quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O meia-lua: da praia para o Museu?...



Da praia para o Museu?

Meia-lua – Costa da Caparica – Anos 60



Museu de Marinha – Saveiro da Costa da Caparica



O meia-lua da Costa da Caparica, também conhecido pelo nome de saveiro e barco da arte era o barco usado na Caparica para a arte xávega, que lembra pelo seu arqueado e pela quase igualdade das bicas uma meia-lua perfeita. Manuel Leitão define o meia-lua como sendo mais pequeno que o barco do mar, com fundo chato, mas com um tosado importante, que o levanta numa curva bastante acentuada até às rodas de proa e de ré, produzindo o perfil característico em crescente, que dá à embarcação o seu nome.

Actualmente, esta embarcação embeleza a galeria exterior do Museu de Marinha, conducente ao Pavilhão das Galeotas. Mede de comprimento 8,50 metros, de boca 2,40 m. e de pontal 0,80 m. Existia um meia-lua, em tudo idêntico, no Museu de Exeter (Anos 90).

Expor, em seco, embarcações em salas ou galerias de museus é um dos meios de preservação de embarcações tradicionais. Satisfaz? Vantagens, terá sempre bastantes. É melhor do que nada. Quais as desvantagens? Imaginamo-las rapidamente. Poderia o país ter perseverado a quantidade interminável de embarcações tradicionais que possuíamos, desde a orla marítima, às fluviais ou às estuarinas?

Seria viável e auto-sustentável tal procedimento? Ou deveria ter sido necessário ir definindo ou definir ainda critérios de validação?

Para conhecer a riqueza do país marítimo que fomos e o que nos resta, poderá assistir no MMI. ao lançamento do livro REGRESSO AO LITORAL – Embarcações Tradicionais Portuguesas, editado pela Comissão Cultural da Marinha, pelas 17 horas do próximo sábado, dia 29 de Novembro.

A apresentação da obra estará a cargo do Comandante Rodrigues Pereira, Director do Museu de Marinha. Participará na sessão o Presidente da Comissão Cultural da Marinha, Almirante Rui de Abreu.

Imagens – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 26 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes



quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Regresso ao Litoral - Embarcações Tradicionais Portuguesas




O trabalho tem como objectivo uma (re)visitação do litoral, com base nos inquéritos in loco, levados a cabo nos anos 60, que deram origem à minha tese de licenciatura “O Vocabulário Marítimo Português e o Problema dos Mediterraneísmos”.
Repeti, então, para minha recreação, a visita ao litoral pelos anos 80, tendo guardado religiosamente o material, escrito e fotográfico, versando, sobretudo, e só, as embarcações “tradicionais”.

Actualmente, no 1º decénio do ano 2000 (2006/2007), séc. XXI, era altura de levar a cabo uma terceira geração de trabalho de campo, para constatar, praticamente, a "morte" anunciada das ditas embarcações tradicionais marítimas.

São intervenções que distam umas das outras 20 anos, que permitem tirar algumas conclusões, sempre tendo como termo de comparação a obra-base de Baldaque da Silva “Estado Actual das Pescas em Portugal”, de 1891.

Presentemente, senti que o que havia a fazer era percorrer incessantemente todo o litoral para recolher documentalmente um ou outro exemplar, quase todos embarcações miúdas, fotografá-las (é o mínimo que se pode fazer), descrevê-las, medi-las, para que a sua memória perdure e haja elementos para se reconstituírem, se para tal houver interesse. Sobretudo, divulgá-las. Num quotidiano em que as comunidades cada vez mais voltam as costas ao mar, a cultura marítima corre o risco de se perder.

Algumas associações e instituições de defesa do património marítimo lutam com este problema.
O que nos resta fazer perante este panorama?

