quarta-feira, 30 de maio de 2018

Lugre «Altair»


É um belo navio que tem mais de 60 metros de comprido por 11 de largo. E foi admirável vê-lo entrar na água, no domingo penúltimo, na Gafanha, em frente aos estaleiros com as suas bandeiras a tremularem pela viração agreste do Norte.
Foi uma festa atraente a que não faltou a concorrência numerosa e selecta e nem os hinos festivos de duas filarmónicas.
O embarque das pessoas convidadas a assistir ao lançamento do navio à água, realizou-se na lingueta em frente à alfândega, no lindo cais de Aveiro. O trajecto, feito à vela, foi rápido. No barco que nos conduzia, viam-se as pessoas mais gradas da sociedade e da magistratura aveirense, como os ilustres magistrados da Comarca, etc.
Na Gafanha, a multidão era compacta. Tivemos o prazer de cumprimentar ali, o nosso velho e querido amigo e conterrâneo sr. Manuel Rodrigues Sacramento, também sócio da empresa proprietária do «Altair», que com a sua digníssima esposa tem estado nesta vila.
O último cabo que prendia o excelente navio, que é a primeira embarcação de três mastros construída nos estaleiros da Gafanha, estava destinado a receber o corte certeiro e inteligente do ilustre capitão do porto de Aveiro, sr. Silvério Rocha, que, por uma deferência honrosíssima, delegou num dos oficiais franceses, que estão em S. Jacinto, a execução dessa formalidade.
Cortada, pois, a última amarração, deslizou serenamente pela carreira, enquanto estralejavam nos ares dezenas de foguetes, tocavam as duas filarmónicas e se prolongavam entusiasticamente os vivas e as palmas. O lindo navio varou a margem da ria, como que uma gazela que engalanada se quer pôr a descoberto, e, num instante, aparecia na cale, onde lançava ferro a tornar sublime a paisagem. Houve um momento de verdadeiro delírio, quando no castelo da proa da embarcação toda garrida de cores e ainda a oscilar fidalgamente nas águas azuis-esverdeadas do nosso lindo Vouga, apareceram muitos trabalhadores a saudar, descobertos, a multidão e a maravilhosa obra d’arte que a mesma multidão admirava. Foi um momento de indescritível entusiasmo, que se repercutiu no salão onde a Empresa «Boa Esperança» ofereceu um delicadíssimo copo d’água aos seus convidados, entre os quais o mais humilde éramos nós.
Felicitamos a Empresa do «Altair», desejando-lhe as maiores prosperidades.
(In jornal Nauta, 12 de Maio de 1918)
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O lugre «Altair» na barra de Aveiro
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Ílhavo, 12 de Maio de 2018
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Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 16 de maio de 2018

Homens do Mar - João Firmeza - 46


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Cap. João de Sousa Firmeza

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As conversas são como as cerejas, e entabulei conversa virtual com o João Paulo Firmeza, acerca da carreira marítima do seu Avô paterno. Navios para cá, navios para lá, naufrágios para cá, naufrágios para lá, arrastões para cá, arrastões para lá, fotos para cá, fotos para lá, não havia nada como marcar um encontro para degustar uma boa posta de bacalhau, depois de uma boa «chora», saborosa, aprimorada e quentinha. A conversa frente a frente desabrocharia naturalmente, evidentemente, em pleno ambiente que respirávamos. Era de interesse de ambos restaurar a vida marítima do Capitão João Firmeza, mas os dados eram escassos, havia vários hiatos, a família era pequena e quem poderia fornecer mais alguns dados, também já tinha desaparecido. Mas, não vamos desistir. Se hoje, ainda chegamos a alguns relatos, mais tarde, a muito menos chegaríamos e mãos à obra…

