quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Irreversível ausência

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Marinha


Nesse dia, a sala estava bela, repleta de tudo: encontrava-se muito aconchegante; aquecida por uma fogueira crepitante que soltando faíscas avermelhadas, criava um ambiente quente e acolhedor.
Em volta da mesa, primorosamente decorada, sentadas em dez cadeiras, encontravam-se três gerações saboreando a ceia de Natal – o tradicional bacalhau cozido; o peru assado e recheado; as frituras da quadra; a doçaria regional da época e goles saborosos de um néctar precioso, fresco e espumante.
Todos conversam. Sorriem. Pensam. Entreajudam-se. Colaboram.
Entre eles, encontra-se uma mulher, com belos traços, já um pouco marcados pela passagem do tempo, e de rosto enigmático, vestindo um magnífico traje festivo, de tons contrastantes, entre o preto e o vermelho vivo.
Ela revê-se naquelas alegres crianças, encantadas pelo ambiente festivo, mas por momentos, ausenta-se e parece escutar uns trinados de guitarra dolentes misturados com o murmúrio plangente do mar, que ao longe se manifesta, fazendo-a lembrar.
A sua alma sente e soluça em silêncio, num pranto disfarçado, entre risos e conversas amenas.
Ali, naquela mesa, reina a alegria em família, mas só ela escuta, vê e sente o vazio que ficou, naquela cadeira, numa sala cheia de tudo...
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Foto – Gentil cedência de TCS

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Ílhavo, 24 de Dezembro de 2015
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Ana Maria Lopes
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sábado, 19 de dezembro de 2015

A gamela ou masseira de Vila Praia de Âncora

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Prosseguindo a minha pesquisa acerca das embarcações dos rios e das praias do norte, desci um pouco para o sul de Caminha e parei em Vila Praia de Âncora.
Os autores do trabalho que me ajudou na construção do carocho de Caminha, desenvolvem igualmente os seus estudos na direcção de uma embarcação utilizada pelos pescadores de Âncora, que nesta praia toma o nome de gamela ou masseira.
Assim, continuando a seguir atentamente a, «Adaptação sob desenhos de José Gonçalves e Apontamentos e memórias de João Baptista», obtive mais uma vez, as informações que desejava, para construir um modelo desta invulgar embarcação de pesca.
Dizem-nos os autores deste estudo que na Galiza se utilizava também uma masseira muito parecida com esta, mas é a de Âncora que vou tentar reproduzir tão fiel quanto me for possível.

De proa

Grato a estes dois estudiosos e seguindo as suas preciosas memórias, comecei por preparar como de costume, um plano de construção de modelo, simplificado, para reproduzir uma masseira com cerca de quatro metros e oitenta, na escala de 1/25, que é a que mais costumo utilizar.
Principiando este trabalho, logo fui verificando que sendo tão próximas estas localidades, o método de construção utilizado no carocho e nesta masseira, são totalmente diferentes.
Na verdade, tanto na forma, como no aspecto, estas duas embarcações também em nada se podem comparar.
O «shell-first» utilizado na construção do carocho é aqui completamente esquecido e voltamos a ter primeiro a preparação do painel do fundo, onde se vão aplicar as quatro cavernas, seguidas dos respectivos braços.
Como na masseira não há roda de proa nem cadaste, estas peças são substituídas por painéis trapezoidais, que depois de colocados nos seus lugares a vante e a ré do fundo vão receber as tábuas dos costados.
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De popa

Ficamos assim com uma embarcação de formas específicas, diferentes de todas as que tenho vindo a reproduzir nos modelos que tenho construído.
É na verdade na sua forma muito semelhante a uma gamela ou masseira, mas suficientemente reforçada interiormente e com dimensões para poder suportar ser utilizada na pesca e vir à praia em mar aberto.
Por esta razão, tem pregadas no fundo a todo o comprimento, a meio e nos lados, umas largas réguas para protecção ao apraiar.
Interiormente tem três bancadas, sendo a de vante com uma enora para o mastro. Tem paneiros a vante e a ré e duas anteparas transversais, sendo uma na primeira caverna de ré e outra na última de vante.
As chumaceiras para escalamões são três por bordo, podendo assim usar dois ou quatro remos para sua deslocação com falta de vento.
No painel de ré tem ferragens para aplicação de um leme de cana, cuja porta desce abaixo do fundo.
Usa vela de pendão de amurar a vante, do tipo poveiro. Como palamenta tem quatro remos, um vertedouro e uma âncora de pedra, dita poita.
 
