quarta-feira, 30 de maio de 2018

Lugre «Altair»


É um belo navio que tem mais de 60 metros de comprido por 11 de largo. E foi admirável vê-lo entrar na água, no domingo penúltimo, na Gafanha, em frente aos estaleiros com as suas bandeiras a tremularem pela viração agreste do Norte.
Foi uma festa atraente a que não faltou a concorrência numerosa e selecta e nem os hinos festivos de duas filarmónicas.
O embarque das pessoas convidadas a assistir ao lançamento do navio à água, realizou-se na lingueta em frente à alfândega, no lindo cais de Aveiro. O trajecto, feito à vela, foi rápido. No barco que nos conduzia, viam-se as pessoas mais gradas da sociedade e da magistratura aveirense, como os ilustres magistrados da Comarca, etc.
Na Gafanha, a multidão era compacta. Tivemos o prazer de cumprimentar ali, o nosso velho e querido amigo e conterrâneo sr. Manuel Rodrigues Sacramento, também sócio da empresa proprietária do «Altair», que com a sua digníssima esposa tem estado nesta vila.
O último cabo que prendia o excelente navio, que é a primeira embarcação de três mastros construída nos estaleiros da Gafanha, estava destinado a receber o corte certeiro e inteligente do ilustre capitão do porto de Aveiro, sr. Silvério Rocha, que, por uma deferência honrosíssima, delegou num dos oficiais franceses, que estão em S. Jacinto, a execução dessa formalidade.
Cortada, pois, a última amarração, deslizou serenamente pela carreira, enquanto estralejavam nos ares dezenas de foguetes, tocavam as duas filarmónicas e se prolongavam entusiasticamente os vivas e as palmas. O lindo navio varou a margem da ria, como que uma gazela que engalanada se quer pôr a descoberto, e, num instante, aparecia na cale, onde lançava ferro a tornar sublime a paisagem. Houve um momento de verdadeiro delírio, quando no castelo da proa da embarcação toda garrida de cores e ainda a oscilar fidalgamente nas águas azuis-esverdeadas do nosso lindo Vouga, apareceram muitos trabalhadores a saudar, descobertos, a multidão e a maravilhosa obra d’arte que a mesma multidão admirava. Foi um momento de indescritível entusiasmo, que se repercutiu no salão onde a Empresa «Boa Esperança» ofereceu um delicadíssimo copo d’água aos seus convidados, entre os quais o mais humilde éramos nós.
Felicitamos a Empresa do «Altair», desejando-lhe as maiores prosperidades.
(In jornal Nauta, 12 de Maio de 1918)
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O lugre «Altair» na barra de Aveiro
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Ílhavo, 12 de Maio de 2018
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Ana Maria Lopes
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quarta-feira, 16 de maio de 2018

Homens do Mar - João Firmeza - 46


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Cap. João de Sousa Firmeza

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As conversas são como as cerejas, e entabulei conversa virtual com o João Paulo Firmeza, acerca da carreira marítima do seu Avô paterno. Navios para cá, navios para lá, naufrágios para cá, naufrágios para lá, arrastões para cá, arrastões para lá, fotos para cá, fotos para lá, não havia nada como marcar um encontro para degustar uma boa posta de bacalhau, depois de uma boa «chora», saborosa, aprimorada e quentinha. A conversa frente a frente desabrocharia naturalmente, evidentemente, em pleno ambiente que respirávamos. Era de interesse de ambos restaurar a vida marítima do Capitão João Firmeza, mas os dados eram escassos, havia vários hiatos, a família era pequena e quem poderia fornecer mais alguns dados, também já tinha desaparecido. Mas, não vamos desistir. Se hoje, ainda chegamos a alguns relatos, mais tarde, a muito menos chegaríamos e mãos à obra…

