quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Homens do Mar - Armindo Simões Ré - 26

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Capitão Armindo Simões Ré. 1950
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Sempre conheci as quatro filhas do Sr. Capitão Armindo Simões Ré, mas deram-me, por conselho, que a mais amante das memórias materiais e imateriais do Pai, seria a mais nova, a Arminda, e uma neta, a Fernanda, que reside em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel, Açores.
Estabelecido o contacto telefónico, passou-me a ser mais fácil ir a Ponta Delgada (via virtual) do que, ali, à dita Avenida dos Capitães (onde sobram dois ou três), nº 83-85.
Para além disso, também percebemos, ambas, que o afecto que ela tivera por seu Avô, teria existido comigo, relativamente ao meu. Coisas da vida, no mundo dos afectos…
E tem vantagens, porque a Fernanda é de Física, trabalha no Instituto Português do Mar e da Atmosfera e pode anunciar-me as «trabuzanas», que costumam deslocar-se dos Açores para o Continente.
O Sr. Capitão Armindo Simões Ré nasceu em Ílhavo em 20 de Agosto de 1907. Filho de Alexandre Simões Ré (1880-1967), também oficial da Marinha Mercante, e de Maria Nunes Vidal, casou com a Senhora D. Arlinda da Silva Ré, de quem teve as quatro filhas – a Maria do Rosário, as gémeas Arlinda e Maria e a Arminda.
Possuía a cédula marítima 18175 passada pela capitania do porto de Aveiro, em 20 de Fevereiro de 1923. Já não teria pertencido àquela geração em que iam prematuramente para o mar, mas a filha mais velha contou-me que o pai se referia que, em tempo de crise, teria embarcado como ajudante de cozinheiro, num navio em que o Pai andava. Tudo muito vago, mas daí a justificação para ele ser uma pessoa muito hábil na cozinha.
Teria sido? Talvez… Nada de muito inédito.
Outra referência – através de correspondência que me foi facultada – apercebi-me que em 1928, andou embarcado no lugre Lídia, em serviço comercial, pertença do armador – José Joaquim Gouveia – Parceria Marítima Douro, Porto, entre 1918 e 1935.
Mais uma referência, também vaga – uma fotografia de um navio do comércio, MIRANDELLA, anotada no verso – recordação da entrada em Hamburgo, a 26 de Novembro de 1930.
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O velho lugre de madeira Argus, em 1934
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Bem, desde que tive acesso a fontes credíveis, o Sr. Armindo Ré fez as campanhas de 1933 a 38, no dito Argus velho. Este Argus, lugre de madeira, construído na Inglaterra em 1873 para a Parceria Geral de Pescarias, mais tarde, na firma Veloso, Pinheiro & Ca. Lda., da praça do Porto, passou a ser o Ana Maria. Foi o seu piloto, sob o comando de Francisco da Silva Paião (33, 34, 35 e 36) e Alexandre Simões Ré (37). Passou ao seu comando em 1938, levando como piloto, Alexandre Simões Ré. Inverteram-se os papéis.
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No velhinho lugre de madeira Argus, em 1936
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E passemos ao lugre com motor, de ferro, Creoula, de 1937, o actual NTM, que todos bem conhecemos.
Nas campanhas de 1939 e 40, sob o comando de João Pereira Ramalheira (o Vitorino), Armindo Ré foi o imediato e Alexandre Ré, o piloto.
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No Creoula, numa das viagens de 39 ou 40
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Na imagem anterior, junto à roda do leme, Sílvio Ramalheira seguido de Adolfo Paião; à esquerda, Armindo Ré.
Nas campanhas de 1941 a 43, seguiu-se o Argus, o novo/velho Argus, de ferro, construído na Holanda, em 1939, imortalizado pela obra tripla A Campanha do Argus de Alan Villiers. O trio da oficialidade manteve-se. Em equipa ganhadora não se mexe – diz-se.
Mas o lugre-patacho Gazela Primeiro meteu-se de permeio e Armindo Simões Ré tornou-se capitão deste mítico navio.
Quem não o sente? Está longe, mas foi nosso, e comandado por capitães todos ilhavenses, ílhavos de rija têmpera, que sempre sonharam com o mar longínquo.
Nas safras de 1944 a 48, inclusive, exerceu, pois, o cargo de seu capitão, com o Pai, Alexandre Simões Ré, como imediato.