Pormenor interior com palamenta

Na construção deste modelo, como de costume, utilizei madeira de limoeiro no cavername e de choupo no tabuado. Nas ferragens arame de cobre e na vela pano de algodão. Como medidas temos:
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Comprimento………….4.80 metros
Boca………………………..2.20 m
Pontal…………………….. 0.60 m                               
Escala ……………………. 1/25

 
10 / 09 / 2015
António Marques da Silva 

Ílhavo, 19 de Dezembro de 2015
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Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

De novo, o livro «Faina Maior»...

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O meu blogue, além de muito mais, não deixa de fixar as minhas explanações, aquando da apresentação de livros. E esta, não sei bem porquê, não tinha sido registada. Ainda vai a tempo, agora a propósito da 3ª edição do livro Faina Maior – A Pesca do Bacalhau nos Mares da Terra Nova. Faina Maior, um título forte, belo, feliz e sugestivo, que sai uma vez na vida, muito mais forte que a «Grande Pêche» dos franceses. Alimentou muitíssimos conteúdos expositivos e continua a ser um entretém de muito mais estudiosos e evocadores. Ainda bem. A semente deitada à terra germinou com fervor. Quem, antes de 1992, ouvira falar da Faina Maior?
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Caros Amigos/Amigas, porque de um encontro de Amigos se trata…
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Não venho propriamente apresentar a Faina Maior. Foi mais que apresentada, há 15 anos.
Em primeiro lugar, o meu agradecimento à Associação dos Amigos do Museu, da qual faço parte, por ter levado a bom porto a reedição do livro Faina Maior – A Pesca do Bacalhau nos Mares da Terra Nova, publicado pela primeira vez em 1996. O tempo foi passando e…
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…a minha história de «vida em comum» com o saudoso Francisco Marques, associação irrepetível, é, ou deveria ser sobejamente conhecida. Já tem sido contada. Mas nunca será demais.
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Foi o gosto pela pesca do bacalhau que nos uniu. Encontrámo-nos na antiga Escola Preparatória em actividades culturais e por aí começou a nossa cavaqueira.
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Primeira realização: o documentário À Glória desta Faina, que foi visionado neste Auditório do Museu, nos dias 4 e 11 de Novembro de 1989 – duas enchentes a que se não estava habituado. Os nossos homens do mar mereciam essa «homenagem», se assim lhe quisermos chamar.
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Entre mim e o Francisco surgiu a ideia de construir uma cozinha de bordo no Museu, se eu viesse a ser Directora…como constava. E atrás da cozinha, vieram a escala, o porão, o convés, o convés da popa, o beliche e rancho e o salão de oficiais, a começar pelo dóri, o pequeno/grande herói da pesca à linha, com o seu único ocupante, o homem do dóri.

