sábado, 16 de fevereiro de 2019

Homens do Mar - Cap. Francisco Leite - 53


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Cap. Francisco Leite

Numa tarde cálida de fim de Agosto, soalheira, luminosa, de maré cheia, eis que se plasma, longínqua, no horizonte, a imagem de um barco à vela, impulsionado por uma brisa suave e mansa, na Costa Nova. De casco envernizado, de linhas quebradas, dá pelo nome de OK (apa), duas letras também estampadas a negro, na vela branca, alumiada pelo sol poente reflectido na Gafanha da Encarnação. É o dono eterno deste barco que, hoje, vem à baila, em Homens do Mar, a que, aos poucos, venho dedicando algumas horas do meu trabalho e do meu lazer.
Além dos dados, que, oficialmente, pude recolher, dos que tenho conhecimento, foi a filha Teresa que, amavelmente, me cedeu alguns materiais que foram do pai e que conversou comigo, entusiasmada, saudosa e exuberante.
Sempre aliei o nome do Cap. Chico Leite à pesca do bacalhau, porque foi, sobretudo, no Museu de Ílhavo que mais contactei com ele e muitas vezes lá foi, como amigo do Cap. Chico Marques, também. Por lá aparecia, com frequência.

Apenas durante 11 anos foi homem dos bacalhaus, se bem que tenha comandado durante bastantes mais anos, outros e diversos navios.
Sempre viveu entre mar e ria e dentro ou perto de navios e embarcações.
Francisco Manuel de Oliveira Leite, filho de José Gonçalves Leite Júnior e de Alzira Teiga Leite, nasceu em Ílhavo, a 27 de Agosto de 1929, um de três irmãos, no masculino e no feminino, tendo sido José Teiga Gonçalves Leite, irmão mais velho, digno oficial da Marinha Mercante.

Do casamento em 6 de Dezembro de 1958 com Joana Maria Peixe Rodrigues, nasceram duas filhas, a Ana Margarida e a Teresa Paula Leite.
Francisco Leite era portador da cédula marítima nº 116.148, passada pela Capitania do Porto de Lisboa, em 16 de Junho de 1949.
O facto de ser de Ílhavo, os genes familiares eram o suficiente para o terem levado para a Escola Náutica. Pertenceu a uma última geração de capitães-pescadores, que não acabou a sua vida profissional, na pesca do bacalhau, tendo-lhe dado, posteriormente, outro rumo.
A sua primeira viagem ao mar, em 1950, foi no arrastão Fernandes Lavrador (já citado), da praça de Lisboa, como praticante de piloto, apenas na 2ª viagem, sob o comando do ilhavense Fernando Oliveira da Velha.

Junto ao arrastão Fernandes Lavrador, à esquerda, em 1950

Na campanha seguinte, de 1951, fez-se ao mar como imediato do belo lugre-motor Hortense, sob o comando do Cap. João Simões Chuva, o Anjo, também de Ílhavo.

A bordo do Hortense, entre a filha e a mulher do capitão

E chegou o ano de 1952 para rumar, de saco e enxoval, ao convés do navio-motor de ferro, da praça de Viana, São Ruy, (já citado) onde ocupou o cargo de piloto, tendo como capitão, José Pelicas Gonçalves Bilelo e imediato, João Araújo, de Viana do Castelo. Nos anos de 53 e 54, assim se manteve a oficialidade, com pequenas alterações – o capitão, sempre o mesmo, Chico Leite alternou o cargo de piloto com o de imediato, em 1953, sendo piloto, Orlando Brandão Vidal, nesse ano.
Chegou-me às mãos uma relíquia da viagem de 1952, no São Ruy – agenda pessoal, pormenorizada, escrita pela mão do piloto.
Li-a com muito interesse e entusiasmo, como é natural. Dela respiguei algumas notas, porque confirmavam o que já sabia, ensinavam-me o que desconhecia e descreviam alguns incidentes e decisões a bordo, na perspectiva do piloto, não sendo um diário oficial.