O Gazela, em 1900, foi completamente reconstruído em Setúbal, no Estaleiro J. M. Mendes, passando a chamar-se Gazela Primeiro. Passou a ser o maior navio da Parceria Geral de Pescarias e, de todos os navios da empresa, o Gazela Primeiro talvez tenha sido o mais famoso.
Em 1969 imobilizou na Azinheira e em 1971 o navio foi vendido ao Philadelphia Museum e mais tarde entregue a um grupo de amigos, que o vão preservando em perfeitas condições de navegabilidade.
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O lugre-patacho Gazela Primeiro
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Estamos perante um caso de fidelidade a uma empresa, até à data (quase de filho e Pai), quando, provavelmente, perante um convite da empresa Brites, Vaz & Irmãos, Lda., da praça de Aveiro, o nosso capitão foi buscar o navio-motor, de ferro, Vaz, à Holanda, onde fora construído, para o começar a comandar na campanha de 1949. E por quantos anos? 1950, 51 …etc., o que, inicialmente pensara, dezasseis campanhas, com mais cinco, noutra ficha biográfica, durante 21 anos. Até 1969. Uma vida de apego e sempre de sobressalto, já que sobre as salsas ondas, de quando em vez, alterosas.
Segundo informação do Jornal de Pescador, de Abril, p. 49 e Maio, p. 9, de 1949, tivemos conhecimento que o Vaz entrara no Tejo, a 19 de Março, onde estivera, embandeirado em arco, pronto para receber individualidades e outras visitas. O Sr. Capitão Armindo Ré, então com 41 anos, um dos mais hábeis e conhecedores capitães da Marinha Mercante nacional, interpelado pela imprensa citada, mostrava-se encantado com o navio, pela modernidade, conforto, velocidade, capacidade e equipamentos. Foi o seu navio. De imediato, nos anos de 1949, 50 e 51, foi Alexandre Simões Ré, que terá terminado, e não era sem tempo, a sua carreira de mar.
Nas restantes viagens, os imediatos ou pilotos, normalmente, não foram de Ílhavo.
O Sr. Capitão Armindo, tendo tido, a bordo, uma infecção no polegar da mão esquerda, originando um panarício, ia-o escaldando em água fervente, até que um dia, a sangue-frio, como a infecção cavalgasse, ele próprio cortou a falangeta do dedo para evitar o pior. Ao chegar ao Gil Eannes, para um tratamento mais cuidado, informaram-no que, se assim não tivesse agido, teria estado sujeito a ter de lhe ser cortada a mão. Meu Deus, até arrepia a coragem e a ousadia com que assim agiu!...
Igualmente através do Jornal de Pescador, de Agosto de 1970, p.9, confirmámos a existência de uma condecoração, que tivemos o prazer de observar.
No Dia da Marinha, a 8 de Julho de 1970, na presença do Almirante Tenreiro, o Ministro da Marinha, Almirante Pereira Crespo, condecorou os capitães-pescadores Armindo Simões Ré, Manuel Machado dos Santos e José de Oliveira Rocha, todos de Ílhavo, com a medalha Vasco da Gama, de criação recente, galardão exclusivamente do mar e cuja atribuição se ligava a feitos ou serviços praticados.
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O navio-motor, de ferro, Vaz
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Foi no Vaz que levara a bordo da Gafanha para Lisboa, a sua esposa e a filhota Arminda e, mais tarde, a neta adorada, Fernanda. Em ambas, permanecem recordações inesquecíveis, que vim avivar com estes Homens do Mar – rememoram a novidade da viagem marítima, o gosto pela convivência a bordo com a tripulação, os seus albaióis (hoje, jardineiras), que as fazia parecer uns pequenos marinheiros a bordo, o conforto do salão de oficiais com as suas caminhas improvisadas com cadeiras e cobertores, o cheiro do pequeno-almoço, servido por moço de casaco branco…
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O Vaz, Cap. Armindo Ré e a neta Fernanda. 1964
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A neta Fernanda reviveu ainda a situação do quarto do avô-pai – assim o tratava –. Recordou três enormes gavetões encimados por uma cama (o seu camarote), seguido da casa de banho e do gabinete médico; sempre em frente e do mesmo lado, a escada para a ponte (algures por ali estavam pendurados uns binóculos e um chapéu de farda).