Conferência de imprensa de apresentação da exposição
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Abriu em Outubro de 1992 a grande exposição A Faina Maior – Pesca do bacalhau à linha, que, de temporária, após um ano, passou a permanente.
De certo modo, marcou a evolução cultural da nossa terra, activando os sectores que com ela tinham ligações. Tem estado na base de muitos discursos expositivos, em volta do mesmo tema – basta recordar algum tipo de eventos…ou instituições – A Confraria Gastronómica do Bacalhau, As Tasquinhas do bacalhau, os vários livros da mesma temática que, posteriormente, têm vindo a lume, sob a chancela de diversas editoras…
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E o livro Faina Maior? Sim, este livro? Tendo uma equipa da Quetzal visitado a exposição em Maio de 93, havia-nos feito uma proposta de «pôr» a Faina Maior em livro.
Recebemos a proposta de braços abertos – foi o selar, por escrito, de uma grande Exposição, que, ainda hoje se mantém com melhoramentos.
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Assumimos ambos o compromisso, com os dissabores dos atrasos e as alegrias do sucesso. O texto veio a lume no Verão de 93, mas o lançamento, com as demoras habituais, teve lugar a 22 de Junho de 1996. Dividimos irmãmente os louvores, tanto que recebemos o Leme do Ano (ex-aequo), de reportagem, a 28 de Junho do ano seguinte. 
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Ao recebermos o Leme do Ano, 1997
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O livro, entretanto, esgotara e era um firme desejo da Associação dos Amigos do Museu concretizar a sua reedição.
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Por razões de vária ordem, ainda não tinha sido possível, mas, este Verão, ao arquitectarmos alguns posts do Marintimidades sobre «Creoula – 1973, através da objectiva de António São Marcos», conseguimos ultrapassar, através de um procedimento levado a efeito há vinte anos um problema técnico que existia com essas fotografias. Enfim, foi superado.
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Por outro lado, durante uns tempos, achei alguma piada a que dois dos livros em que mais me tinha empenhado estivessem esgotados, mas, com o andar dos tempos, passei a não achar tão curioso assim. Se, na realidade, não pudéssemos pôr as mãos à obra, não seria muito fácil reerguê-la. Gostava de deixar a Faina Maior, à venda
E esperancei os Amigos do Museu. Muitas voltas foi preciso dar para se alcançar o intento.
É que …
Entre as duas edições, decorreram 15 anos, o suficiente para que a técnica de «fabricar» um livro tivesse mudado como do dia para a noite. O texto, de dactilografado passou a digitado (processado), as imagens, de suporte em papel, passaram a ser digitalizadas, melhoradas, tratadas, photoshopadas q. b.
Sem esquecer, o principal – reencontrá-las, entre tantas mãos por que passaram. O nosso muito obrigada a quem no-las cedeu e ao meu filho Miguel, estou grata pelo apoio técnico dado, mesmo à distância.
Ganhámos uma ansiedade e uma paixão com a re-pesquisa
Era nosso desígnio, pela falta do saudoso co-autor Francisco Marques, manter o livro inalterável. E com perseverança, conseguimo-lo.
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O tema escolhido – a reportagem ou o relato – de uma campanha de barra a barra (neste caso, da de Aveiro), de um lugre da pesca do bacalhau à linha, dos anos 30/40, com toda a azáfama, dureza, angústia, saudade, sacrifício e empenho, era imutável.
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Quase ninguém andou lá, porque tivesse querido. A Faina Maior, com toda a sua austeridade, era um modo de vida…E estas memórias fazem parte de quem teve familiares ao bacalhau e quase todas as pessoas de Ílhavo os tiveram.
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Dentre os cerca de 13 capítulos que reescrevi, voltou a deliciar-me o depoimento ao jornal «Beira-Mar», de 30.11.1930, em que o Capitão Cajeira relata a sua primeira tentativa de chegar à Groenlândia.
No ano seguinte, 1931, três navios da Empresa de Pesca de Aveiro – o Santa Izabel, o seu «gémeo» Santa Mafalda e o Santa Joana – por ordem explícita do seu gerente, demandaram a Groenlândia.
Tendo oportunidade de ler atentamente algumas actas, da mesma época, de Testa & Cunhas, criada em Dezembro de 1927, a partir da aquisição dos bens da Empresa de Navegação e Exploração de Pesca de Aveiro (todos os aprestos, extenso secadouro e os lugres Hernâni, Silvina e Cruz de Malta), constatei que os tempos de crise, escassez de peixe, dureza de vida, dificuldades financeiras, eram comuns às empresas do sector. E o meu Avô, o Capitão Pisco, por lá andava.
Em acta de 7 de Dezembro de 1932, os sócios resolveram quais os navios que deviam ir à pesca do bacalhau nas futuras safras de 1933 e 34, tendo assentado apenas na ida do Ernani e Cruz de Malta.
Decidiram ainda anunciar a venda do navio Silvina, entendendo que o podiam dispensar. Mas…
Depois de elaborada a acta de 11 de Agosto de 1934, (sic) chega-nos a notícia infeliz do desaparecimento do nosso lugre Ernani nos bancos. Ignoramos pormenores – causas e paradeiro dos tripulantes. Só mais tarde se soube que a causa tinha sido incêndio e que os tripulantes haviam sido distribuídos por navios dos pesqueiros próximos, onde se revelaram muito úteis no auxílio das penosas tarefas.
Toda esta falta de notícias, em 1934 é um testemunho da rudeza desta vida.
Para suprir a baixa daquela unidade, resolveu-se reparar o lugre Silvina, de modo a estar pronto para a futura safra, para o que foram gastos cerca de 50 contos.
Acentuava-se na empresa, a necessidade de procurar uma nova unidade. Segundo acta de 28.11.1936, deram-se início a todas as diligências para a aquisição de um novo lugre. A proposta foi construir um, segundo o modelo do Brites (1936), com a introdução (sic) de algumas alterações, com empreitada de lavôr e materiais com o construtôr, Mestre Manuel Maria Mónica, pelo preço de 640 contos.
Encomendado em fins de 1936, o Novos Mares, de quatro mastros, beijou as calmas águas da ria, para satisfação de todos, a 16 de Abril de 1938, na Gafanha da Nazaré. O meu Avô capitaneara-o na primeira viagem, só à vela, à Groenlândia, já que o motor não havia chegado a tempo da viagem.
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O Silvina foi prosseguindo a sua difícil missão, até que viu o fim em trágico incêndio, no Grande Banco da Terra Nova, a 25 de Maio de 1941, narrado por Jorge Simões em Os Grandes Trabalhadores do Mar.
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Deixemos as actas da Empresa e voltemos à «produção» do livro.
Teclámos o próprio texto, porque sabíamos parágrafos de cor e dominávamos com facilidade o tecnicismo dos termos, que nos eram familiares.
E a imagem? Como, no meio de tantas mais que foram achadas, repescar aquelas 142 fotos e aquelas mesmas, que, por tantas mãos andaram e tanto se dispersaram?
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Aos poucos fomo-lo conseguindo. Conhecíamos-lhe o tacto, o odor, o aspecto, o tamanho, as marcas do tempo, a grandiosidade.
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Preparativos do lançamento, à noite, no Museu
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Consumou-se o acto. A Faina Maior, livro, está de novo à venda, – era o nosso objectivo –, para uma outra geração, ou para aqueles que por descuido, o não tenham ainda adquirido.
Vamos tentar divulgá-lo, com fervor, por algumas das terras que forneceram homens para esta heróica labuta. Assim tenhamos apoios e algumas facilidades nessas presumíveis andanças.
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Caros amigos e amigas. Muito obrigada, sobretudo, pela vossa presença!
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Fotos – As duas primeiras de Carlos Duarte e a terceira de Fernando José Morgado
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Ílhavo, 19 de Fevereiro de 2011
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Ana Maria Lopes
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sábado, 12 de dezembro de 2015

