deste blog e Cândido Teles, apesar de muitos outros aspectos de relevo, identifica-se, na região, com um grande pintor da Ria, da Costa Nova, das nossas fainas marítimas e lagunares.

António Cândido Patoilo Teles nasceu em Ílhavo, no Arenal, em 1921 e faleceu na mesma cidade, a 31 de Outubro de 1999.


Cândido Teles, fruto da sua profissão, viveu e interpretou, na tela, ambientes distintos: Aveiro, Ílhavo, Açores, África (Angola, Guiné, S. Tomé e Moçambique), Madeira, Alentejo, Algarve, num intenso trabalho, sofrendo, em todos eles, uma influência dos meios, humano e paisagístico.

Mutações, nos aspectos temático, técnico e estético da sua arte, fizeram dele um experimentalista nato. À Ria de Aveiro, de que se afastou, geograficamente, por circunstâncias profissionais, voltou, com garra, nos últimos 20 anos da sua vida, numa técnica estruturalmente enobrecida e diversificada.
Ao longo da vida, recebeu várias distinções e a sua obra está representada em diversos museus nacionais e colecções públicas e particulares.

Plurifacetado, usou sabiamente o lápis, as tintas, os pincéis e a espátula; moldou o barro e trabalhou o ferro forjado.
Em matéria de datas, o último dígito – 9 – teve, na sua vida, uma forte carga afectiva; repete-se, por coincidência? …1939, primeira Exposição no Salão Arrais Ançã, na Costa Nova; 1999, ano do falecimento; em 2009, teria feito 70 anos de vida artística e passaram dez anos, após a sua morte.

Como apreciadora do Mestre Cândido Teles e amiga da Família, fizemos o melhor para apresentar uma visão globalizante da obra do Artista. Evocar é, sobretudo, lembrar e revisitar.
Apreciemos uma ligeira mostra de óleos, por ordem cronológica:

Vista para o Forte. 1939. Col. Família


Xávega. 1948. Col AML

Apontamento da época. Col. Família

Açores. Anos 40. Col. MJM


Tríptico da arte xávega. Col. MMI

Saleiros. Aveiro. 1969. Col. CMI

Ria em verde. 1969. Col Família

Estudo Painel. Aveiro. 1985. Col. Família

Flores (uma excepção). 1998. Col. JLR

Último quadro datado, no cavalete. 1999


Oxalá tenham apreciado esta abreviada e truncada visita pela obra de Cândido Teles. Se assistirem à evocação, apreciarão bastante mais.


Os nossos agradecimentos pela cedência das obras fotografadas.

Ílhavo, 21 de Novembro de 2009

Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Desafio ... 4

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Será o quarto desafio deste género do Marintimidades. Durante o último Verão, as minhas andanças têm sido mais pela nossa ria.

Mas, como a organização do novo site da Confraria Gastronómica do Bacalhau teve a gentileza de colocar o meu blog nos links de interesse, amor com amor se paga, também lhe dedico este desafio, relativo a dois belíssimos lugres bacalhoeiros.

Tinha prometido que, da próxima, seria bem mais difícil! E é…

Os nomes dos navios não se conseguem distinguir, creio, devido à distância a que foram fotografados, mas trata-se de dois elegantes lugres da praça de Aveiro, em plena faina, com mar de senhoras … Ambos de quatros mastros, apresentam uma curiosidade – as velas dos pequenos dóris, a secar…Vamos aos palpites! Tentem identificá-los. Não desanimem!!! É de mestre e de confrade!


Fotografia – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 18 de Novembro de 2009

Ana Maria Lopes

domingo, 15 de novembro de 2009

Execução da canga vareira ( Parte IV )


Joaquim Ruivo (tive, agradavelmente, notícias dele, noutro dia), e ainda mantém esta ocupação.

Em primeiro lugar, a canga é cortada – explicou-me –, sendo constituída pela parte inferior, direita, o braço, que termina lateralmente em dois círculos, as maçãs ou romãs e pela parte superior, recortada em forma de castelo – o pente.
Para aperfeiçoamento de todas as partes direitas, é metida a garlopa (plaina grande), para desempenar, aplainar e desengrossar, pois a canga é mais grossa no braço que no pente.
Rectificadas todas as medidas, feitas as quininhas em volta do pente e das maçãs, entra em desenho. Após uma marcação central e longitudinal com régua, o artista grava a compasso o que pode, para então riscar a lápis os desenhos.

Estes – refere – vai-os armazenando na cabeça, para serem usados, consoante a inspiração do momento. Dentre os motivos centrais mais frequentes, sobressaem a sagrada custódia, o vaso de flores, a cruz de Cristo, a flor-de-lis, o escudo português e o signo-saimão.
Os elementos decorativos menores são linhas e flores picadas, ramagens dispostas ou não em friso.
Marcadas as furações (furos necessário às piaças, tamoeiro e coleiras), toda a superfície da face frontal da canga é recoberta de motivos entalhados e pouco vazados.
A face posterior também é gravada e pintada, embora menos ricamente; é no verso que surgem normalmente as iniciais do jugueiro e a data da conclusão da obra.