Recordou ainda que, ao fundo do camarote e a meia parede havia um armário e, à direita e em frente à mesa de refeições, estava uma maravilhosa secretária repleta de objectos interessantes – réguas e esquadros, canetas e lápis, tabelas com números, livros de registo, etc…, com um grande candeeiro e uma cadeira. Lembra-se de ter ficado lá a escrever, a desenhar e a coscuvilhar (aliás, não se recorda que alguma vez o avô a tivesse avisado ou impedido de ver ou mexer nas suas coisas) … Nesse aspecto, teria sido mais como um irmão ou amigo com quem a confiança era máxima.
Gostava muito de ouvir o meu avô-pai – relembra a Fernanda – a explicar coisas do navio, da pesca, do tempo… ele gostava de ensinar e tinha uma paciência infinita… Assim recorda o Avô-Pai, a Fernanda, de além-mar, dos Açores.
Depois de ter deixado o mar, Armindo Ré ficou por terra, entre o carinho da família, alguns bons anos, não sem deixar de ir diariamente à empresa que ultimamente servira, após o que ia encontrar-se com alguns colegas, junto ao Bispo. Manteve esta rotina até à doença não permitir.
Acamado no último ano por problemas respiratórios, achava que seria levado por um navio, para uma viagem bem longínqua, eterna. E assim foi em 19 de Setembro de 1994, com 87 anos.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência de familiares
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Ílhavo, 13 de Novembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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domingo, 11 de dezembro de 2016

Homens do Mar - Francisco dos Santos Càlão - 25

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Enquanto ia pesquisando e escrevendo sobre o currículo marítimo do Capitão João Ventura da Cruz, iam-se-me cruzando dados, e não por acaso, com o Capitão Francisco Calão (n. 1897). Não queria deixar de o referenciar, até porque me lembro nitidamente dele, na sua casa encostada à minha, na Costa Nova e, porque, como capitão da Empresa de Pesca de Aveiro, teve um papel fulcral na mudança da pesca do bacalhau à linha para o arrasto lateral. Filho de João Nunes da Barbeira e de Joana Correia, casou com a Senhora D. Maria de Oliveira Mendes, de quem teve três filhos – Maria, David Manuel e Francisco Manuel Mendes Calão, de quem bem me recordo.
Era possuidor da cédula marítima 9511 passada pela capitania do porto de Aveiro, em 22 de Fevereiro de 1911.
Há dias, na Costa Nova, em conversa com o Sr. Cap. Manuel Machado, nos seus vetustos, mas muito lúcidos 90 anos, que havia sido seu piloto, na viagem de 1951, no arrastão São Gonçalinho, veio à baila a sua recordação, bem como a de meu avô, que era seu irmão, de quem se lembrava bem.
Continuando… Ao Jornal do Pescador de Fevereiro de 1952, o capitão Chico testemunhou, à época, que comandava navios bacalhoeiros há 31 anos, tendo sido o lugre de pesca à linha, Águia, pertencente à Companhia Aveirense, o primeiro em que se iniciara, em 1921.
Águia? O nome já me passou pelas mãos… ou pelos olhos… pensara.
O lugre Águia, registado em Aveiro, foi construído na Gafanha da Nazaré, em 1919, por Manuel Maria Bolais Mónica, para a Companhia Aveirense de Navegação e Pesca. Era um lugre com três mastros, de madeira, proa de beque, popa de painel e um pavimento. Mais tarde, pelos anos 20, tendo mudado de dono, passou a ser o Silvina, que já não cheguei a conhecer, pois ardeu na viagem de 1941. A propósito, ver o capítulo O Silvina em Chamas, em Os Grandes Trabalhadores do Mar de Jorge Simões, última edição, p. 103 a 113.
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O lugre Águia. 1919
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Quem procura sempre alcança e nas buscas habituais, mas intensas, lá descobri que comandara, na safra de 1934, o Rosita, da praça do Porto. Era o ex-lugre, de madeira, Edith M. Cavell, construído em Melburne, propriedade de Copérnico da Conceição da Rocha, de Ílhavo. Participou nas campanhas de 1930 a 1934. Será que o Sr. Capitão Chico o comandara nestes quatro anos (1930, 31, 32 e 33)? Falta de dados seguros não nos permite concluir isso. Como ainda me lembro do Sr. Copérnico e sua Esposa em curtas estadias e visitas que faziam à família Rocha, no Alto Bandeira - irmão de Conceição e Rosa Rocha, tio de Maria da Conceição Rocha Mano e de José (Zeca) Mano.
