quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Homens do Mar - Mário Paulo do Bem - 15

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Na casa das máquinas do n/m Vimieiro. 1959
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Nestas notas biográficas, desta vez, vem à liça Mário Paulo do Bem, também conhecido por Mário Agualuza, por sua mãe se chamar Maria Agualuza Lau.. Ultrapassam-se, por vezes, umas relativamente a outras, das possíveis, só porque o material consegue chegar-me às mãos com mais facilidade. Sobretudo, o empréstimo de imagens, que, quando existem, não estão assim muito à mão, entre caixas, sótãos e baús. Mas, várias notas biográficas estão «na carreira». Um dia chegarão a bom porto.
Mário Paulo do Bem, natural de Ílhavo, nasceu a 16 de Agosto de 1907 e deixou-nos em 20 de Outubro de 1976.
Morador na dita Avenida dos Capitães, foi casado com a senhora D. Maria Fernandes Carlota do Bem, de quem teve três filhos, todos do meu conhecimento. Foi a Alcina Paula que me teve a gentileza de me emprestar algumas das últimas imagens e outras foram-me aparecendo, sei lá, noutros conjuntos de homens do mar em que se integrava.
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Encontro os seus primeiros registos de viagem, sendo possuidor da cédula marítima nº 17.045, passada pela capitania de Aveiro, em 1921, nas campanhas de 1936 e 37, no lugre-motor Cruz de Malta, sob o comando do meu Avô, Manuel Simões da Barbeira, de alcunha, Pisco. Destinos cruzados, com idades diferentes.
Pilotou de seguida, nas campanhas de 1938 a 42, o lugre-motor Labrador, ex-navio dinamarquês Lydia, construído em 1919, sob o comando de António Simões Picado.

A bordo do lugre Patriotismo, no Porto

Na imagem anterior, que me fascina, da esquerda para a direita, identificamos o capitão Jorge Trólaró do lugre Patriotismo, pelo final dos anos 30, Mário Paulo do Bem e António Simões Picado, respectivamente imediato e capitão do lugre Labrador, todos de Ílhavo.

A bordo do Labrador…

Sentado no convés, Eduardo Santos Labrincha, no albói, à esquerda, José Marques de Oliveira e Mário Paulo do Bem, piloto, à direita, com a bóia sobre os joelhos. De pé, o cozinheiro.
E ascendeu ao posto de capitão, nas viagens de 1943 e 44, no Neptuno 2º, lugre-patacho de madeira, construído em Vila do Conde, em 1873, reconstruído em 1926, por Manuel Maria Bolais Mónica, e armado em lugre, tendo feito a última campanha ao serviço da Parceria Geral de Pescarias, no ano de 1938. Quando foi comprado pela Empresa de Pesca de Portugal, Lda., de Ílhavo, da gerência de Francisco Abreu, para a campanha de 1939, passou a chamar-se Neptuno Segundo. Foi seu piloto na campanha de 44, Manuel de Oliveira Vidal Júnior, de Ílhavo, com quem voltaria a cruzar-se nestas andanças marítimas.
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Na campanha de 1945 seguida da de 46, teve o grato prazer de estrear o elegante e gracioso lugre-motor Maria Frederico, construído na Gafanha da Nazaré por António Pereira da Silva, também para a Empresa de Pesca de Portugal, Lda., de Ílhavo, com seca na Malhada, a antiga «seca do Abreu». Foi, de novo, seu piloto em ambas as campanhas, Manuel de Oliveira Vidal Júnior.
 
O Maria Frederico, em dia de bota-abaixo. Dezembro de 1944.

Em 1947, comandou o esbelto lugre com motor Groenlândia, ex-Viana, ex-lugre-escuna Groenlândia, reconstruído nos estaleiros de António Mónica, em 1940, para Armazéns José Luís da Costa & Cª Lda, cujo imediato era Joaquim Martins da Rocha, de Lagos. Em 1941, este lugre levou a bordo o jornalista Jorge Simões que viria a escrever Os Grandes Trabalhadores do Mar.

O Groenlândia em dia de bota-abaixo. 1940
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Comandou o lugre com motor, de madeira, Viriato, construído na Gafanha da Nazaré, em 1945, construído por Alberto Matos Mónica também para Armazéns José Luís Costa & Cª, Lda., com sede em Lisboa, durante as campanhas de 1948 até 1955 (inclusive). Nestes oito anos, foram diversos os imediatos que trabalharam com ele, tendo sido de Ílhavo, João Nunes de Oliveira (Codim), António Remígio Sacramento Teiga e Carlos Alberto Pereira da Bela.

Volta de mar no Viriato. Sd.