Ceia de Natal - as mulheres das secas

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Aproxima-se o Natal… a ceia… o bacalhau cozido com todos como uma das nossas principais tradições gastronómicas natalícias.
É confrangedor que ele não possa mimosear as mesas de todos os portugueses.
E por associação a bacalhau, recordemos o trabalho árduo, que foi, o das mulheres, nas secas.
 

Uma das últimas secas tradicionais…a IAP. s/d

Com o andar dos tempos, com o avanço das tecnologias, com regras mais higiénicas, com as exigências da ASAE, com a competição aguerrida, viriam a acabar, mas, para amostra, nem uma, naquele seu tabuado acastanhado, trincado, nos seus extensos armazéns, na sua carpintaria consertadora dos dóris, nos tanques/lavadouros, frequentemente exteriores e rústicos, singulares e típicos carros-de-mão de roda de ferro e, sobretudo, naquela vastidão imensa do «secadouro», com as tradicionais «mesas» de arame para exposição do «fiel amigo» ao sol.
 

Em primeiro plano, os carros de mão…1927

Os tempos são outros, o progresso fez-se sentir, mas as mulheres das secas, sobretudo da Gafanha da Nazaré e arredores foram grandes MULHERES e merecem a honra desta singela homenagem.
Tive, por afinidades familiares, contactos, com as ditas mulheres, verdadeiras heroínas, pelo início dos anos sessenta, em que os trajares já eram mais aligeirados do que foram, outrora, e, porventura, as mentalidades, um tudo ou nada, mais abertas. Foi, então, que me deu para as fotografar.
Os clichés a preto e branco, num tempo em que «clicar» não era vulgar como agora, aprecio-os mais, porque são imagens de um passado que não volta, a que tive oportunidade de assistir ao vivo. E até de surripiar, para saborear, umas lasquinhas de bacalhau, das altas e ordenadas pilhas. Era uma técnica dura, pesada, mas perfeita, cheia de saberes e de «conhecimentos».
 

Lambreta carregada…Início de sessenta

As secas do bacalhau, na Gafanha, empregavam muitas centenas de mulheres, durante parte do ano, havendo empresas onde o trabalho era permanente, porque abrangia duas campanhas, a dos lugres e a dos arrastões.
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A escritora Maria Lamas, que andou pela nossa região na década de quarenta, recorda a maneira de viver das mulheres da Gafanha, com a sua ignorância, o seu fatalismo, mas também com a sua responsabilidade e solidariedade. Assim, acentua Maria Lamas (…), a psicologia das trabalhadoras das secas de bacalhau, desembaraçadas, faladoras e alegres, como se a vida lhes não pesasse. Em conjunto, nas horas de plena actividade, cantando em coro ou simplesmente escutando os programas de rádio, elas constituem um quadro de plena vitalidade e de optimismo. (…)
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O trabalho da mulher, nas secas, consta de: descarregar, lavar, salgar e levar o bacalhau, todos os dias, para as “mesas” da seca, recolhendo-o à tarde; depois há ainda a tarefa de o empilhar, seleccionar e enfardar. (…) A lavagem faz-se em tanques; depois o peixe é colocado, em pilhas, a escorrer, sobre pequenos carros, que cada mulher conduz à secção onde recebe o sal. (…)
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As mulheres, que se ocupavam nestes serviços, eram de todas as idades, solteiras e casadas, predominando as mais jovens. Tinham consciência plena da dureza daquela vida de labores diversificados e pesados. Se o tempo estava bom, a tarefa era-lhes facilitada.
 