Na campanha de 1935, no dia 12 de Julho, quando comandava o lugre Santa Joana (um dos quatro Santas que tivera pescado pela primeira vez, na Groenlândia, em 1931), fora abalroado por um navio de pesca norueguês, na Groenlândia, conforme protesto existente no Ciemar. Pilotava-o o Sr. Manuel Gonçalves Viana.
O Capitão Chico, como carinhosamente era tratado, fizera as safras de 1936 e de 37, no comando do lugre com motor Santa Izabel, igualmente pertencente à EPA. Voltou a ser seu piloto Manuel Gonçalves Viana.
O capitão Francisco Calão, na sua possante estatura de 1, 80 de altura, corpulento, foi um verdadeiro lobo-do-mar. À sua valentia e arrojo, aliava uma competência reconhecida e comprovada por todos os seus colegas e por tantos actos temerários durante a sua já longa vida de marinheiro. Era desejado por diversos armadores, mas, como a sua biografia marítima o comprovou, não gostava de saltar e, por isso, se manteve a servir a mesma casa – neste caso, a Empresa de Pesca de Aveiro, conhecida pela empresa do Sr. Egas Salgueiro ou até do Egas.
No ano de 1938, deu-se a grande viragem na sua vida e deixou a pesca à linha do bacalhau para se entregar, de alma e coração, ao comando do único, à data, arrastão clássico, o então recente Santa Joana, onde se conservou até 1946 (inclusive).
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Pesca de arrasto lateral
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Durante estes anos, foram seus imediatos, os ilhavenses Manuel Pereira da Bela (1938), António Trindade da Silva Paião (39), Manuel Gonçalves Viana (40), Jacob de Oliveira Mendes (1941 a 45) e João Laruncho de São Marcos (1946) e pilotos, José Nunes de Oliveira (38), Manuel Gonçalves Viana (1939), João Simões Ré (40), Manuel de Oliveira Júnior, de alcunha Bernardo (1942 e 43), José Pelicas Gonçalves Bilelo (46) e praticante de piloto, David Manuel Calão (46). O arrastão Santa Joana fez duas viagens nos anos de 1938, 1939, 1944, 1945 e 1946 e uma, nos anos sobrantes (40, 41, 42 e 43).
Na segunda viagem de 1946, o Capitão Chico ficou em terra para prestar assistência à construção do São Gonçalinho, mandado construir igualmente pela Empresa de Pesca de Aveiro, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.
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A bordo, com a autoridade…
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Foi também ele que, em 1947, foi buscar a Inglaterra os caça-submarinos Killdary e Killmalcom que, depois de transformados em atuneiros com os nomes de Rio Vouga e Rio Águeda, viriam a aumentar e enriquecer a frota da referida empresa, com esta nova modalidade de pesca.
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Em 1948, estreou como capitão o citado arrastão São Gonçalinho, que comandou até 1953, com algumas interrupções, devido à doença que o traiu e contra a qual tanto lutou.
Foram seus imediatos, no São Gonçalinho, os ilhavenses José de Oliveira Rocha (48, 49, 50), José Simões Negócio (51), Manuel Gonçalves da Silva, de alcunha Paroleiro, (52, 53), e pilotos, Francisco Correia Marques (49 e 50), Manuel Marques Machado (51), e Juvenal Carlos Filipe Fernandes (52 e 53) da Gafanha da Nazaré.
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O arrastão São Gonçalinho
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O arrastão São Gonçalinho fez duas viagens nos anos de 1949, 50, 52 e 53 e uma, nos anos sobrantes (1948 e 51).
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À esquerda, José Rocha e Francisco Calão, a meio
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À saída do Tejo, a 27 de Fevereiro de 1952, no São Gonçalinho, mal diria o «nosso capitão» que a caminho dos bancos, por altura dos Açores, seria acometido por doença grave que exigiria uma arribada ao porto de Ponta Delgada e o seu regresso urgente, por avião, à Metrópole, para ser intervencionado. Terá sido o começo do fim, que se arrastou ainda por uns péssimos anos. Informada a empresa armadora, o navio seguiu viagem, logo que possível, sob o comando do Sr. António Augusto Marques, de alcunha, o Marcela.
A vida não parou, nunca pára, mas afrouxou, de algum modo. O estado físico e emocional deste grande lobo-do-mar fora abalado.
Mas, com a sua coragem e luta contra a doença, retomou o comando na 1 ª viagem de 1953 do «seu» arrastão.