Nas campanhas de 1956, 57 e 58, comandou o Sernache, navio-motor, de ferro, construído na Holanda em 1948, para mesma empresa do Viriato. Foi sempre seu imediato, durante estes anos, Armando Gonçalo Nogueira, de Lisboa.
Na viagem de 1959, teve o prazer de estrear como capitão o navio-motor Vimieiro, construído nos Estaleiros de São Jacinto, de novo, para Armazéns José Luís Costa & Cª, Lda., com sede em Lisboa. Foi seu imediato João Augusto Ramos, da Gafanha da Nazaré e piloto João Sílvio Serrano Matias, de Ílhavo.
Os pilotos foram, respectivamente, Amândio Manuel da Rocha Pinguelo, de Ílhavo, Américo de Oliveira Nunes da Matta, de Lisboa e Manuel Seiça Filipe, de Ílhavo.
 
No Vimieiro, em dia festivo, no Tejo. 1959

Durante o ano de 1960, não foi à pesca.
Durante os anos de 1961 a 1965 (inclusive), comandou o Oliveirense, lugre-motor construído na Gafanha da Nazaré por António Bolais Mónica, em 1938 para a Empresa de Pesca do Bacalhau do Porto, Lda. Gémeo do Delães, na campanha de 1942, passou para a propriedade da SNAB.
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O Oliveirense, em Lisboa. 1950

No jornal da nossa terra de 10.8.1965, chegou a notícia de se ter incendiado nos Bancos da Terra Nova o lugre-motor Oliveirense, pertencente à Sociedade Nacional de Armadores do Bacalhau, sendo capitão Mário Paulo do Bem e, imediato, Manuel dos Santos Malaquias de Ílhavo. A tripulação, constituída por 52 pessoas, foi salva pelo n/m São Jorge e ter-se-á, deslocado, ao tempo, de avião para Portugal.
Em 1966 o nosso Capitão Mário comandou o Elisabeth, em 1967 e 1968 foi imediato do n/m São Jorge e em 1969 comandou o navio de comércio Julieta, com bandeira do Panamá, da Sociedade de Navegação Baltir, da gerência de Francisco de Abreu. O navio em 1970 ficou arrestado em Espanha.
Mais uma vida completamente cheia de mar, vivida no mar, muito longe dos seus familiares, acabando por viver em terra, no fim da vida, uma meia dúzia de anos. Era, assim a vida dos capitães ilhavenses.
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Fotografias – Arquivo pessoal e gentil cedência da Família do Capitão
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Costa Nova, 21 de Julho de 2016
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Ana Maria Lopes
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sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Homens do Mar - João Zagalo, um «doryman» aguerrido - 14

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Recorda o leme e o Novos Mares
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Há uma boa meia dúzia de anos, marquei um encontro na seca com João Teixeira Filipe, homem de boa têmpera, trabalhador e fiel à empresa para que trabalhou, durante 59 anos, desde 1943 até 2002.
João Zagalo (de alcunha), seu nome de guerra, nasceu na Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, a 28 de Agosto de 1924. Foi no início e crepúsculo da vida, carpinteiro naval, mas, no seu auge, foi um grande pescador do bacalhau, um audacioso, sabedor e afortunado homem do dóri. Tinha um certo orgulho nas categorias que teve a bordo e no apreço que capitães, colegas e empresa nutriam por ele.
Na vida do mar, teve sustos… era inevitável, mas talvez nenhum daqueles que marcam para toda a vida… Concordou com o facto de a pesca à linha ter sido uma profissão árdua, muito dura e perigosa, mas demonstrou saudades do mar, sobretudo do da Groenlândia, pelo muito peixe que lá se pescava e pelo tempo que lá fazia… – recordou.
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Começou, na adolescência, a aprender a arte de carpinteiro naval nos Estaleiros Mónica.
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Numa ocasião, o lugre Cruz de Malta estava em frente à empresa, virado à querena, para levar uma nova roda de proa, pois precisava substituída. O jovem Zagalo veio trabalhar para o navio, ao serviço do estaleiro, mas a vida do mar atraía-o e, assim, mudando para a carpintaria da seca, tinha a possibilidade de vir a embarcar. Ele e o Sr. António Cunha entraram em «acordo de cavalheiros», como era normal. E o João Zagalo veio trabalhar para a primitiva carpintaria da empresa com o saudoso Zé Vicente.
Mas o apelo do mar era mais forte. E o seu sonho cumpriu-se.
 
Novos Mares, na Groenlândia, em 1938
 
Em 1947, embarcou de moço no Novos Mares, lugre de quatro mastros, a que ele passou a chamar o seu navio; mas, no ano seguinte, já foi de verde (pescador que ia à pesca pela primeira vez), no mesmo navio e pescador maduro, especial, especial A, de aí por diante, até 1955.
De 1956 a 58, passou para o n/m São Jorge, que estreou e de que eu fui «madrinha», o que muito me marcou, pela positiva.