Boas amizades, a bordo… 1952

Pelo que li, os tempos mortos em Lisboa, eram ocupados com idas ao cinema, ao teatro e até ao futebol e com algumas compras para a viagem. Com frequência, oficiais amigos encontravam-se para almoçar, por vezes, também, com representantes oficiais das pescas. E seroadas também se faziam, entre uns cálices de licor e umas conversas. Neste caso, o relacionamento era mais entre oficiais do São Ruy, do Adélia e do Sotto, namorando, na altura, o Chico Leite com a Rosa Maria Vaz, filha do Cap. José Vaz. E assim se ia aproximando o dia da Bênção.
A 24 de Maio, depois da pesca da Terra Nova e de uma estadia de 8 dias em St. John’s, em que meteram isco, saiu o São Ruy para a Groenlândia. Os ditos apontamentos sempre referem as condições de tempo e mar, a hora dos Louvados, que oscilava entre as 4.00 h e 4 e meia, a distribuição do isco, a hora da chamada, o términus da escala e considerações sobre a quantidade e qualidade de peixe pescado. Em dias de brisa e foram alguns, não se arriou e aconteceu chegar a distribuir-se o isco e voltar a ser recolhido – o isco era um bem precioso, que tinha de ser tenteado – por brisa ou informações de mau tempo. Também as empostas feitas foram anotadas.
Durante os dias de pesca na Terra Nova, algumas notas dignas de apreço:
No dia 29 de Abril, à vista, estavam o Madalena, o Conceição Vilarinho, o Milena, o Inácio e o Argus.
Em dias de brisa, depois de acauteladas algumas situações no navio, o imediato deitava-se a ler, para além de alguns dias em que conversavam no salão ou no camarote do capitão.
No dia 17 de Maio, pelas 12 horas, com os botes já todos a bordo, suspenderam e foram para St. Jonh’s. Más condições de tempo.
No dia 18, pelas 21.00 h, meteram piloto e às 2 1e 15, atracaram.
Cerca de oito dias em terra, com afazeres diversos, – algumas compras, visitas a famílias amigas, idas aos «habituais clubes», recepções a bordo, jogatanas de futebol no cais. No dia 22, começaram a meter isco e a 24 de Maio, saiu, então o São Ruy para a Groenlândia.
(…)
No dia 29 de Maio, navegavam com bom tempo e mar. Às 12.00 h, começaram a avistar-se algumas ilhas de gelo pela proa. Às 18, veio muita névoa e às 21,45, pararam por ser perigoso navegar com névoa, por meio de ilhas de gelo.
No dia 30, o piloto fez o quarto com o navio parado, mar estanhado e névoa fechada. As informações de pesca eram péssimas. Das 11 às 13.00 h, passaram por diversos campos de gelo, qual deles o mais fechado. Meteram-se por meio deles por causa da névoa e viram-se obrigados a passar por um buraco, onde mal cabia o navio. Avistaram-se focas, sobre várias ilhas de gelo.
No dia 31 de Maio, com bom tempo e mar, iscaram-se, ontem, os «trawls», pelo que arriaram cedo.
Apesar disso, não pescaram nada e, por isso, também arriaram cedo. Pesca nula. Estavam na beirada de SW do Fiskenaes, onde, este navio, no ano passado, apanhou muito peixe. Como a falta de peixe é geral, supõe-se que o bacalhau ainda não entrou nos bancos, devido à baixa temperatura a que está a água.
No dia 1 de Junho, ouviram a «hora da saudade» da Gafanha, que se ouviu bem. Falaram alguns conhecidos.
No dia 6, deram uma trawlada e voltaram para bordo.  O peixe pescado não chegou para a cozinha.
No dia 7, fizeram nova emposta para o Fiskenaes, onde havia umas amostras de peixe.
Entre dias de má pesca e outros de melhor, com botes a aliviar, com algumas empostas, lá se foi passando a estadia na Groenlândia, com várias notas de relevo:
No dia 17, pelas 10.00 h, chegaram alguns botes para aliviar. Acabou a escala às 20 horas. Foi dos melhores dias de pesca.
No dia 19, acabou a escala, às 24.00 h.
No dia 20, ficaram satisfeitos com a pesca.
No dia 14, souberam que naufragou, por incêndio, o Maria Frederico, salvando-se toda a tripulação.
No dia 19, assistiu-os o Gil Eannes, trazendo cartas, encomendas e batatas.
No dia 22, havia mais peixe à zagaia do que ao trawl e melhor.
No dia 23, a pesca foi feita, a maioria, à zagaia. Acabou a escala às 2 .30 h da madrugada, pelo que foram postos chapéus de luzes, pois os escaladores já não viam.
No dia 29, o piloto fez a folha de pesca. Antes de jantar, fez os curativos e deu corda aos cronómetros.
No dia 1 de Agosto, botes a aliviar. De tarde, houve caçada e o piloto arriou para apanhar os pombaletes mortos.
No dia 11, houve boa pesca, tanto à zagaia, como como ao trawl.
No dia 15, soube-se ter desaparecido o contramestre do Dom Denis. Troca de botes, relativamente aos navios de origem. Troca de mantimentos e materiais de pesca entre uns e outros, se possível. Música, por vezes, na escala.
No dia 29, o cap. aguentou pela Groenlândia e não foi para a Terra Nova. O Sotto largou, carregado e outros.
No dia 31, o Chico Leite ouviu a Hora da Saudade, de Ílhavo. Falou a D. Manuela, a sua irmã e o Cap. Aquiles.
No dia 4 de Setembro, ao almoço, soube que o Rio Caima tinha água aberta. Todos os navios do Fyllas se concentraram. Houve esperanças, mas, às 17 h 30, o cap. Júlio (Machado Redondo) resolveu abandonar o navio. Vieram para o São Ruy 14 homens, incluindo o capitão. Os últimos a abandoná-lo incendiaram-no.
No dia 5, o Capitão Júlio mais bem-disposto. Chegou o Estêvão, que levou os náufragos do Caima para Portugal.
No dia 7, ao almoço, soube que o Senhora da Saúde do cap. José Augusto Machado dos Santos, estava a fazer água e em vias de ir ao fundo. À tarde, houve uma reunião de capitães que resolveram afundá-lo. O António Coutinho recolheu os náufragos e ia trazê-los para o Fyllas.
No dia 9, para o São Ruy, vieram 28 homens. Guardou-se peixe para a viagem, no frigorífico. Alguns homens do Saúde ajudaram à escala.
No dia 11, caiu bastante «snow», ao arriar os botes.