Segundo a ficha do Grémio, João de Sousa Firmeza era natural de Ílhavo, da Rua Dr. Samuel Maia, filho de João de Sousa Firmeza e de Maria Victoria Tourega, nascido a 26 de Janeiro de 1896. 
Do casamento com Maria Razoilo Senos, a 29 de Julho de 1920, nasceram os filhos Maria Rosalina Razoilo Firmeza, João Francisco de Sousa Firmeza, e Paulo Manuel de Sousa Firmeza, sendo o João Francisco de Sousa Firmeza, já falecido, pai do João Paulo com tive o prazer de conversar. Mais uma vez, esta nossa moda ílhava – nomes muito parecidos, senão repetidos e, por vezes, os sobrenomes dos filhos diferentes. Esclarecido, na questão familiar. Parece-me.
João Firmeza era portador da cédula nº 9107 passada pela Capitania do Porto de Aveiro, em 25 de Janeiro de 1916, o que prova que, a partir desta data, já poderia navegar, mas nada nos aponta nem quando, com que cargo, nem onde, salvo algumas excepções.
É algo estranho que o seu nome, mesmo em registos jornalísticos, apenas apareça, em 1927, 1928, 1929 e 1930, de piloto, no lugre Silva Rios, da praça do Porto, nas safras de 1927 e 28, sob o comando de João Francisco Corujo, no lugre Senhora do Carmo, da praça da Fuzeta, na safra de 1929, sob o comando de Zacarias Mendes Correia, natural da Fuzeta e na safra de 1930, no lugre São Paulo, com sede na Figueira da Foz, sob o comando de António Augusto Marques (Marcela).
Em anos de forte crise, é possível que tivesse viajado no Brasil, em viagens do comércio, o que aconteceu com alguns ílhavos. O neto, residente no Brasil, por razões profissionais, já tentou seguir o rasto do apelido Firmeza, abundante em terras de Cabral, mas não chegou a nenhuma conclusão segura. Fica como hipótese.
Na campanha de 1939, portanto com 43 anos, ressurge como piloto do lugre Santa Quitéria, da praça de Aveiro, sob o comando de João Nunes de Oliveira Sousa, seu conterrâneo. Como já referido, este lugre-motor, ex-navio dinamarquês Vénus, construído em 1919, iniciou a pesca do bacalhau na campanha de 1935, propriedade da Empresa de Pesca Lavadores, Lda., com instalações de secagem, na Barra.
Eu e os registos fotográficos…uma imagem a bordo do D. Denis com alguém que não me era totalmente desconhecido, levou-me à Gafanha da Nazaré, num ápice, pensando que o amigo Marques da Silva seria o informador ideal. E acertei! Há uns dias, no Museu, tinha falado do Cap. Firmeza com grande à-vontade, tendo eu conhecimento que o conhecera com cerca de nove anos e que a diferença de idades era, consequentemente, grande. Mas, nessa meninice passada na Nazaré – que sorte me bafejara!–  convivera paredes meias com o capitão Ferreira da Silva, com o armador Manuel Pascoal e familiares de ambos. Então, em pormenores mínimos diferenciadores dos lugres D. Denis e Rainha Santa Isabel, dava gosto ouvi-lo. Era esta a foto:
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Em 1940, o capitão Ferreira da Silva (à esquerda e o piloto João Firmeza, à direita-

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O lugre-motor de madeira D. Denis fora construído para a Pascoal & Filhos Lda. por António Maria Bolais Mónica, na Gafanha da Nazaré, em 1940, tendo feito já essa campanha, uma estreia, sob o comando do Capitão Ferreira da Silva, também gafanhão, tendo levado como piloto, João Firmeza. São os tais «puzzles» de temática marítima, que adoro compor, uns mais fáceis, outros mais difíceis, consoante o percurso e os contornos.
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Em 1941, de «enxoval» às costas, mudou para o convés do lugre de madeira Rainha Santa, como capitão, tendo como piloto, Francisco Fernandes Mano.
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O ano de 1941 em que se tinha perdido o lugre Silvina, por incêndio, despertou-me interesse, tendo ido reler o capítulo O Silvina em chamas, da obra de Jorge Simões, Os Grandes Trabalhadores do Mar, que na campanha de 1941, tinha sido integrado na nossa frota, no lugre Groenlândia, para observação dos nossos homens, em perigos, nevoeiros, brisas, trabalhos, gelos e tudo o mais que viesse a surgir. Rebusco, então, alguns parágrafos desse capítulo:
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(…) Subitamente, soou pela rádio uma voz que traduzia espantosa aflição e angústia, uma voz que gritou enrouquecida:
«Chamada geral! Chamada geral a todos os navios!... Daqui o Silvina, o capitão do Silvina!... Tenho o navio a arder!... E não tenho posição!...»
O que isto significa para um navio com fogo a bordo, debaixo do nevoeiro, só pode ser verdadeiramente compreendido por quem se encontra nestas paragens. Um pavor!... (…) Ao angustioso apelo do capitão do Silvina responderam numerosos barcos:
«Vamos suspender, vamos em teu socorro. Vamos todos, todos os navios de motor. Mas diz-nos alguma coisa. Vibravam os amplificadores: «Atenção! Chamada urgente!... Chamada geral!...O Silvina está a arder!»
«Suspendam, suspendam todos, vão acudir ao Silvina, ao capitão José Cachim!...» (…)
Às oito horas e dez minutos, voltou a soar a voz, cada vez mais enrouquecida e entrecortada pelos soluços do capitão do lugre que o azar transformara numa fogueira gigantesca a baloiçar ao cimo das vagas:
«Toda a companha está nos botes. O navio, ai o meu rico navio, está pronto. Eu estou sozinho a bordo.»
Aconselharam do Santa Princesa: Deixe o motor do transmissor da rádio a funcionar. Salte para os botes! Não se afastem muito. Vão todos os navios à vossa procura!»
Em onze dorys aguardavam os náufragos, desde as oito e um quarto da manhã, que os fossem buscar. Diversos navios viram passar destroços, junto dos costados. Mas chegou a noite e os lugres tiveram de fundear, sem nada haverem descoberto.
Quando às quatro horas e quarenta minutos da manhã, o velho capitão João de Sousa Firmeza, veterano da pesca do bacalhau, comunicou que os náufragos, num clarear súbito do tempo, tinham descoberto o seu navio, o Rainha Santa, mesmo junto deles, a alegria foi indescritível (…).
O Groenlândia dirigiu-se também para lá. E a tripulação foi distribuída por vários lugres, entre eles o Groenlândia, que levava, a bordo, o jornalista. Desceram o bote já comigo (Jorge Simões) para o outro lugre, o Rainha Santa, de que o capitão lhes fez um acolhimento cordial.
Assim se perdeu o Silvina, no meio de chamas, no dia 25 de Maio de 1941.
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E neste belo e verídico relato, encontrámos referências elogiosas ao velho capitão Firmeza.
O Rainha Santa Izabel, como já referido, ex-Rainha Santa, foi construído para a firma Pascoal & Cravo, Lda., na Gafanha da Nazaré, em 1929, por José Maria Lopes de Almeida. Por dissolução desta empresa, em 1937, o navio alterou o nome para Rainha Santa Izabel, tendo sido, então, propriedade de Pascoal & Filhos, Lda. Foi seu capitão João de Sousa Firmeza, nas safras de 1942 e 43, tendo sido seu piloto João Juff Tavares Ramos, em 1942 e imediato, em 1943.
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À direita, João Firmeza e a meio, o armador, Manuel Pascoal. Entre 42 e 43
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No Rainha Santa Izabel, à nossa direita, o Cap. João Firmeza