O estado de saúde agravara-se e teve de ser internado num hospital, em St. Jonh´s. Segundo o jornal local de 10 de Agosto de 1953, de regresso da Terra Nova, onde deu entrada numa casa de saúde para lhe ser amputada uma perna, chegou a Ílhavo o nosso amigo e conterrâneo Francisco dos Santos Calão que ali demorou até lhe poder ser aplicado um aparelho ortopédico, que lhe permitisse andar regularmente.
Fora o Capitão Manuel Gonçalves da Silva, Paroleiro, que era o imediato, que lhe sucedera, na viagem.
Encerrara-se, deste modo, a vida marítima deste arrojado homem do mar, minado pela diabetes, embora só nos tivesse deixado, a 7 de Novembro de 1961, com 64 anos de idade e sobrecarregado pelo peso do sofrimento e da amargura.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência de familiar
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Ílhavo, 8 de Novembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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domingo, 27 de novembro de 2016

Homens do Mar - João Ventura da Cruz - 24


João Ventura da Cruz, no ponto nevrálgico do navio
Tem-me sido extremamente difícil conseguir algumas fotografias de João Ventura da Cruz, bem como os dados básicos da sua biografia marítima, pois a sua ficha do grémio apenas refere que comandou o lugre com motor  Santa Izabel, construído em 1929 por Manuel Maria Bolais Mónica para a Empresa de Pesca de Aveiro, nos anos  de 1938, 39, 40 e 42. Ora sabemos que os seus feitos foram muito mais.
Tentemos explicitar.
O Sr. João Ventura da Cruz, natural de Ílhavo, nasceu em 1880. Casado com Ascensão Ricoca, foram pais de uma abundante prole, que ainda conheci, uns, bem melhor que outros – Maria, Aníbal, Ascensão, João Cândido, Manuel e Nídia Ventura da Cruz. Este ano, no Verão, mais uma foto surgiu, na casa da Costa Nova, com a sua prole. E curiosa, pois representa o capitão, de boné (5º), e, da esquerda para a direita, sua esposa Ascensão (3ª), e seus filhos, Aníbal (1º), Ascensão (2ª), Manuel (4º), João Cândido (6º) e Maria (7ª). Falta a Nídia, a mais nova.
Que sorte! Estava datada – 1935 – e identificado o navio – lugre com motor Santa Mafalda. Tudo conferia.
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A bordo do lugre Santa Mafalda, com a sua prole, em Lisboa.1935
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Perante os primeiros dados credíveis, lancei o isco e pesquei que fora capitão, nos anos de 1922 e 24, no lugre Argonauta II, de 1925 e 26, no lugre Alcion, e de 1928 e 29, no lugre Celestina Duarte, todos da praça de Aveiro, pilotado, respectivamente, por João dos Santos Marnoto (26 e 28) e Manuel Pereira da Bela (29).
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O lugre Argonauta II, de três mastros, proa de beque e popa redonda, foi construído por Manuel de Matos Mónica, na Gafanha da Nazaré, em 1919, para a Sociedade Argonauta, Lda., de Aveiro. O navio foi vendido em 1927 à Empresa de Navegação Portugal e Américas, do Porto, alterando o nome para Celestina Duarte, porém, conservando a matrícula em Aveiro. Naufragou nos rochedos exteriores do porto de Leixões, em Fevereiro de 1933, em que faleceu o capitão ilhavense Paulo Nunes Bagão, já septuagenário. Do lugre Alcion, soube que teve a sua origem no lugre-escuna Figueira, construído em Inglaterra em 1904, tendo sido o ex-Becca and Mary, até 1913, então registado, na Figueira da Foz. Posteriormente, foi vendido ao capitão de Ílhavo, António José dos Santos, de alcunha Rocheiro, tendo sido registado em Aveiro, passando a ser o Alcion, em 1920.
Na campanha de 1930, comandou o lugre Bretanha, pilotado por Manuel Pereira da Bela, nosso patrício.
Anos de forte crise económica. Lugres amarrados. E os armadores, se não viessem a ter melhores resultados, prometiam deixar os lugres ancorados a apodrecer.
Entretanto, conta-se que, tendo encontrado, casualmente, o rude e destemido Capitão João Pereira Cajeira, o Sr. Egas Salgueiro, armador empreendedor, lhe fez saber que os navios de pesca dinamarqueses e faroés, nos bancos da Groenlândia, faziam muito boas pescas. E logo o contratou, para chefiar o lugre Santa Mafalda, com a condição de ir pescar, sigilosamente, nesse ano, à Groenlândia. Entregue aos seus parcos conhecimentos, o Cajeira, com a preocupação de cumprir o que havia prometido, lá foi meter-se nos terríveis gelos e medonhos campos de gelo, onde se viu perdido e amedrontado pela situação.