 
Escolha e separação do peixe…Início de sessenta
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Um criativo designer de moda, hoje, inspirar-se-ia nos trajes das mulheres das secas para uma toilette jovial e contemporânea – saias sobre calças, caneleiras (canos) sobre o calçado e chapéu sobre o lenço…que tal? E, não raro, botas de borracha, a que hoje se chamam galochas. Um laivo de modernidade?..

E a tarefa prossegue… Início de sessenta

Já agora, se temos receado que as crianças e pessoas menos conhecedoras do assunto pensem que o bacalhau é um peixe espalmado, tal qual o vemos nos supermercados/mercearias, com cura mais ou menos tradicional, temamos também que com a visita ao aquário do MMI, as crianças comecem a exigir aos pais a presença de um aquário, na cozinha, com bacalhaus pequeninos, tal Nemo, colorido e listado, com a sua história comovente.
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Clichés de João Teles – 1 e 2 e da autora do blogue – 3,4 e 5
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Ílhavo,12 de Dezembro de 2015
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Ana Maria Lopes
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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

«Faina Maior - A Pesca do Bacalhau nos Mares da Terra Nova»

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Tendo-se esgotado a 2 ª edição do livro Faina Maior – A Pesca do Bacalhau nos Mares da Terra Nova, da autoria de Francisco Marques e de Ana Maria Lopes, dada ao prelo pela 1ª vez pela Editora Quetzal, em Junho de 1996, os Amigos do Museu Marítimo decidiram levar a cabo uma terceira edição, ipsis verbis, como era necessário e calculável.
Dado o escasso tempo que mediou entre as duas últimas edições, não se fará nenhuma apresentação. A FAINA MAIOR destes dois autores está apresentada, q. b.
Um trabalho memorável, adequado, intenso, que conta uma campanha de barra a barra (barra de Aveiro) por navios da frota bacalhoeira, pelos anos 30, não podia ser modificado e, muito menos, mexido. É aquela epopeia, mesmo.
Com 112 páginas, em bom papel couché, é ilustrado por 142 fotografias a preto e branco, algumas de página inteira, fortes e intensas imagens de época, recolhidas, a custo, no espólio dos nossos homens do mar, bem como, outras, parte integrante das belíssimas imagens de Alan Villiers, todas identificadas.
Livro com apresentação cuidada, de capa dura, e sobrecapa a cores, com uma belíssima fotografia do GAZELA, de Friedrich W. Baier.
Prefácio do Professor Mário Ruivo.
O livro já está à venda da livraria do Museu, na Livraria Santos (Ílhavo), na Leya e Socodante, em Aveiro, na Livrapal, na Gafanha da Nazaré e em «O Ilhavense». Virá a vender-se, igualmente, na loja do navio Gil Eannes, em Viana do Castelo, dentro em breve.´
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Ílhavo, 10.12.2015
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AML
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sábado, 5 de dezembro de 2015

A Liga Naval em Ílhavo


A propósito do incêndio que houve, na noite de 23 para 24 do mês passado, no chamado Palacete dos «Cartaxos» e, tendo lido que ele, possivelmente, teria sido mesmo sede do Sindicato dos Mareantes, andei a catar este texto de Diniz Gomes (que sabia existir), que agora respigo. Tardou, mas apareceu:

Ílhavo – terra essencialmente marítima, possuindo cerca de cento e cinquenta oficiais náuticos e mais de três mil indivíduos que do mar tiram o seu sustento num árduo e arriscado mister tão cheio de riscos e privações, quer tripulando a maioria dos nossos navios costeiros e de longo curso, quer ocupando-se no trabalho da pesca nos bancos da Terra Nova, nas armações de Setúbal, Sesimbra, Matosinhos e ainda nas companhas de arrasto das costas do litoral – devia possuir também uma associação de classe marítima para acompanhar o movimento associativo dos tempos modernos e ter quem pugnasse pelos interesses e regalias dos homens do mar. 
 
Assim o entendeu um grupo de patrícios nossos e, no desejo de verem realizado o ideal almejado com tanta ansiedade e preenchida a lacuna que tanto se fazia sentir, lançou mãos animosas à obra, em princípios do ano de 1899.
 