São Jorge, depois de ter descido a carreira
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De 1959 a 74 (inclusive), embarcou sempre no novo n/m Novos Mares, onde foi um óptimo e audacioso pescador. Nos serviços de bordo, como escalador, orientava a escala, tratando também cuidadosamente de todos os derivados: caras, línguas, samos e lombos.
Em viagem, no caso do n/m Novos Mares, fazia quarto com o Capitão, Sr. António Pascoal.
De moço, passou a verde e de verde a pescador especial (aquele cuja pesca ultrapassa os 200 quintais), estando sempre na categoria dos melhores pescadores do navio.
Depois da difícil viagem de 1974 e das greves de então, estava na altura de ficar em terra e aí, pela década de 90, muito contactei com ele, enquanto ia fazendo uns biscates na carpintaria, até 2002, ano em que se aposentou.
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Em conversa, recordou alguns episódios de bordo.
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A melhor viagem que fiz foi no São Jorge (ali pelo ano de 57) e foi mesmo a melhor do navio e a mais curta. Largámos a 31 de Agosto, viemos directos da Groenlândia e ainda fomos à feira de S. Mateus, em Setembro, em Viseu.
Era um bom navio. Dormia no beliche, à ré, e não fazia nenhuma «ringedeira» (barulho que os navios de madeira quase sempre faziam).
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Contou-me outra história, que lhe deixou saudades, passada em Agosto, na Groenlândia, no Novos Mares, com o Capitão Pascoal.
O navio deu uma emposta (mudou de sítio) para arriar mais cedo. Deu uma pesquisadela.
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Disse o Capitão:
– Para fora, não tem nada. Ide para o lado de terra!
 – «Vamos à vida, com Deus, vamos arriar!» – ordem do Capitão.
E a manobra do arriar começou.
Mostrou muito orgulho em ter sido chasman (presumivelmente corruptela do inglês lastman), pois orientava, com outro camarada, a manobra de arriar.
Deduzi que o chasman era o dono do último bote do cimo da pilha, que não se desarmava. Tinha de ser um homem responsável, com jeito, traquejo e muita prática. Havia um chasman em cada pilha, que ajudava a arriar e a içar os botes e era sempre o último a partir para a pesca, depois de ter orientado estas lidas.
Depois de ter botado as mãos no peitilho do avental para as aquecer, já que não trabalhava de luvas, – confessou-me – remei de cu p’rà ré e fui p’ra fora, para estar mais desempachado (livre, disponível).
Depois de ter largado o trole e quando o grampolim chegou ao fundo, começou a sentir bacalhau na linha do grampolim. Era muito bom sinal!

No meu dóri, era eu o capitão…recordava
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Recordou que acabara de largar, comera o pequeno-almoço que levava no foquim (peixe frito, pão e azeitonas), deixou passar uma hora e, em cada anzol, um bacalhau. Confessou-me que carregara até ao bico do bote.
Ainda carregou outro bote, mas, à terceira vez, já não deu nada.
Era peixe a meia água, que passou e não voltou. Assim acontecia tantas vezes! – reviveu.
Este relato mostra a instabilidade, a precariedade e incerteza desta vida.
Mas o João Zagalo não o esqueceu.
Trabalhou com os capitães João dos Santos Labrincha (Laruncho), de 1947 a 49 e de 1956 a 58, José Simões Bixirão (Ponche), de 1950 a 55, Weber Manuel Marques Bela, em 1959 e 60 e António de Morais Pascoal, de 1961 a 1974.
Recordou alguns camaradas de faina, tal como o Manuel Pinto (1923-2004), de Ílhavo, contramestre, também muito bom pescador e trabalhador fiel da casa, para a qual foi fazendo uns trabalhos específicos de marinharia, quase até ao fim dos seus dias.
Senti que, longe de aborrecer o João Zagalo, consegui proporcionar-lhe uma tarde agradável, cheia de recordações, duras recordações, mas, para ele, compensadoras.
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Foi com enorme orgulho que a Confraria Gastronómica do Bacalhau prestou a simples homenagem a este Lobo do Mar, em Janeiro de 2011, de o tornar Confrade de Honra, representando, pois, tantos outros que passaram anonimamente pela Faina Maior e ajudaram a escrever páginas da história deste concelho marinheiro e de Portugal. Terminou os seus dias em 10 de Dezembro de 2014.
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Fotografias – Arquivo pessoal da autora
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Ílhavo, 25 de Maio de 2016
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Ana Maria Lopes
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