Não chegou propriamente a pescar – muitos receios, temores e perigos, dissuadiram-no, naquele ano, mas não perdeu a ideia de lá voltar. De regresso, o capitão Cajeira dá uma longa entrevista ao jornal Beira-Mar, de 30/11/1930. Frio inclemente, cortante, bizarros e gigantescos icebergs, lindíssimas auroras boreais, riscos de se perderem, fizeram-no regressar.
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Gigantesco e medonho iceberg…
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Um pescador disse referindo-se aos mares da Groenlândia: – Eh! Sinhor Capitão! Aquele mar não tem passage! Aquilo era tudo fechado que até metia medo…
O capitão Cajeira sorridente e pensativo parecia recordar a acidentada viagem que, pelos perigos de que foi cercada, nos faz lembrar as antigas viagens dos navegadores de antanho.
Naqueles anos trinta de profunda depressão e crise económica, tudo corria mal e a situação da Empresa de Pesca de Aveiro tornara-se insustentável e os três principais sócios da EPA reuniram-se com os três capitães Manuel dos Santos Labrincha (1880-1954) do lugre com motor Santa Izabel, João Pereira Cajeira (1879-1958) do Santa Mafalda e João Ventura da Cruz (1880-1970) do Santa Joana a quem contaram a verdade nua e crua – estes comprometeram-se a ir pescar à Groenlândia, de modo a que fosse conseguido o dinheiro suficiente para pôr os navios no mar.
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E cá está o nosso capitão João Ventura da Cruz envolvido, com sua palavra e temeridade, na questão.

Sigilosamente, assim foram, pois o segredo é a alma do negócio – era o lema do Sr. Egas.
A eles se juntou o Capitão Aquiles Bilelo, de que já falámos, por convite do amigo Cajeira, a quem prometeu reboque, já que o seu navio, o Santa Luzia, tinha menos capacidades que os outros. Há alguns, poucos, relatos deste heróico feito, embora com ligeiras discrepâncias.
Com a falta de comunicações habituais para a época, mais cedo do que habitual, na Costa Nova, vislumbra-se: Navio à vista!... Navio à vista!...
É este…
É aquele…
Quando, mais cedo que o habitual, os quatro lugres, que pescaram nos bancos da Gronelândia, chegaram a Portugal e demandaram os seus portos de armamento, houve grande alvoroço e muito regozijo entre as classes ligadas às actividades piscatórias. É que, de todos os veleiros que, nesse ano de 1931, foram à pesca do bacalhau, apenas aqueles quatro conseguiram carregamentos completos.
É bom pois, que sejam sempre lembrados aqueles quatro arrojados Capitães de Ílhavo, seus pilotos – Joaquim Fernandes Agualuza (1901-1983), piloto do lugre Santa Izabel, João Fernandes Matias Júnior, Britaldo (1901-1959), do Santa Mafalda, João dos Santos Labrincha (Laruncho) (1901-1980), do Santa Joana, José Vaz Mano (1904-1980), do Santa Luzia – e suas destemidas tripulações.
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Mas as fainas marítimas de João da Cruz não ficaram por aqui. Creio que no ano de 1932, continuou a comandar o lugre Santa Joana, pilotado por João dos Santos Labrincha (Laruncho). Nos anos seguintes de 33 a 35, passou a comandar o lugre Santa Mafalda da mesma empresa, pilotado por Manuel Fernandes Matias em 1933.
Neste mesmo ano, segundo informação do jornal local, o Santa Mafalda entrou em fins de Setembro, na barra de Leixões. Trazia um carregamento completo de bacalhau, mas a viagem é que fora muito acidentada, sofrendo a perda de dois tripulantes – um na Gronelândia, a 17 de Julho, de Ílhavo, em virtude de se lhe ter virado o dóri em que pescava e outro, a 11 da de Setembro, quando, em viagem, o lugre foi apanhado por um temporal que lhe varreu o convés, um pescador da Fuzeta. Vidas sofridas e tempos muito duros, que impunham respeito a qualquer um.