Contracapa



Colocam-se algumas hipóteses possíveis e viáveis, sujeitas a análises e reflexões, de recuperação de embarcações:

- Devemos e podemos voltar a construir essas embarcações recuperando os modelos, as formas e as técnicas de construção naval, isto é, as tais réplicas navegantes, como os casos da lancha poveira do alto, a “Fé em Deus”, da Póvoa de Varzim, da catraia de Esposende, de algumas embarcações do rio Tejo, recuperadas por Câmaras ribeirinhas (a Câmara do Seixal é emblemática, neste capítulo) e do caíque de Olhão recuperado pela Câmara Municipal de Olhão, em 2002?

- Devemos musealizá-las, como é o caso do Museu Marítimo de Ílhavo com as embarcações da Ria e do Museu de Marinha de Lisboa, com diversos tipos recolhidos e expostos em seco, para citar dois dos casos que me são mais familiares?

- Devemos utilizá-las como elementos decorativos em rotundas ou centros comerciais, com toda a exposição ambiental a que estão sujeitas?

- Devemos promover a sua utilização, mantendo-as operativas, nem que seja numa actividade subsidiária, como o caso das regatas dos moliceiros da ria de Aveiro e outros exemplos?

- Ou simplesmente, devemos estudá-las e divulgá-las, utilizando software informático, mostrando as virtualidades deste tipo de representação computorizada, a chamada reconstrução virtual em 3 D?

Depois da apresentação pormenorizada e documentada do material recolhido nas três épocas, expomos as principais conclusões a que chegámos (160 páginas de texto, a duas colunas, 140 fotografias e nove planos de embarcações.

E editora? Pela experiência que vamos tendo, sabemos que não é tarefa fácil. Com o trabalho praticamente terminado, quase nem queria acreditar que as Edições Culturais da Marinha tivessem englobado esta obra no seu plano editorial de 2008. Assim foi e os prazos cumpriram-se. Muito trabalho, muita ansiedade, alguns pequenos dissabores, que foram ultrapassados. Tarefa cumprida. Mais um sonho, que, com paixão e muito trabalho, se tornou realidade.

Capa

O lançamento da obra será no próximo dia 24 do corrente mês, em Lisboa, no Museu de Marinha, no Pavilhão das Galeotas, pelas 17 horas e 30.
A apresentação da obra estará a cargo do Professor Doutor Álvaro Garrido, Director do Museu Marítimo de Ílhavo.

Fotografias – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 20 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

PAINÉIS DE MOLICEIROS . 2





O espaço central do painel ocupa lugar privilegiado, pois é aí que os artistas têm expressado ao longo dos tempos um vasto repertório de imagens e acontecimentos.
Os elementos humanos masculino e/ ou feminino de vários estratos sociais são dos mais retratados, em corpo inteiro ou em meio corpo.


Fernando Pessoa - Anos 80



Habitualmente, a figura em meio corpo é escolhida de preferência para a personagem de carácter histórico-patriótico: Luís de Camões, Fernando Pessoa, D. Dinis, Infante D. Henrique, Vasco da Gama, João Afonso de Aveiro e tantos outros.


Infante D. Henrique - Anos 80


As figuras, normalmente, assentam num fundo azul claro ou branco. Quando o espaço é todo ocupado, o cenário tem vindo a pormenorizar-se. Por baixo, a legenda séria e adequada, sobre fundo, normalmente, branco ou róseo, completa sempre o conjunto pictórico.



João Afonso de Aveiro - Anos 80



Na galeria de figuras histórico-patrióticas, desde Afonso Henriques, até Américo Tomás, ao General Eanes e António Guterres, têm passado as mais variadas. Neste tema, as decorações deste ano não apresentaram grandes novidades.

Foi com satisfação que soube que, no âmbito do Colóquio Internacional “Octávio Lixa Filgueiras”, será lançado o livro de Clara Sarmento, Cultura Popular PortuguesaPráticas, Discursos e Representações, dedicado à cultura popular da Ria de Aveiro e à etnologia do barco moliceiro, que terá lugar no MMI, no dia 17 de Novembro, pelas 18 horas. Nunca serão demais publicações deste teor. Parabéns à Autora.