O esforço foi coroado do melhor êxito, congregando-se todas as vontades, reunindo-se os melhores elementos e unificando-se todos os alvitres, por forma a que, no dia 19 de Março daquele ano, era inaugurada a nova associação com o título de Grémio Marítimo Ilhavense.

Em 11 de Março do ano corrente, a convite da Liga Naval de Lisboa, o Grémio ligou-se àquela importante corporação, seguindo assim o exemplo de outras agremiações congéneres do país.

As vantagens desta fusão são incalculáveis, porquanto ninguém ignora a importância e influência política e social da Liga e os recursos de toda a natureza de que ela dispõe, benefícios de muita valia que se reflectem nas juntas locais. Disso são testemunho eloquente os trabalhos, com resultados práticos, do último Congresso Marítimo, brilhantemente levado a cabo ultimamente pela Liga, em Lisboa.

A Junta Local de Ílhavo encontra-se actualmente florescentíssima, com vida desafogada e futuro animoso, possuindo, no melhor prédio da vila, uma magnífica instalação, cuja estampa hoje se publica.



Sede da Liga Naval em Ílhavo


É grande e distinto o número dos seus associados, que, pela reforma ultimamente introduzida nos estatutos, podem ser de todas as classes sociais. Desta arte, ali se reúnem num fraternal convívio – postos de parte estultos preconceitos de desigualdades de nascimento e posição – desde as pessoas mais gradas da terra, ao mais rude e modesto homem do mar. E não é consoladora e simpática esta confraternização de todos os nossos patrícios?


Ílhavo… mais pobre, além de outras valências que o prédio teve.


Ílhavo, 21.10.1903
 
DINIZ GOMES


Cliché do periódico Mala da Europa

Ílhavo, 5 de Dezembro de 2015

Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Os «Vougas» - influência na paisagem lagunar


O lazer na ria - 3

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(Cont).
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Pelos anos 50/60, um passeio de Vouga era tão desejado, que até havia quatro Vougas, o Navegador I, II, III e IV, pertença do Senhor Francisco Tainha, murtoseiro, que fazia a época de veraneio, para aluguer, ao mesmo tempo que tinha também para o mesmo efeito, quatro bateiras – a Miúda, a Tildinha, a Fernanda e a Kiss me.
Se o grupo veraneante, não tinha quem comandasse o barco, um dos arrais mais a jeito (ganharia uns trocos e o prazer de velejar), era com frequência o Capitão Manuel Mendes, um rapazote, à época.
Segundo opiniões avalizadas, os Navegadores eram uns tamancos, pesadões, construídos de eucalipto, na Murtosa, sendo o Navegador IV, o mais aproximado de um verdadeiro Vouga.
Não há dúvida que aquela espécie de baía, que ali formava a ria, junto da última Mota (1941), onde atracavam as barcas da passagem, em verdadeira atracação à Labareda, era o coração da praia – a Milú, a Namy, a João Luís, as 8 embarcações de aluguer, a lancha Razalas, o Lena II, o Rio Vouga e algumas bateiras de pesca.

Postal em circulação nos anos 60 
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E tudo vento levou…
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Disseram-me, pois o barco era-me familiar, que, uma vez, um tal Major Ferrer apareceu junto do Mestre Gordinho com um barco mais pequeno, cerca de uns 5 metros de comprimento, de nome, Lena I, pedindo-lhe que lhe construísse um, idêntico, que resultou mais comprido (perto de 6 metros), com poço dividido transversalmente e se viria a chamar Lena II. Assim o fez, por volta de 1942. Este bote, dito «de linhas quebradas», porque de construção mais económica e mais fácil, em que as cavernas já não tinham a dificuldade do arredondado, não sendo inteiriças, seduziu o Mestre.
Uns anos mais tarde, entre outros, construiu um para si, o Rio Vouga, em 1948, que creio que ainda existe apto a navegar. Esta variante, embora coabitando com os Vougas mais puros, nunca foi considerada como tal.

ALBERTO. Barco familiar. Anos 40

Se o Vouga foi por excelência, um barco familiar, dada a sua constituição exterior, bem como um poço fundo e cómodo, defensor de algumas aragens mais agrestes, também serviu de barco romântico a duo, para um casal enamorado.
 
Vouga Zália com os proprietários a bordo

Também memorizei de uma forma muito nítida as tardes de lazer passadas individualmente, em ria calma, cheia e espelhada, do Engenheiro Ventura da Cruz, no Zália, do Senhor Taveira, no Bill e do Capitão Chico Leite, no Ok. Por vezes, a neblina do fim da tarde descia e envolvia o cenário, com uma beleza ímpar.