Dóris com «snow».  São Ruy. 1952

Preparou-se o navio para a viagem, que iniciou às 18.00 h.

O amigo Chico Leite continuou como piloto do São Ruy, até 1954, alternando o cargo com o de imediato, na safra de 1953, sempre sob o comando de José Pelicas Gonçalves Bilelo.

 
A bordo do São Ruy, em 2º plano, à nossa direita. 1953

E numa «emposta», desta vez, para o navio-motor de ferro, Sam Tiago, construção dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), em 1955, para a Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau (SNAB), nos anos de 1955, 56 e 1957, sob o comando de seu irmão, José Teiga Gonçalves Leite, estreou-o como imediato, com o piloto Orlando Brandão Vidal, em 1955, Samuel Guerra Tavares Maia, em 1956 e Amândio Manuel da Rocha Pinguelo, em 1957.
  
A bordo do Sam Tiago, ao centro, com Orlando Vidal. 1955

E nos anos de 1958, 59 e 1960, «saltou», desta vez, para o comando do Sam Tiago, com Amândio Manuel da Rocha Pinguelo, como imediato e com António José Ferreira da Costa, de Lisboa, como piloto.  nos anos 1958 e 59.  Em 60, o piloto fora Fernando Duarte Vieira do Coito, de Lisboa.
O ano de 58 foi um ano de pescas muito fracas, de muito mau tempo e de fortes ciclones. Só navios, naufragaram seis. Os de 59 e 60, pouco melhores.
Uma vez que tive acesso aos «diários de pesca» do Sam Tiago, nestes três anos, o ano em que o navio deu à descarga maior quantidade de peixe foi o de 1958 15.000 quintais, sensivelmente.

Passei-lhe os olhos com interesse, para ver se referia algo de especial, para além das datas, posições, ventos, estado do mar, estado da atmosfera, quantidade e qualidade de isco, hora legal de arriar e de chamar, nº de pescadores ao activo e quantidade de pesca diária. A saber:

