João
Ventura da Cruz, no ponto nevrálgico do navio
Tem-me
sido extremamente difícil conseguir algumas fotografias de João Ventura da
Cruz, bem como os dados básicos da sua biografia marítima, pois a sua ficha do
grémio apenas refere que comandou o lugre
com motor Santa Izabel, construído em 1929 por Manuel Maria Bolais Mónica
para a Empresa de Pesca de Aveiro, nos anos
de 1938, 39, 40 e 42. Ora
sabemos que os seus feitos foram muito mais.
Tentemos
explicitar.
O
Sr. João Ventura da Cruz, natural de Ílhavo, nasceu em 1880. Casado com Ascensão Ricoca, foram pais de uma abundante
prole, que ainda conheci, uns, bem melhor que outros – Maria, Aníbal, Ascensão,
João Cândido, Manuel e Nídia Ventura da Cruz. Este ano, no Verão, mais uma foto
surgiu, na casa da Costa Nova, com a sua prole. E curiosa, pois representa o
capitão, de boné (5º), e, da esquerda para a direita, sua esposa Ascensão (3ª),
e seus filhos, Aníbal (1º), Ascensão (2ª), Manuel (4º), João Cândido (6º) e
Maria (7ª). Falta a Nídia, a mais nova.
Que
sorte! Estava datada – 1935 – e
identificado o navio – lugre com
motor Santa Mafalda. Tudo conferia.
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A bordo do lugre
Santa Mafalda, com a sua prole, em Lisboa.1935
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Perante
os primeiros dados credíveis, lancei o
isco e pesquei que fora capitão, nos anos de 1922 e 24, no lugre Argonauta II, de 1925 e 26, no lugre Alcion, e de 1928 e 29, no lugre Celestina Duarte, todos da praça de
Aveiro, pilotado, respectivamente, por João dos Santos Marnoto (26 e 28) e Manuel Pereira da Bela (29).
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O
lugre Argonauta II, de três mastros, proa
de beque e popa redonda, foi
construído por Manuel de Matos Mónica, na Gafanha da Nazaré, em 1919, para a
Sociedade Argonauta, Lda., de Aveiro. O navio foi vendido em 1927 à Empresa de
Navegação Portugal e Américas, do Porto, alterando o nome para Celestina Duarte, porém, conservando a
matrícula em Aveiro. Naufragou nos rochedos exteriores do porto de Leixões, em
Fevereiro de 1933, em que faleceu o capitão ilhavense Paulo Nunes Bagão, já
septuagenário. Do lugre Alcion, soube que teve a sua origem no lugre-escuna Figueira, construído em Inglaterra em 1904, tendo sido o ex-Becca and Mary, até 1913, então registado, na Figueira da Foz. Posteriormente,
foi vendido ao capitão de Ílhavo, António José dos Santos, de alcunha Rocheiro,
tendo sido registado em Aveiro, passando a ser o Alcion, em 1920.
Na
campanha de 1930, comandou o lugre Bretanha, pilotado por Manuel Pereira da Bela, nosso patrício.
Anos
de forte crise económica. Lugres
amarrados. E os armadores, se não viessem a ter melhores resultados, prometiam
deixar os lugres ancorados a
apodrecer.
Entretanto,
conta-se que, tendo encontrado, casualmente, o rude e destemido Capitão João
Pereira Cajeira, o Sr. Egas Salgueiro, armador empreendedor, lhe fez saber que
os navios de pesca dinamarqueses e faroés, nos bancos da Groenlândia, faziam
muito boas pescas. E logo o contratou, para chefiar o lugre Santa Mafalda, com
a condição de ir pescar, sigilosamente, nesse ano, à Groenlândia. Entregue aos
seus parcos conhecimentos, o Cajeira, com a preocupação de cumprir o que havia
prometido, lá foi meter-se nos terríveis gelos e medonhos campos de gelo, onde
se viu perdido e amedrontado pela situação.
Não
chegou propriamente a pescar – muitos receios, temores e perigos,
dissuadiram-no, naquele ano, mas não perdeu a ideia de lá voltar. De regresso,
o capitão Cajeira dá uma longa entrevista ao jornal Beira-Mar, de 30/11/1930.
Frio inclemente, cortante, bizarros e gigantescos icebergs, lindíssimas auroras boreais, riscos de se perderem,
fizeram-no regressar.
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Gigantesco e medonho iceberg…
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Um
pescador disse referindo-se aos mares da
Groenlândia: – Eh! Sinhor Capitão! Aquele mar não tem passage! Aquilo era tudo
fechado que até metia medo…
O
capitão Cajeira sorridente e pensativo parecia recordar a acidentada viagem
que, pelos perigos de que foi cercada, nos faz lembrar as antigas viagens dos
navegadores de antanho.
Naqueles
anos trinta de profunda depressão e crise económica, tudo corria mal e a
situação da Empresa de Pesca de Aveiro tornara-se insustentável e os três
principais sócios da EPA reuniram-se com os três capitães Manuel dos Santos
Labrincha (1880-1954) do lugre com
motor Santa Izabel, João Pereira
Cajeira (1879-1958) do Santa Mafalda e
João Ventura da Cruz (1880-1970) do Santa
Joana a quem contaram a verdade nua e crua – estes comprometeram-se a ir
pescar à Groenlândia, de modo a que fosse conseguido o dinheiro suficiente para
pôr os navios no mar.