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O lugre Santa Mafalda
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Entretanto, na safra de 1936, com duas viagens, João Ventura da Cruz estreou no comando o primeiro arrastão lateral português mandado construir pela EPA, na Dinamarca, em 1935, adaptado às necessidades dos mares frios do bacalhau, a que deu o nome de Santa Joana. Levava a bordo, além dos 60 tripulantes, mais alguns pescadores franceses e um maquinista alemão (Fritz Bruck), como monitores. Foi seu imediato Manuel Pereira da Bela e piloto Manuel José Fernandes, da Gafanha da Nazaré. No ano de 37 (com uma viagem), o imediato continuou o mesmo, o piloto foi João Pereira Gateira e o praticante de piloto Benjamim dos Santos (Pardal).
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O arrastão de pesca lateral Santa Joana
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De novo, passou para a pesca à linha, comandando o lugre Santa Izabel, da EPA, de 1938 até 42 (inclusive). Em plena campanha de 41, o navio foi vendido à Empresa Bacalhau de Portugal, Lda., com sede em Lisboa. Foram seus pilotos os ilhavenses Manuel Gonçalves Viana (38), Manuel Pereira Bela (39), João Nunes de Oliveira (40) e José Simões Bixirão (Ponche) (41 e 42). Imediato, José Simões Bixirão (Ponche), na campanha de 40.
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O lugre Santa Izabel

O nosso capitão, a partir de 1942, não aparece nas listas de tripulação, tendo-se, certamente, aposentado.
E nascido em 1880, deixou-nos o decano, à época, dos oficiais da marinha mercante, em 1970, com noventa anos de idade.
Que elogios tecer a um homem do mar como este?
Experimentado, arrojado e prático, chefe de família exemplar era venerado e respeitado por todos que com ele trataram.
Capitão experiente de diversos lugres bacalhoeiros (dos quatro primeiros a pescar na Groenlândia) e oficial debutante do primeiro arrastão de pesca lateral, em 1936, fica para a história dos nossos heróis, bravos e destemidos marinheiros, em mares longínquos com que sempre sonharam. Mares planos e estanhados, mares revoltos e mares gelados, convés varrido por gigantescas ondas, era este o cenário com que se habituaram a conviver.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência da neta Teresa Cachim
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Ílhavo, 30 de Outubro de 2016
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Ana Maria Lopes

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Homens do Mar - Joaquim Fernandes Agualuza - 23

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Era pois, minha intenção dedicar umas palavras ao Sr. Capitão Quim da Graça, de quem me lembro relativamente bem, com moradia na dita Avenida dos Capitães. Não só dele, como de sua esposa, Senhora D. Albertina, com quem a minha Avó conviveu, tendo chegado a ir os três para as termas, várias vezes.
O Sr. Capitão Joaquim Fernandes Agualuza, muito conhecido pelo nome de Capitão Quim da Graça, nasceu em Ílhavo, na Rua Nova, em 12 de Janeiro de 1901 (-1983).
Era possuidor da cédula marítima 15291, tendo sido passada a segunda via na Capitania do porto de Aveiro, em 6 de Abril de 1931.
Era filho e neto de pescadores que se dedicavam à pesca de arrasto costeiro (a dita arte de xávega), na praia da Costa Nova do Prado. O seu Pai até teria falecido ainda jovem, em consequência de uma infecção tetânica provocada por uma patada de um boi, no decurso de um arrasto da rede.
O Quim da Graça, nome de sua Mãe, Rosa da Graça, foi um homem modesto, embora austero, por profissão, mas muito carinhoso com a Família, com uma superior paixão pelo mar, vinda de seus antecessores.
Familiar chegado informou-me que começou por fazer o Curso da Escola Náutica, após o qual foi colocado como Piloto da Barra, primeiro na Figueira da Foz e, posteriormente, na Barra de Aveiro.
Poucos anos depois, nas safras de 1923 e 25, comandou o lugre Laura, pilotado por João dos Santos Labrincha (23). Este lugre foi construído em 1921 na Gafanha da Nazaré sob o risco de José Soares. Propriedade da Empresa de Navegação e Exploração de Pesca, Lda., participou nas campanhas de 1921 a 26. Tendo imobilizado em 1927, virá a ser o Cruz de Malta, em 1928, propriedade da Empresa Testa & Cunhas, Lda.
 
Lugre Laura entre 1921 e 26
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Na campanha de 1929, foi piloto estreante, sob o comando de Manuel dos Santos Labrincha, do recente lugre Santa Izabel, mandado construir pela Empresa de Pesca de Aveiro, no mesmo ano.