A821M – Sou bela e sinto-o por ser bem portuguesa - Anos 80


Ler mais aqui

Fotografias – Cedência de Paulo Miguel Godinho

Ílhavo, 13 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes


domingo, 9 de novembro de 2008

O palhabote Santa Eulália


Depois do triste fim do Novos Mares, dêmos boas notícias no que toca à preservação de navios. O Santa Maria Manuela já tem os seus quatro mastros hirtos e altaneiros, dando-lhe cada vez mais a traça original, de 1937, aquando do seu nascimento. Ainda faltam brandais, enxárcias e mastaréus, mas lá chegaremos. Está quase.
Ver Santa Maria Manuela.


O palhabote Santa Eulália, onde estive, há dias, no Tejo, e que visitei atentamente, salvou-se das garras da demolição, sendo actualmente pertença do Museu Marítimo de Barcelona. Foi nessa qualidade que esteve presente em Lisboa, pela primeira vez, atracado na Doca da Marinha, vindo de Barcelona, no âmbito da organização do XIV Fórum sobre Património Marítimo do Mediterrâneo e do 10º aniversário da Associação dos Museus Marítimos do Mediterrâneo, de que o Ecomuseu Municipal do Seixal faz parte.
A comemoração do acontecimento teve direito a bolo de aniversário e tudo, com dez velinhas sopradas a bordo, e parabéns a você.

Os palhabotes, últimos veleiros do Mediterrâneo, são embarcações com casco de madeira e aparelho de escuna, que se utilizavam como cargueiros.


Detalhe do aparelho, em material clássico



Este tipo de veleiros foi amplamente adoptado, em finais do século XIX, pelos armadores espanhóis que procuravam um tipo de barco pequeno, rápido e de tripulação reduzida.

O palhabote de três mastros Cármen Flores foi construído na praia de Torrevieja (Alicante) pelo carpinteiro naval António Marí Aguirre. O armador que o mandou construir foi o comerciante valenciano Pascual Flores, que encomendou a construção de duas embarcações que tinham que ostentar o nome dos seus filhos, Pascual e Carmen.
Em 1918, foi lançado o Pascual e, durante esse ano, também se concluiu a construção do Cármen Flores, apesar de só ter sido lançado à água nos primeiros dias de 1919. Conta 90 anos.

Em 28 de Dezembro de 1918, o navio recebeu a sua licença de navegação e desde o seu primeiro dia no activo, sob a propriedade de Pascual Flores, o barco dedicou-se ao transporte de mercadorias, especialmente cereais, madeira, sal e minério.

Em 1921 realizou a sua primeira viagem à América, levando sal e trazendo cereais, saindo de Alicante e Manzanillo e Santiago de Cuba, para voltar, finalmente, ao porto de Barcelona. Esta primeira aventura transoceânica deu lucros suficientes para amortizar o custo total da construção do barco, os gastos da travessia e os salários dos marinheiros. As suas qualidades de veleiro eram tais que rapidamente ganhou a alcunha de El Chulo (O Bestial).

Em 1931, foi adquirido por Jaume Oliver, armador maiorquino, que lhe mudou o nome para Puerto de Palma e lhe instalou motor. Também lhe retirou o mastro da mezena.


Mastro da mezena



Em 1936, passou para as mãos da companhia Naviera Mallorquina, que o rebaptizou com o nome de Cala San Vicens.



Em viagem



Como Cala San Vicens, navegou até 1975, quando foi adquirido pela empresa Sayremar, que se dedicava a trabalhos subaquáticos e de salvamento. Normalmente rebaptizado, agora com o nome de Sayremar Uno, o velho barco levou a cabo todo o tipo de tarefas para a mencionada empresa e para outra similar, até 1996.