Eng. Ventura da Cruz, no Zália

Do lazer individual à competição, as suas características eram relevantes. E ponto alto, na Festa da Senhora da Saúde, era o panorama lagunar das regatas. Estonteante o espectáculo, apreciado de perto, durante tantos anos!

Antigamente, regata da Senhora da Saúde

Se passeava e muitas vezes o fiz, por terra, entre a Torreira e o Carregal, tínhamos o prazer de apreciar os ditos Vougas cabinados do norte da ria, pois aqueles grupos de amigos ficavam de um dia para outro na ria, entregues à caça, nos seus barcos cabinados – daí a justificação de uma coberta que os protegesse do fresco da noite.
Como esses passeios passaram a durar alguns dias e noites, os barcos deste tipo foram aumentando.
Segundo informação do Arq. Hélder Ventura, também aqui presente, que me cedeu estas imagens dos Vougas de Ovar – alguns ainda navegam e outros já desapareceram, como é o caso do «Jolinha». O primeiro destes Vougas foi encomendado a António Gordinho por Francisco Ramada em 1947.

O JOLINHA – barco de Ovar, cabinado

De seguida, construíram-se  mais embarcações deste tipo, algumas por  grupos de amigos que se associaram na «empreitada», como foi o caso do «Caster», do «Narceja» e do «Vouga». Estes dois últimos ainda existem e resistem.
Para além destes barcos existiam mais três ou quatro : o «Ria de Sonho» o «Ovarense» e outros dois por identificar,  que chegaram a envergar velas de carangueja.
Em sagrado e ameno  convívio, num dos primeiros Cruzeiros da Ria, tal como os moliceiros norteiros e os do sul, os matolas.
 
Um dos pimeiros Cruzeiros da Ria

Imagens – Fotos gentilmente cedidas por Jorge Ventura da Cruz, João Aníbal Ramalheira, Hélder Ventura e José Guerra.
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Ílhavo, 2 de Dezembro de 2015
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Ana Maria Lopes
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sábado, 28 de novembro de 2015

Os «Vougas» - influência na paisagem lagunar

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O lazer na ria - 2

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(Cont).
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Por volta de 1900, acentuou-se o desejo de fruir das belezas da ria, em passeio, do conhecimento das cales mais recônditas e estreitas e dos lugares mais típicos. Isso já era vulgar nas bateiras caçadeiras a 2 ou a 4 remos, muito leves para a brandura das mãos singelas e mimosas das raparigas.
A vela era para os mais musculados, mais rapazotes, de porte hercúleo.
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M. Mendes e J. Paião no IRENE. 1959
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Era um prazer sorver as belezas da ria, aproveitar a alegria da juventude, as brincadeiras, os namoricos, só de uma estação (amores de Verão ficavam enterrados na areia), ou perduráveis por uma vida.
Para além dos tais passeios lagunares a remos, havia, com muita frequência, picnics organizados, com umas boas dezenas de raparigas e rapazes à Bruxa (Gafanha da Encarnação), ao local da abertura do Canal do Desertas, à Vagueira e, para norte, à mata ou à Casa-Abrigo, para umas tainadas, em S. Jacinto.
Para isso, se alugavam um ou dois mercantéis, as ditas barcas de passage – assim eram conhecidas.
Começou a surgir a necessidade de reduzir a quantidade de picniqueiros e de tornar mais restritos e ocasionais, os passeios na ria. Já bastava a obediência ao horário das marés…Começava a surgir a necessidade de ter ou usar os tais «botes, mais tarde apelidados de Vougas».
O passeio mais habitual, mais à mão, mesmo na nossa frente, era uma ida à Bruxa.
E, a propósito de Bruxa, lembro-me e confirmei que no meu tempo havia duas Bruxas. Uma não chegava. Não é que houvesse ali alguma «bruxa» propriamente dita. Pero que las hay, las hay… A que ficava, como ainda hoje, mesmo junto à pseudo-mota da Gafanha da Maluca, ligada a uma Ti Norta, que curava algum malzinho, não era a que frequentávamos.
Caminhando uma centenas de metros, a pé, do lado direito, raparigas e rapazes, divertidos e desejosos de dar asas aos seus afectos, pois muitos houve, às vezes, ainda não resolvidos.
O recinto era um terreiro tapado por junco, protegido por um telheiro quadrangular, onde umas toscas mesas de madeira, alongadas, sob o telheiro, recebiam as vitualhas.
Não seriam o que mais nos interessava – umas bifanas, pão quente, uns pires de amendoins, tremoços e azeitonas e a famosa jeropiga (jorpigão), bebida doce e espiritual, em bilhas servida, para copinhos direitos e pequenos. Cuidado! As moçoilas, com umas lambidelas na borda do copinho da jeropiga tornavam-se mais doces e meigas, menos ariscas, mais dadas, prontas para o bailarico sobre o junco, pois íamos munidos de um gira-discos a pilhas, com as nossas preferências musicais em discos de 45 rotações.
O junco não seria o piso mais adequado para o bailarico, mas nem se sentiam umas picadelas ou cócegas do junco que entrava pelas sandálias, tal era o entrosamento amoroso.
E ao final da tarde, lá regressávamos à Costa Nova, sob a vigilância das mamãs, que nos esperavam, ansiosas.
Para ir à Bruxa, nem eram precisas barcas, mas mesmo (sim!) umas bateiras, ou então, os famosos Vougas. Neles íamos também com frequência, ao banho lagunar, cheio de piruetas e de mergulhos da proa, na Biarritz ou San Sebastian. O baixo calado do Vouga e o arredondado do casco facilitava-nos o retorno a bordo, para novo mergulho. Era assim a vida na ria… nadar por baixo do barco, outra pirueta, isto para os mais afoitos e destemidos. E facilmente se abicava à areia, se necessário.