  entradas e saídas em St. Jonh’s e em que condições
  botes a aliviarem, sinal de razoável ou boa pesca
 a aproximação do navio-hospital Gil Eannes, sinónimo de assistência a bordo, na doença, abastecimento de diversos mantimentos, troca de encomendas, etc., etc.
  navios à vista, com os quais se mantinha bom relacionamento e um espírito solidário de interajuda, eram indicados, frequentemente. Cediam, se possível, uns aos outros, por empréstimo, isco, botes, remos, estrafego (linhas, anzóis…), mantimentos, etc.
 - o naufrágio do Maria das Flores, do capitão Vidal, que estava com água aberta, no dia 17 de Setembro de 1958, pelo que foi pedido ao Sam Tiago que se aproximasse, perto de Eastern Shoals, nos bancos da Terra Nova. Foram lá o Chico Leite, o irmão, José Leite, o Capote e o João Costa, tendo-se decidido abandonar o navio, posteriormente incendiado. Dele vieram para o Sam Tiago seis pescadores.
– o produto da «pesca ao pingalim», por vezes, superava o rendimento da «trawlada».
– à saída de Faeringerhavnen, nos baixios, na Groenlândia, encalhou neste ano de 1959, no dia 10 de Agosto, o Santa Maria Madalena, do cap. José Bolais Mónica, que já estava a ser assistido. Depois da recolha dos botes, o Sam Tiago dirigiu-se ao São Ruy para buscar seis náufragos: 1º maquinista, 2º motorista e quatro pescadores.
Na leitura do diário de 1960, para além das rotinas, melhores ou piores, de notar o naufrágio do navio Condestável, do comando do capitão Pascoal, com incêndio a bordo, a 30 de Agosto.  Uma amizade notória do cap. Chico Leite com um camarada e a perda de um homem da tripulação, chamaram-me peculiar atenção.
A amizade fui certificá-la numa visita ao capitão Manuel Machado, já que um navio que frequentemente era citado era o Avé Maria que sempre associei a este capitão. O amigo Manuel Machado confirmou-me toda uma grande amizade e simpatia pelo Chico Leite, – um bom camarada, um bom amigo, uma boa pessoa, competentíssimo – certificando o grande convívio que houve entre eles, nesta viagem de 1960, Francisco Leite, enquanto capitão do Sam Tiago e Manuel Machado do Avé Maria – os vários encontros, conversas, almoçaradas e jantares, a bordo de um dos seus navios.
Relativamente à trágica perda de um tripulante, entre as folhas do diário de pesca, um rascunho solto, dactilografado, que passo a transcrever, atraiu-me a atenção:
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RELATÓRIO

No dia 18 de Abril de 1960, encontrando-se este navio Sam Tiago na recolha dos botes, cerca das 16.30 horas locais verificou-se faltar um bote, pelo que eu, capitão do navio, mandei o imediato procurar com o binóculo, o bote em falta, tendo-se visto imediatamente uma vela bastante longe e para os lados de SW. Por faltar unicamente um bote, por não haver outro navio à vista e pela cor da vela, adquiriu-se a certeza tratar-se do bote em falta. Este foi-se aproximando do navio, mas a dado momento e quando ele já se encontrava próximo, deixou de se ver repentinamente. Imediatamente mandei suspender o ferro e segui a toda a velocidade cerca de dez minutos para barlavento para as proximidades do local onde havia sido visto pela última vez. Quando ainda navegava, avistei pela proa vários objectos a flutuar; calculando tratar-se de pertenças do bote, aproximei-me e verifiquei assim ser e avistando próximo o bote voltado de fundo para o ar. Imediatamente mandei arriar dois botes e a baleeira motorizada para tentar encontrar o náufrago e recolher os objectos que flutuavam. O bote encontrava-se com a vela içada e a escota amarrada à borda e com o cesto do trol amarrado à proa, tudo indicando que se tinha voltado quando seguia à vela. Também foi encontrado bastante peixe
boiando. Recolheram-se todos os objectos à vista não se tendo encontrado o corpo do pescador.
O pescador desaparecido chamava-se António Simões Batista, de 33 anos de idade, filho de João Batista Camilo e de Felicidade de Jesus, era natural de Ílhavo, casado, inscrito na Capitania de Aveiro com o número 24806, em 15 de Fevereiro de 1945.
Foram expedidos no mesmo dia telegramas a informar o Grémio e os Armadores do navio.
Na altura, havia as seguintes condições atmosféricas: céu forrado, horizonte limpo, vento SW, força 2 a 3 e ondulação sudoeste moderada. Já se encontravam estas condições desde cerca de meio-dia.

Bordo, 18 de Abril de 1960
O Capitão

Após esta viagem, por ter nascido a primeira filha e não querer estar longe da família, tanto tempo, Francisco Leite deixou a pesca do bacalhau, para estar em casa, com mais frequência. E, assim, teve uma longa carreira na Sacor Marítima Limitada, de onde se aposentou, em 1985.
Tendo feito, intervaladamente, algumas viagens de imediato no navio Sacor, com o capitão Ferreira da Silva, logo passou definitivamente a capitão do mesmo navio, até 1968.