Face posterior da canga


Após o risco, segue-se a talha, que o artista designa pelo nome de moldura. Utiliza formões, goivas de vários tamanhos e ferrinhos de fundo, também de diversas dimensões, para os diferentes gravados. Em movimentos rítmicos de martelo, o desenho ganha relevo, a cada batedela.

A cada batedela…


Chegou o momento da aplicação das tintas. Depois de um aparelho ou subcapa, à semelhança dos painéis dos barcos, seguem-se as outras tintas bem garridas, vivas, pitorescas nos fundos e meios fundos, terminando na pintura mais superficial.

São cores alegres, porque a vida do campo também o era. Esta ligação entre as cores e a labuta na terra imprime a este tipo de trabalho artesanal uma carga antropológica muito forte, bem como sentimentos religiosos muito enraizados nas vivências de um povo.
As cores mais usadas são o amarelo (para fundo) o rosa vivo, o encarnado, o azul, o laranja e o verde. As tintas, hoje industriais, eram, primitivamente, preparadas com anilinas em pó a que se juntava óleo de linhaça e secante líquido.

Chegou o momento final do encabelamento, que se traduz na aplicação de maçanetas ou touças de pelo de cauda de cavalo, no rebordo superior do pente (cinco a sete tufos), e no das maçãs (cinco tufos), pretas e brancas, alternadamente.

Quanto à antiguidade deste tipo de peça, referem Ernesto Veiga de Oliveira e os seus colaboradores, in Sistemas de atrelagem dos bois em Portugal, Lisboa, 1973, que todos os exemplares de jugos que conhecem, quando datados, são-no sempre e unicamente a partir da segunda metade do século XIX, sendo o exemplar datado mais antigo, de 1868. Este período corresponde a uma melhoria de vida campesina, reflectida nomeadamente na decoração de outras alfaias agrícolas e no engrandecimento da vida e casa rurais.
Na sua opinião, os grandes jugos lavrados representarão, provavelmente, o desenvolvimento de uma dessas anteriores cangas de tábuas, modestas e sem grande valor.

Será que a decoração do barco moliceiro também testemunha um processo idêntico? Terá ele enriquecido as suas roupagens, pela mesma época, para denotar, como alfaia agrícola que era, a pujança do seu dono? De barco indiferenciado, ter-se-á transformado num exemplar exuberantemente decorado, até por influência, também, da vinda de algumas gentes nortenhas para a região?

É uma hipótese perfeitamente aceitável, até porque os primeiros barcos eram quase despojados de decoração e a própria decoração, de que há documentos fotográficos (princípios do século XX), era extremamente modesta, moderada e simplista.

Fotografias – Cedência de Paulo Miguel Godinho

Ílhavo, 15 de Novembro de 2009

Ana Maria Lopes

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Joaquim Ruivo, um homem da ria... ( Parte III )



Joaquim Ruivo, homem da borda de água, com uma casa modesta de lavoura, com farta horta, saudáveis produtos, trata do gado e apanha junco para lhe renovar a cama. Num esteiro próximo de casa, abrigava o seu barco, que reconstruía, quando necessitava, participando também em amanhações de barcos de amigos. Ia ao moliço para uso próprio, quando o havia e decorava barcos, estando o dele sempre muito aprimorado. Além do mais, constrói cangas vareiras nas horas vagas…Um modus vivendi…

ESTÁ AQUI, MAS NAO É P' RA TI…

Daria um belíssimo pintor de moliceiros, se a luta pela vida lhe permitisse e houvesse número de embarcações que justificasse. Os motivos florais e as ramagens são em tudo idênticas às gravadas nas cangas.

Começou o ofício aos catorze anos, tendo feito já cangas para Cortegaça, Furadouro, Ovar, Murtosa, Torreira, Avança, Válega, Estarreja, Salreu, Canelas, Angeja, Vilarinho, Póvoa do Paço, Sarrazola, Oliveirinha, Frossos e S. João de Loure.
Genericamente, executa sempre o mesmo tipo de canga, gravada, esculpida, alta no centro, abatendo-se abruptamente, dos lados, para aí terminar em forma de disco. No entanto, tem algumas diferenças conforme as localidades e as funções a que se destina: mais ou menos baixa, mais ou menos larga, mais ou menos esculpida, mais ou menos forte, pintada ou envernizada.
Para a alagem das redes no mar, aí todos a queriam pintada, bem esculpida, a mais bonita de todas, se possível.

Alagem das redes na Torreira – Anos 80

Utiliza normalmente o eucalipto, embora já tenha usado o carvalho, amoreira e “langomeiro” (lamegueiro). Vai directamente aos pinhais, escolhe as árvores adequadas, trata com os donos, negoceia, põe abaixo, leva a madeira à serração e armazena a necessária, em casa.
Do mesmo “pranchão” (tábua em bruto) pode tirar duas ou três cangas, desde que pratique um bom aproveitamento da madeira, aproveitando as reentrâncias e convexidades de ambas.