Finalmente, em Janeiro de 1997, foi adquirido pelo Museu Marítimo de Barcelona, tendo sido sujeito a trabalhos de restauro e reconstrução, com o recurso a materiais o mais tradicionais possível. Foi rebaptizado com o nome da co-padroeira de Barcelona, Santa Eulália, tendo iniciado a sua função, oficialmente, em Abril de 2001. Esta reconstrução de um navio histórico foi uma operação pioneira em Espanha, já que pretendia ser um primeiro passo na recuperação do seu valioso património flutuante.

O palhabote custa ao Museu, por ano, com todas as suas despesas, 500.000 euros, praticamente, sem retorno financeiro. No entanto, funciona como o grande embaixador do MM de Barcelona, na bacia do Mediterrâneo. É também uma peça fundamental do museu, em todo o tipo de programas educativos e actividades pedagógicas e cívicas relacionadas com o mar. Existe até um bilhete conjunto que prevê a entrada no Museu e uma visita ou passeio no Santa Eulália. Durante a estadia em Lisboa, recebeu visitas gratuitas, individuais ou de grupo.

Algumas características técnicas:

Ano de construção: 1918
Construção: Estaleiros Marí, em Torrevieja (Alicante)
Tonelagem bruta: 167 toneladas
Comprimento total: 34 m (46 m, incluindo o gurupés)
Boca máxima: 8,5 m
Pontal: 4,60 m
Superfície vélica: 516 m2 (11 velas)
Altura dos mastros a partir do convés: 27 m
Motor: Volvo Penta 367 cavalos
Tripulação normal: 6 elementos (comandante, contramestre, três marinheiros e motorista), acrescida de mais dois tripulantes, nesta viagem
Lotação máxima autorizada: 30 pessoas

Imagens – Arquivo do M.M. de Barcelona

Ílhavo, 9 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Triste fim, o do Novos Mares...




O berço de um barco é a carreira do estaleiro e a sepultura mais digna é o fundo do mar, a que ele pertence. Sem perda de vidas, entenda-se…

Ora o Novos Mares, em 1974, depois de ter passado o 25 de Abril ancorado no Tejo, ainda seguiu para a Terra Nova, ano difícil para a campanha do bacalhau. Regressou em fins de Julho por ordem da Secretaria de Estado das Pescas, uma vez que se haviam malogrado todas as tentativas de conciliação com os tripulantes, que reivindicavam melhores remunerações e outros benefícios.
Tornara-se um navio-histórico, pois fora o último barco da chamada Frota Branca a navegar no estreito de Narrows, com os seus dóris cautelosamente alinhados no convés (in Disasters & Shipwrecks of Newfoudland and Labrador, Vol. 3, de J. P. Andrieux, pp.121 e 122).


Dóris empilhados no convés



Já em viagem para Portugal, a cerca de 150 milhas de St. John’s, socorreu o São Jorge, com incêndio declarado a bordo, tendo recolhido toda a tripulação. Por excesso de peso, voltou a S. John’s, para a deixar, fazendo-se, de novo, rumo ao seu país.
Foi ainda, depois disso, transformado em navio com redes de emalhar com lanchas.

Passados uns três anos, o caminho errante do Novos Mares começara…


Mais parece um navio-fantasma…



Em 1977, foi adquirido pela Cooperativa de Produção Ria de Aveiro, tendo sido vendido em praça, em 1980, à Sociedade de Pesca Alavarium; mais tarde, passou para a propriedade de Brites, Vaz e Irmãos. Em 1986, por despacho da Secretaria de Estado das Pescas, foi excluído da frota pesqueira.
Em Janeiro de 1991, a empresa proprietária ofereceu o Novos Mares à Secretaria de Estado das Pescas, para fins museológicos. A localização do “navio transformado em museu” foi uma guerra incessante entre diversas personalidades, sem que nunca a S.E.P. tivesse posto o preto no branco.
Após alguns impasses e decisões definitivas não tomadas, o navio assentou no fundo da ria, em Fevereiro e, de novo, em Dezembro de 1992.


O navio semi-afundado



Foi-se degradando, recaindo os custos da reparação em cima da empresa doadora.
Um rombo no casco foi a última machadada na “bonita atitude do doador”: o Novos Mares ia ser desmantelado. Já lá ia uma indefinição de quase três anos.