O Vouga Zé Manel, em Agosto de 1948
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Nas idas à Vagueira, a sul, em duas barcas, ou a S. Jacinto, a norte, à mata ou à Casa-Abrigo, lá íamos munidos de cestas de mantimentos e doces, aprimorados, preparados habilmente pelas mães das moçoilas, para captar o seu futuro genro, se tal querença era do seu agrado. Instrumentos não faltavam – violas, violões, acordeões e bombos, para animar a festa, cantoria e pé-de-dança.

Picnic à Vagueira, em Agosto 1961

Podíamos rematar com uma banhoca fresquinha de mar espumoso, apesar da distância, à época, apanhando e comendo… camarinhas pelo caminho… Por isso, não faltavam mantas, agasalhos, as ditas grossas piolheiras, arrumadas sob a coberta da proa, para nos aquecerem ao final da jorna.
Os mais arrojados, rapazes, chegaram a velejar nos seus Vougas até ao S. Paio, famosa romaria da Torreira, a 8 de Setembro, ou fazer passeios até ao Carregal, Ovar.

Chegada do Carregal, em Setembro de 1958

Pelos anos 50, terá assim surgido a ideia do mítico Cruzeiro da Ria, desde 1959, com poucas interrupções, que, este ano, cumpriu a sua 52ª (quinquagésima-segunda) prova, com a duração de dois dias – Ovar/Aveiro/Ovar.
Nesta altura, não faltavam lazeres e entreténs na Costa Nova, tanto se vivia na ria. À noite, bailes chiques no Casino, abrilhantados por Jazz da época ou, em alternativa, passeios de vaivém pela esplanada ao som de músicas dedicadas, a pedido, na mítica Rádio Faneca. Outros tempos…
Mas quando havia um bota-abaixo de um Vouga, era uma festa de arromba. Assim reza uma notícia pescada em O Ilhavense de 20 de Setembro de 1941, acerca de um bota-baixo …Júnior construído pelo Mestre Gordinho, para o Sr. José Pardal.
E muito mais festas do género se fizeram, mesmo mais tarde, até aos anos 80. Basta lembrar a reinação feita aquando do bota-baixo do Vouga Gavião, construído para o Capitão Manuel Mendes, à época, no estaleiro Ria Marine pelo Mestre Alberto Costa.
Para além do Mestre Gordinho, foram surgindo alguns habilidosos de ocasião, que até construíram o seu próprio barco familiar.
Em fins dos anos 30, inícios de 40, sendo alguns proprietários de botes, moradores na zona do Sport Algés/ Dafundo e seus associados, tenho conhecimento que, entre 1938 e 42, o meu Avô Pisco chegou a levar alguns, no lugre Novos Mares, para Lisboa.
Confesso que na Costa Nova, fiz mais uso da minha bateira a 2 ou 4 remos, de forqueta, uma naifinha, com leme e tudo, mas, durante alguns Verões, muito nos divertimos no barco do João José Agualusa, que não era um Vouga, mas outro tipo de barco à vela.
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(Cont).
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Imagens – Fotos gentilmente cedidas pelos Capitães Aníbal, Paião, Manuel Mendes e Comandante Paulo Corujo.
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Ílhavo, 28 de Novembro de 2015
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Ana Maria Lopes
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