J. Ruivo na sua oficina – Anos 80

(Cont.)

Fotografias – Cedência de Paulo Miguel Godinho

Ílhavo, 11 de Novembro de 2009

Ana Maria Lopes


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Alguns jugueiros da região lagunar (Parte II)


O primeiro de que tive notícia foi António Tavares de Almeida (o Soeco Velho), de Avanca, cuja obra foi continuada pelo filho, José Soeco (1897-1988), também já falecido, mas com quem ainda contactei nos anos 80, com cerca de noventa anos.
Ambos artistas famosos, decoraram muitos barcos na zona de Pardilhó, Bunheiro e Murtosa, deixando António Almeida (o Soeco) alguns vestígios no Museu da nossa terra:
- decoração de uma proa de barco moliceiro (actualmente, em reservas), 1935;
- nove painéis, em formato de quadro (59x 82cm), 1935, de uma grande beleza, simplicidade e ingenuidade, do espólio inicial do Museu – 1935, expostos na Sala da Ria.

Painel de bombordo – P. Soéco1935

BAMOS LA COM DEUS


A FAMA O LONGE TOA

Dois dos nove painéis do Soeco Velho – 1935


Pelos anos 80, tive oportunidade de visitar na sua rudimentar oficina, no Bunheiro, o Joaquim Tavares dos Santos, Ruivo de alcunha, nascido em 1944.
Constitui um exemplo flagrante da inter-penetração moliceiro/canga vareira, pois, para além da sua vida de lavoura, apanhava junco e moliço para uso pessoal. Também ia trabalhando nas reconstruções e “restaurações” dos moliceiros, como ele lhes chamava e…fazia cangas.

Apenas se dedica a esta actividade, nos tempos livres e de Inverno, quando o tempo não lhe permite outras ocupações. Aprendeu o ofício com o pai.

(Cont.)

Fotografias – Cedência de Paulo Miguel Godinho

Ílhavo, 6 de Novembro de 2009

Ana Maria Lopes
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A Muleta do Tejo


O livro A Muleta é uma edição conjunta da Câmara Municipal do Seixal/Ecomuseu Municipal e do Museu de Marinha, da autoria de Manuel Leitão, Ferdinando Oliveira Simões e António Marques da Silva.
Constitui um significativo contributo para a documentação, o estudo descritivo e a caracterização dos aspectos construtivos estruturais de uma embarcação que possui um enorme valor simbólico para as comunidades ribeirinhas do estuário do Tejo.
Depois de ter sido já lançado no passado dia 27 de Setembro no Ecomuseu do Seixal, vai ser apresentado, agora, no próximo dia 5 de Novembro, no Pavilhão das Galeotas, no Museu de Marinha, pelas 18 horas.

Capa do livro


Ao Sr. Dr. Manuel Leitão, que já não está entre nós, dedicado e douto colaborador do Museu de Marinha, autor de várias publicações, esta edição é também uma homenagem à sua memória, pela sua tão grande dedicação a assuntos desta natureza.

Ao pormenorizado estudo bem ilustrado com todas as imagens que foi possível reunir sobre a embarcação, juntaram-se vários desenhos de pormenor que facilitam o estudo e compreensão da operação e manobra do pano desta embarcação.

Um dos três modelos existentes no Museu de Marinha


Apesar da sua estranha, exótica e atraente forma do casco e do seu complicado aparelho vélico, a muleta é, a navegar, – e do que se pode concluir das muitas gravuras que chegaram até nós, uma embarcação elegante de boa manobra e rápida para os padrões da época.


Parabéns, pois, aos Srs. Comandantes Ferdinando Oliveira Simões e António Marques da Silva.
Das várias expressões artísticas que escolheram a muleta como fonte inspiradora, também o modelismo de embarcações em garrafas se inspirou nela.
Pelos anos 90, apareceu-me, cá em casa, o Sr. Capitão Weber Bela (1925 - 2008), amante da arte, com esta bonita peça, para me oferecer. E assim a guardo, com afecto, entre os meus objectos de colecção:

Muleta do Tejo – Weber Bela


Acautelem-se os amantes e estudiosos de embarcações da laguna de Aveiro, e não só, com a nomenclatura usada para as embarcações tradicionais. Passo a citar: “A muleta de pesca do Seixal, ou bateira, …(p. (8)”. Creio que não há nada melhor quando se nomeia uma embarcação tradicional, que essa nomenclatura seja aliada ao espaço geográfico onde é usada, bem como à função a que se destina. Para evitar tantas confusões.
O livro encontra-se disponível nas lojas dos Museus de Marinha e Ecomuseu Municipal do Seixal.

Imagens – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 2 de Novembro de 2009

Ana Maria Lopes