O desmantelamento. 10.2.1994



Embora a viabilidade da musealização não fosse muito exequível e o tipo de navio não o justificasse plenamente, é sempre desagradável e degradante assistir a um espectáculo destes. Num bonito e solarengo dia de Inverno, lá fomos, o Francisco e eu, apreciar o bom estado de conservação das madeiras.

Durante o desmantelamento. Fevereiro de 1994



Perante o bom estado da madeira, achámos oportuno, com a colaboração da Associação dos Amigos do Museu, recolher alguns pedaços do casco desse navio, pois, à data, já era o último da valente estirpe dos construídos em madeira em estaleiros portugueses, com as dimensões que se atingiram nos Estaleiros Mónica.
Com pena de, até à data, não termos conseguido, por razões de vária ordem, levar a bom termo a ideia inicial, e tendo estes destroços, quer os que estão junto ao esteiro da Malhada, quer os do Largo fronteiro ao Museu, um aspecto pouco digno, perguntámos a opinião ao Amigo Marques da Silva, expert nestes assuntos de reconstrução e preservação, que nos disse:


O nosso Amigo Francisco Marques e outros colaboradores conseguiram deslocar, com enorme esforço e dedicação, esses pedaços do casco do Novos Mares até Ílhavo. Estou certo que quem tanto trabalhou e lutou para que essas belas peças, únicas no mundo de hoje, chegassem até cá, foi, certamente, com grande desgosto que nos deixou, vendo-as abandonadas como ainda se encontram, à espera que o tempo as consuma.



Pedaços do casco do Novos Mares. 2008



Mas ainda tenho esperança de que com os meus lamentos possa comover quem, de direito, volte a reparar nelas, arranjando-lhe um lugar adequado, onde seja possível ver e apreciar tão belo trabalho. Era, ao menos urgente, que fossem levantadas do chão para arejarem e se lhes mandasse dar cuprinol e carbonil, como sempre receberam, no estaleiro, para sua conservação.
Tenhamos esperança!

Algumas novidades! O guincho do Novos Mares, após ter sido restaurado, já foi reutilizado no Santa Maria Manuela.
Parece também que há boas notícias, por parte da Direcção do Museu, ainda não confirmadas. Aguardemos.


Fotografias – Arquivo pessoal da autora, do Comandante A. São Marcos e de Carlos Duarte

Ílhavo, 5 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes



sábado, 1 de novembro de 2008

Entrada do N/M Novos Mares - Campanha de 1964


A entrada do n/m Novos Mares, em 1964, para mim, teve um sabor especial.
Desde que me lembro, sempre fui assistindo à entrada dos navios de bacalhau, pelo menos, os pertencentes a Testa & Cunhas, com toda a carga emotiva que acarreta.

Na Meia-laranja, as mulheres, saudosas, ansiosas e adornadas nos seus mais domingueiros trajares, bem arreadas de ouro, esperavam os seus homens, que, na proa do navio, acenavam, igualmente comovidos, e ansiosos por calcar terra firme e por abraçá-las a elas e aos filhos, que, por vezes, ainda nem conheciam. Haviam nascido na sua ausência! Que longos seis meses!

Nesse ano, decidi passar para o lado de lá e ter uma perspectiva diferente da entrada de um navio.

Numa manhã setembrina, de ria calma e envolta numa doce neblina, embarquei no Cais dos Bacalhoeiros na lanchita da Empresa, conduzida por um fiel servidor da casa, o Zé Vicente.

Propunha-me fazer um documentário, filmado, em 8 mm (era o que se usava, então), com a minha maneirinha Bell & Howell.

Tem tudo menos grande qualidade, mas fez já 44 anos e foi filmado com grande ternura e curiosidade. Desculpem, pois, as imperfeições e apreciem os aspectos positivos. Além de não ser “profissional”, ainda tive o azar de ter de fazer a inversão obrigatória do filme, exactamente, no momento em que o Novos Mares se aproximava e nos ultrapassou. Mesmo assim, valeu a pena.