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E
cá está o nosso capitão João Ventura da Cruz envolvido, com sua palavra e
temeridade, na questão.
Sigilosamente,
assim foram, pois o segredo é a alma do negócio – era o lema do Sr. Egas.
A
eles se juntou o Capitão Aquiles Bilelo, de que já falámos, por convite do
amigo Cajeira, a quem prometeu reboque, já que o seu navio, o Santa Luzia, tinha menos capacidades
que os outros. Há alguns, poucos, relatos deste heróico feito, embora com
ligeiras discrepâncias.
Com
a falta de comunicações habituais para a época, mais cedo do que habitual, na
Costa Nova, vislumbra-se: Navio à vista!... Navio à vista!...
É
este…
É
aquele…
Quando,
mais cedo que o habitual, os quatro lugres,
que pescaram nos bancos da Gronelândia, chegaram a Portugal e demandaram os
seus portos de armamento, houve grande alvoroço e muito regozijo entre as
classes ligadas às actividades piscatórias. É que, de todos os veleiros que,
nesse ano de 1931, foram à pesca do
bacalhau, apenas aqueles quatro conseguiram carregamentos completos.
É bom pois, que sejam sempre lembrados aqueles
quatro arrojados Capitães de Ílhavo, seus pilotos – Joaquim Fernandes Agualuza
(1901-1983), piloto do lugre Santa Izabel, João Fernandes Matias Júnior, Britaldo (1901-1959), do Santa Mafalda, João dos Santos Labrincha (Laruncho) (1901-1980), do Santa Joana, José Vaz Mano (1904-1980),
do Santa Luzia – e suas destemidas
tripulações.
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Mas
as fainas marítimas de João da Cruz não ficaram por aqui. Creio que no ano de 1932, continuou a comandar o lugre Santa Joana, pilotado por João dos Santos Labrincha (Laruncho). Nos
anos seguintes de 33 a 35, passou a comandar o lugre Santa Mafalda da mesma empresa, pilotado por Manuel Fernandes
Matias em 1933.
Neste
mesmo ano, segundo informação do jornal local, o Santa Mafalda entrou em fins de Setembro, na barra de Leixões. Trazia
um carregamento completo de bacalhau, mas a viagem é que fora muito acidentada,
sofrendo a perda de dois tripulantes – um na Gronelândia, a 17 de Julho, de
Ílhavo, em virtude de se lhe ter virado o dóri
em que pescava e outro, a 11 da de Setembro, quando, em viagem, o lugre foi apanhado por um temporal que
lhe varreu o convés, um pescador da Fuzeta. Vidas sofridas e tempos muito
duros, que impunham respeito a qualquer um.
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O lugre Santa Mafalda
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Entretanto, na safra de 1936,
com duas viagens, João Ventura da Cruz estreou no comando o primeiro arrastão lateral português mandado
construir pela EPA, na Dinamarca, em 1935,
adaptado às necessidades dos mares frios do bacalhau, a que deu o nome de Santa Joana. Levava a bordo, além dos
60 tripulantes, mais alguns pescadores franceses e um maquinista alemão (Fritz
Bruck), como monitores. Foi seu imediato Manuel Pereira da Bela e piloto Manuel
José Fernandes, da Gafanha da Nazaré. No ano de 37 (com uma viagem), o imediato continuou o mesmo, o piloto foi
João Pereira Gateira e o praticante de piloto Benjamim dos Santos (Pardal).
O arrastão de
pesca lateral Santa Joana
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De
novo, passou para a pesca à linha, comandando o lugre Santa Izabel, da
EPA, de 1938 até 42 (inclusive). Em plena campanha de 41, o navio foi vendido à
Empresa Bacalhau de Portugal, Lda., com sede em Lisboa. Foram seus pilotos os
ilhavenses Manuel Gonçalves Viana (38),
Manuel Pereira Bela (39), João Nunes
de Oliveira (40) e José Simões
Bixirão (Ponche) (41 e 42). Imediato, José Simões Bixirão
(Ponche), na campanha de 40.
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O lugre Santa Izabel
O
nosso capitão, a partir de 1942, não
aparece nas listas de tripulação, tendo-se, certamente, aposentado.
E
nascido em 1880, deixou-nos o
decano, à época, dos oficiais da marinha mercante, em 1970, com noventa anos de idade.
Que
elogios tecer a um homem do mar como este?
Experimentado,
arrojado e prático, chefe de família exemplar era venerado e respeitado por
todos que com ele trataram.
Capitão
experiente de diversos lugres bacalhoeiros
(dos quatro primeiros a pescar na Groenlândia) e oficial debutante do primeiro arrastão de pesca lateral, em 1936, fica para a história dos nossos
heróis, bravos e destemidos marinheiros, em mares longínquos com que sempre
sonharam. Mares planos e estanhados, mares revoltos e mares gelados, convés
varrido por gigantescas ondas, era este o cenário com que se habituaram a
conviver.
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Imagens
– Arquivo
pessoal e gentil cedência da neta Teresa Cachim
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Ílhavo,
30 de Outubro de 2016
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Ana Maria Lopes
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