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Nos anos de 1945 e 46, servira a empresa Testa & Cunhas no elegante lugre-motor de quatro mastros, que o meu avô estreara em 1938, o Novos Mares, como capitão, levando como imediato, em 1945, Francisco José Campos Evangelista, de Esposende, e Carlos Veiga Correia de Oliveira, em 46, natural de Setúbal.
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À entrada de Leixões, o Novos Mares. Fotomar.
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Na safra de 1948, o naufrágio do lugre Gaspar estava guardado para a responsabilidade do Capitão João Firmeza, já que durante vários anos anteriores, navegara sob o comando do nosso conterrâneo Manuel Mendes, falecido em 1947, na cidade de Viana. Segundo O Ilhavense de 20 de Setembro e o Comércio do Porto de 17 de Setembro de 1948, estando quase finda a época piscatória nos mares gelados da Groenlândia e Terra Nova, o destino não quis deixar de assinalar com mais uma tragédia a sua louca sofreguidão.
O lugre Gaspar, açoitado violentamente pelo vendaval que pairou, durante horas, em todo o Atlântico Norte, correra risco grave, ao ser abatido a tiro pelo cutter da Guarda Costeira Americana «Bibb», mas felizmente, o seu apelo fora captado.
O capitão lançou um SOS e logo em seu socorro rumou o navio-hospital «Gil Eanes», que saíra há dois dias de St. John’s, bem como a fragata americana
«Cecil N. Bean», o navio «Tropero», o cruzador «Albany» e o contratorpedeiro «Purdy», além de dois bombardeiros americanos e um hidro-avião de vigilância da costa, que procuraram localizá-lo, bem como recolher os seus tripulantes. Foram distribuídos por outros lugres, com excepção de Salvador Gonçalves Vieira, de Viana do Castelo, que fora levado por uma vaga que varrera o convés do navio, na véspera do acidente.

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O lugre Gaspar, em 1947
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O lugre Gaspar, ex-Sarah, construído em 1919, na Figueira da Foz, por Manuel Maria Bolais Mónica, foi comprado para a campanha de 1921 pela Empresa Novas Pescarias de Viana, Lda. Embora construído em madeira, estava revestido a chapas de ferro e era equipado com um motor de propulsão.
Uns anos mais tarde, o Cap. Firmeza retomou a pesca do bacalhau, mas, desta vez, no arrasto. Na safra de 1954, no arrastão João Álvares Fagundes da SNAB, na 1ª viagem, de imediato, sob o comando de José Nunes de Oliveira e, na segunda, de capitão.
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Na ponte do arrastão João Álvares Fagundes
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Após alguns hiatos, em que não se encontram referências, na safra de 1958, foi de imediato no arrastão Águas Santas, na 1ª viagem, sob o comando de Manuel Lourenço Catarino, também de Ílhavo. Este arrastão de aço foi construído para a Empresa Comercial e Industrial de Pesca, no estaleiro T. Van Duijvendijk’s Scheeepswerf em Lekkerk, Holanda, em 1949.
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Arrastão Águas Santas. Foto de autor desconhecido
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Depois da aposentação, integrou-se no grupo de oficiais com quem se dava, aparecendo em algumas fotos de grupo, já apresentadas, noutros locais, em conversas pelo jardim, em jogos de cartas no Sindicato dos Oficiais no segundo andar do edifício do Illiabum Clube e em almoços/encontros de circunstância, cá em Ílhavo, em Lisboa ou de visita a Évora.
Em 21 de Setembro de 1968, deixou-nos, depois de grande parte da vida passada sobre as salsas ondas do oceano, entre perigos, nevoeiros e gelos traiçoeiros, com 72 anos de idade.
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Fotos cedidas pelo neto João Paulo Firmeza.
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Ílhavo, 17 de Abril de 2018
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Ana Maria Lopes
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