A bordo do Sacor, à nossa esquerda, em 1961

Entre 1968 e 84, comandou o navio Bandim e, entretanto, supervisionou a construção do navio Galp Sines, entregue a de 2 de Abril de 1985, que, seguidamente, comandou, até à reforma.
Comandante muito competente e fortemente respeitado por colegas e superiores, recomendou a entrada de alguns oficiais ilhavenses mais jovens para a Sacor, sempre e apenas aqueles que considerava também competentes.
No princípio de vida do bacalhau, entre viagens, fez algumas de comércio nos navios Moçambique, Santa Rita I e Pátria, segundo consta da sua Cédula de Inscrição Marítima.
Depois da aposentação, passou a viver quase definitivamente na Costa Nova, entre ria e mar, em palheiro atípico, bonito, branco, listado de vermelho, na horizontal, nº 102 da Calçada Arrais Ançã, finamente decorado, comprado a Joaninha Ramalheira e marido, casal de portugueses, emigrados  nos Estados Unidos.
Mas, mais algumas aventuras marítimas o esperavam, antes de, extemporaneamente, nos deixar.
Ligado familiarmente a viagens turísticas através da filha Ana Margarida, fez uma viagem de turismo, no renovado paquete Funchal com a mulher. Tanto perguntou, tanto colaborou, tanto se «meteu como o piolho pela costura», que foi convidado, e fez, algumas viagens nesse paquete, como comandante.
Saiu de Lisboa a 4 de Dezembro de 1991 para Salvador, Rio de Janeiro e Santos, após o que efectuou um programa completo de cruzeiros de Verão para o mercado brasileiro, tendo regressado a Lisboa a 21 de Março de 1992.
Anteriormente, no paquete Vasco da Gama, ex- Infante D. Henrique, já também fizera uma viagem de volta ao mundo, comandando o navio juntamente com o Comandante Kotrozos, grego, com saída de Génova a 7 de Janeiro de 1989 e regresso a 27 de Abril do mesmo ano, com 110 dias de viagem, com passageiros alemães (dados fidedignos e confirmados por Luís Miguel Correia). Ambos os paquetes navegavam, na altura, com registo e bandeira do Panamá, propriedade de empresas do armador grego Potamianos e geridos a partir de Lisboa, pela empresa Arcália.
Em viagem aos Estados Unidos, de recreio e de visita à filha Teresa, em Junho de 1992, correu tudo quanto era museu marítimo ou navio musealizado. Não poderia faltar o «nosso» Gazela, em Filadélfia, «dando cartas», ao descobrir e informar que a fotografia do irmão, José Teiga Gonçalves Leite, que havia sido capitão (nº12) daquele mítico navio em 1950 e 51, não era a verdadeira imagem. No dia seguinte, acima de tudo, tornou-se clara, até para os curadores do Museu, a profundidade do conhecimento náutico que tinha e a sua paixão pelo mar, navios e pelos tempos do bacalhau. Depois de «dar uma lição de Gazela», aos conservadores do navio-museu, deixou-lhes a fotografia certa.

Junto ao navio-museu Gazela I, em 1992.

Pela Costa Nova, ensinou muitos jovens a velejar. Sobretudo, desde que mandou construir o OK(apa), em 1973, descobriu o «Cruzeiro da Ria», que,  para ele, era uma oportunidade de ir mais longe pela ria acima e de fazer amigos velejadores para além da Costa Nova. Adorava o convívio e a camaradagem dos costanovenses que se apoiavam na competição e na logística de levar e trazer os barcos, quando não havia ainda clube de vela. Foi sócio fundador do Clube de Vela da Costa Nova e participou activamente em regatas e eventos do clube, até ao fim.
Pela mesma altura, foi Presidente da Assembleia Geral da Associação dos Amigos do Museu de Ílhavo, desde 1994 até 2001, tendo colaborado imenso no evento, «De novo na Terra Nova», no Verão de 1998.
Depois de uma doença súbita e cruel, deixou-nos em 16 de Junho de 2001, com 71 anos de idade, levando-nos a recordá-lo com saudade.
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Fotografias cedidas pela filha Teresa
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Ílhavo, 16 de Fevereiro
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Ana Maria Lopes-

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

E mais uma ida a Viana...