Na viagem para a boca da Barra, passaram, por nós, traineiras, pujantes mercantéis à vela, graciosos e esbeltos moliceiros, quer à vela, quer à vara, a abarrotar com elevadas marés de moliço, bateiras berbigoeiras, para não falar de dragas e navios de carga, que não me despertam tanto a atenção.

O nevoeiro lá fora, adensava, mas, por bombordo, avistava-se, altaneiro, o nosso Farol riscado de vermelho e branco.

Pela frente, o navio, imundo, bem surrado e bem pesado (tinha sido um dos melhores anos de pesca), saúdou a população no seu silvo roufenho e profundo! Já entrou a barra e dirige-se a S. Jacinto. Eis que se lê, à popa: NOVOS MARES – AVEIRO.

Saltei para bordo.

Não tinha olhos para tanto movimento e estrafego!

Os pescadores, já bem lavados, barbeados e aperaltados, aguardavam, pelo convés, que era exíguo, para tanta tralha: sacos de lona das suas roupas, uma golpelha ou goropelha algarvia, barricas que levaram 30 litros de vinho e traziam caras, samos e línguas (a caldeirada dos pescadores), bidões de óleo, gasóleo e óleo de fígado de bacalhau (brrrr!), sessenta e seis dóris atulhados de panas, bancos, ferros, remos, forquetas, etc., distribuídos por dez pilhas, para sessenta e quatro pescadores.

Entrou para bordo o encarregado da Alfândega, que marcava os sacos, um a um, a giz vermelho.

De S. Jacinto, em bateiras, chegavam famílias de pescadores, de lá naturais, para aquele forte abraço entre marido e mulher e entre pais e filhos!
O imediato, à época, Tibério Paradela, junto da escada de portaló dava andamento às diligências necessárias.
Por estibordo do navio, atracaram dois possantes mercantéis, para onde eram arriados, por um sistema de teques, os sacos já inspeccionados. Pertenciam aos pescadores que moravam em localidades cujo acesso era fácil através da ria: Murtosa, Gafanha da Encarnação, Costa-Nova, Vagueira e outras.
O Capitão, António Morais Pascoal, pomposamente fardado, localizado na asa da ponte, controlava todo o movimento do convés, assim como supervisionava manobras e alcançava o horizonte com amplitude.
Chegada a hora conveniente da maré, o rebocador procurou posição e passou ao navio o cabo de reboque.
Começara, para mim, a grande viagem de S. Jacinto até à Gafanha da Nazaré!

Avistam-se as instalações da seca, já parcialmente remodeladas.

Homens, em botes, auxiliam, a atracação do navio, à proa e à popa.
Entretanto, o guarda-livros e auxiliar entram para bordo, para procederem ao pagamento dos salários, de acordo com a informação de pescado previamente fornecida pelo capitão.
No cais, as famílias, que, entretanto se deslocaram da Barra para a Gafanha, esperavam com ansiedade, os seus entes queridos. Ei-los que começam a sair, bem preparados, aos poucos, em botes, normalmente com duas lembranças, uma em cada mão, quase sempre do mesmo género: um Cristo luzente e cintilante para a parede do quarto e uma boneca, bem vistosa, para a sua menina, de quem tinham tantas saudades!


Agradeço ao amigo Tibério Paradela que, gentilmente, me tirou algumas dúvidas, bem como ao Sr. Capitão Pascoal que, com os seus 85 anos, me foi explicando, pacientemente, ao visionar o filme, a sequência das acções. Também consegui proporcionar-lhe uns agradáveis momentos, já que não sabia da existência de tão modesto documentário!

Saboreiem-no, pois, que vale a pena, apesar de alguns evidentes defeitos!


E assim terminou a campanha de 1964 do n/m Novos Mares, com um dos melhores carregamentos!


Filme – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 1 de Novembro de 2008

Ana Maria Lopes