Na famosa campanha de 1931, – a da pesca do bacalhau nos mares da Groenlândia, continuou piloto do mesmo lugre, sob o comando do mesmo capitão.
Com algumas lacunas de informação e, em tempo de crise, comandou o lugre Ernâni, pertença de Testa & Cunhas, Lda., pilotado por Manuel Gonçalves Viana, na campanha de 1934, ano em que o navio naufragou, pasto de chamas, por incêndio despoletado na fritadeira do fogão. O capitão, ao contar a tripulação na hora do salvamento, deu por falta de um homem – era o mestre, que, no rancho, chorava a perda do «seu» navio, que estava a arder por sua culpa. Lá foi o capitão arrastar o desgostoso mestre, para que uma vida se não perdesse em vão – «estória» oral contada mais tarde por um familiar do mestre.
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Lugre Apollo, em 1921, futuro Ernâni
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Por acta da empresa de 15 de Agosto de 1935, apercebi-me que a empresa ia preparar o Silvina para a próxima safra, em parte, para substituir o Ernâni repasto de chamas. O lugre Silvina, há bastantes anos parado e algo deteriorado, foi reparado, tornando-o navegável, no que foram gastos cerca de 50 contos, importância que não podendo, de momento, ser amortizada, deveria ser levada à conta do respectivo lugre.
Nas safras de 1935, 36 e 37, o Capitão Quim da Graça comandou o lugre Silvina renovado, pilotado, por Alexandre Simões Ré (36) e Manuel Gonçalves da Silva, de alcunha Paroleiro. (37). Na campanha de 38, transitou para o lugre Cruz de Malta, pertencente à mesma empresa, pilotado por Manuel Pereira da Bela (Violante).

Lugre Silvina, em frente à seca
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Lugre após lugre, de três mastros, de madeira, que se deslocavam aos Bancos da Terra Nova e da Groenlândia na quadra mais quente, foi ascendendo de imediato a capitão, tendo-se transferido, posteriormente, para a praça de Viana do Castelo.
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De 1939 a 1951 (inclusive), estreou, no comando, o navio-motor de ferro Santa Maria da Madalena, construído em 1939, nos estaleiros da CUF, para a Empresa de Pesca de Viana.
Teve como imediatos, os ilhavenses Francisco Fernandes Mano (39 e 40), Manuel Pereira da Bela (Violante) (41 a 44) e Armando Pereira Ramalheira (47 e 48). Como pilotos, Manuel Pereira da Bela (Violante) (39 e 40) João Simões Ré (41 e 42), Weber Manuel Marques Bela (47) e Carlos Alberto Pereira da Bela (49, 50 e 51), também nossos conterrâneos.
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De 1952 a 61 (inclusive), inaugurou, no comando, o navio-motor de ferro Rio Lima, construído nesse mesmo ano nos estaleiros Navais de Viana do Castelo, para a mesma empresa. Após a viagem de 1961, transformou para arrastão clássico.

O navio-motor de ferro Rio Lima
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Trabalhou como seu imediato, o ilhavense Manuel dos Santos Malaquias. (53, 54, 55 e 56). Como piloto, o nosso conterrâneo António Manuel de Oliveira Gordinho (53 e 54). Nos restantes anos, quer os imediatos quer os pilotos não foram de Ílhavo. 

Capitão Quim da Graça, em navio de Viana
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Segundo informação do Jornal do Pescador de Maio de 1960, p. 23, na Bênção dos Bacalhoeiros de 1960, a três de Abril, foi condecorado por sua Exa. o Presidente da República Américo Thomaz, com o grau de Oficial da Ordem de Mérito Industrial.
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E de navio em navio vianense, foi vivendo as suas safras, nos mares longínquos e gélidos. Passou a comandar o navio-motor de ferro São Ruy nos anos de 62 e 63, com Francisco Correia Marques como imediato, tendo dado por encerrada a sua actividade marítima.
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A bordo de navio de Viana do Castelo…
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Familiar próximo contou-me que o nome de Agualuza terá vindo de um comentário feito pelo Pai, exactamente com o mesmo nome. Quando na praia da Costa Nova, a rede de arrastar estava a ser puxada pelas juntas de bois, terá dito para os camaradas de pesca: – Hoje a rede vai trazer pouco peixe, porque a água está luza (leia-se luzente). E assim passou a ser tratado pelo  Agualuza.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência de familiares
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Ílhavo, 24 de Outubro de 2016
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Ana Maria Lopes
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