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Ontem, mais uma ida a Viana do Castelo, ao Gil Eannes, em agradável companhia de Amigos do Museu, desta vez, a terceira, desde que começou a saga do lançamento da obra do Capitão João David Batel Marques – A Pesca do Bacalhau – História, Gentes e Navios –, desta vez, o III volume, dedicado aos navios-motor.

É uma obra muitíssimo completa, uma Enciclopédia da pesca do bacalhau – como era de esperar, que foca aquela pesca que, na realidade existiu, nas suas várias vertentes, baseada em inúmeros documentos: jornais, fichas do grémio, documentos de capitanias, do Arquivo Central de Marinha, protestos, diários de bordo, todos estes elementos coadjuvados pela grande memória de João David e capacidade de cotejo.

Desde o primeiro volume, tenho sempre algum perto de mim, que folheio, que consulto, que confronto com avidez – havendo navios da minha preferência. Dos lugres, o lugre-patacho Gazela, o Golfinho, o Voador, o Ana Maria (o velhinho Argus), o Santa Maria Manuela, o Cruz de Malta, o Silvina, o Hernâni, o Laura, e o Novos Mares.  Entenderão as razões. Dos navios-motor, o Inácio Cunha, o Novos Mares e o São Jorge, porque dele fui madrinha com doze anos.

E o prazer que me dá identificar cada foto e saber, pelo menos, onde o Autor, a foi «pescar», nem que, por vezes, nem se saiba bem, quem foi o fotógrafo !? Cada um gosta do que gosta e esta é a «Faina Maior», por que me apaixonei e que ainda hoje me encanta, na dureza, na rudeza e na beleza daquela vida. Tanto a vivi, a ouvi, a pesquisei, que parece que fui sua protagonista. E vivi, vivi-a em terra, em Ílhavo e na Gafanha da Nazaré.

Claro, relativamente ao espaço, a – «Câmara dos Oficiais do Gil Eannes» – torna-se muito pequena para o número de frequentadores e apaixonados pelo tema. Enche depressa, os lugares sentados andam pela meia centena, mas, pelos vistos, se lá vamos é porque queremos e não nos importamos das condições menos boas.

Na «Câmara dos Oficiais do Gil Eannes»

Ontem, o programa da apresentação do livro foi abrilhantado pela exibição do documentário da campanha de 1952, no navio-motor São Ruy, da praça de Viana do Castelo. Ia «ògada» por apreciar filme e revisitar a pesca do fiel amigo.

Não destronou o pedestal, em que tenho «The White Ship», passado na campanha de 1966, filmado por Hector Lemieux, em que o capitão era Vitorino Ramalheira, com 37 anos, com a sua boina preta, um autêntico galã hollywoodesco.

O navio-motor São Ruy

Mas, neste caso, «A Campanha do São Ruy – 1952», atendendo ao facto do Capitão João Araújo não ser um profissional, deixou-nos, para memória futura, um excelente documentário – a precisão das cenas, a sua sucessão.  os timings certos fazem dele um filme excepcional para se apreciar o processo de registo de uma viagem redonda: o abastecimento de sal, a cerimónia da Bênção no majestoso Tejo, a saída da barra, a vizinhança de outros navios, a vida a bordo, a pesca, o processamento do peixe, a salga, a ida a terra para abastecimento, o reencontro de capitães amigos e o regresso. Por acaso ou não, tem uma forte intenção pedagógica, para que seja apreciado por escolas, por jovens descendentes ou não, de quem viveu essa vida.
O texto escrito pelo João David que comenta o filme é excelente, com um narrador presente, de primeira pessoa, visto que foi posto na boca de quem o filmou – o imediato, vianense, João Araújo. Do trio da oficialidade faziam parte o Capitão José Bilelo e o piloto, carinhosamente conhecido por Chico Leite, ambos de Ílhavo. Não haverá por aí, mais relíquias destas?
Cansada, mas de alma cheia, ainda fomos, ao fim da tarde, visitar a réplica da capela, do Gil Eannes, à ré, já que a autêntica se encontra no Museu de Marinha, bem como as belíssimas rodas do leme.
E até ao IV Volume!...
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Ílhavo, 4 de Fevereiro de 2019
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Ana Maria Lopes-