Segundo a ficha do Grémio, João de Sousa Firmeza era natural de Ílhavo, da Rua Dr. Samuel Maia, filho de João de Sousa Firmeza e de Maria Victoria Tourega, nascido a 26 de Janeiro de 1896. 
Do casamento com Maria Razoilo Senos, a 29 de Julho de 1920, nasceram os filhos Maria Rosalina Razoilo Firmeza, João Francisco de Sousa Firmeza, e Paulo Manuel de Sousa Firmeza, sendo o João Francisco de Sousa Firmeza, já falecido, pai do João Paulo com tive o prazer de conversar. Mais uma vez, esta nossa moda ílhava – nomes muito parecidos, senão repetidos e, por vezes, os sobrenomes dos filhos diferentes. Esclarecido, na questão familiar. Parece-me.
João Firmeza era portador da cédula nº 9107 passada pela Capitania do Porto de Aveiro, em 25 de Janeiro de 1916, o que prova que, a partir desta data, já poderia navegar, mas nada nos aponta nem quando, com que cargo, nem onde, salvo algumas excepções.
É algo estranho que o seu nome, mesmo em registos jornalísticos, apenas apareça, em 1927, 1928, 1929 e 1930, de piloto, no lugre Silva Rios, da praça do Porto, nas safras de 1927 e 28, sob o comando de João Francisco Corujo, no lugre Senhora do Carmo, da praça da Fuzeta, na safra de 1929, sob o comando de Zacarias Mendes Correia, natural da Fuzeta e na safra de 1930, no lugre São Paulo, com sede na Figueira da Foz, sob o comando de António Augusto Marques (Marcela).
Em anos de forte crise, é possível que tivesse viajado no Brasil, em viagens do comércio, o que aconteceu com alguns ílhavos. O neto, residente no Brasil, por razões profissionais, já tentou seguir o rasto do apelido Firmeza, abundante em terras de Cabral, mas não chegou a nenhuma conclusão segura. Fica como hipótese.
Na campanha de 1939, portanto com 43 anos, ressurge como piloto do lugre Santa Quitéria, da praça de Aveiro, sob o comando de João Nunes de Oliveira Sousa, seu conterrâneo. Como já referido, este lugre-motor, ex-navio dinamarquês Vénus, construído em 1919, iniciou a pesca do bacalhau na campanha de 1935, propriedade da Empresa de Pesca Lavadores, Lda., com instalações de secagem, na Barra.
Eu e os registos fotográficos…uma imagem a bordo do D. Denis com alguém que não me era totalmente desconhecido, levou-me à Gafanha da Nazaré, num ápice, pensando que o amigo Marques da Silva seria o informador ideal. E acertei! Há uns dias, no Museu, tinha falado do Cap. Firmeza com grande à-vontade, tendo eu conhecimento que o conhecera com cerca de nove anos e que a diferença de idades era, consequentemente, grande. Mas, nessa meninice passada na Nazaré – que sorte me bafejara!–  convivera paredes meias com o capitão Ferreira da Silva, com o armador Manuel Pascoal e familiares de ambos. Então, em pormenores mínimos diferenciadores dos lugres D. Denis e Rainha Santa Isabel, dava gosto ouvi-lo. Era esta a foto:
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Em 1940, o capitão Ferreira da Silva (à esquerda e o piloto João Firmeza, à direita-

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O lugre-motor de madeira D. Denis fora construído para a Pascoal & Filhos Lda. por António Maria Bolais Mónica, na Gafanha da Nazaré, em 1940, tendo feito já essa campanha, uma estreia, sob o comando do Capitão Ferreira da Silva, também gafanhão, tendo levado como piloto, João Firmeza. São os tais «puzzles» de temática marítima, que adoro compor, uns mais fáceis, outros mais difíceis, consoante o percurso e os contornos.
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Em 1941, de «enxoval» às costas, mudou para o convés do lugre de madeira Rainha Santa, como capitão, tendo como piloto, Francisco Fernandes Mano.
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O ano de 1941 em que se tinha perdido o lugre Silvina, por incêndio, despertou-me interesse, tendo ido reler o capítulo O Silvina em chamas, da obra de Jorge Simões, Os Grandes Trabalhadores do Mar, que na campanha de 1941, tinha sido integrado na nossa frota, no lugre Groenlândia, para observação dos nossos homens, em perigos, nevoeiros, brisas, trabalhos, gelos e tudo o mais que viesse a surgir. Rebusco, então, alguns parágrafos desse capítulo:
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(…) Subitamente, soou pela rádio uma voz que traduzia espantosa aflição e angústia, uma voz que gritou enrouquecida:
«Chamada geral! Chamada geral a todos os navios!... Daqui o Silvina, o capitão do Silvina!... Tenho o navio a arder!... E não tenho posição!...»
O que isto significa para um navio com fogo a bordo, debaixo do nevoeiro, só pode ser verdadeiramente compreendido por quem se encontra nestas paragens. Um pavor!... (…) Ao angustioso apelo do capitão do Silvina responderam numerosos barcos:
«Vamos suspender, vamos em teu socorro. Vamos todos, todos os navios de motor. Mas diz-nos alguma coisa. Vibravam os amplificadores: «Atenção! Chamada urgente!... Chamada geral!...O Silvina está a arder!»
«Suspendam, suspendam todos, vão acudir ao Silvina, ao capitão José Cachim!...» (…)
Às oito horas e dez minutos, voltou a soar a voz, cada vez mais enrouquecida e entrecortada pelos soluços do capitão do lugre que o azar transformara numa fogueira gigantesca a baloiçar ao cimo das vagas:
«Toda a companha está nos botes. O navio, ai o meu rico navio, está pronto. Eu estou sozinho a bordo.»
Aconselharam do Santa Princesa: Deixe o motor do transmissor da rádio a funcionar. Salte para os botes! Não se afastem muito. Vão todos os navios à vossa procura!»
Em onze dorys aguardavam os náufragos, desde as oito e um quarto da manhã, que os fossem buscar. Diversos navios viram passar destroços, junto dos costados. Mas chegou a noite e os lugres tiveram de fundear, sem nada haverem descoberto.
Quando às quatro horas e quarenta minutos da manhã, o velho capitão João de Sousa Firmeza, veterano da pesca do bacalhau, comunicou que os náufragos, num clarear súbito do tempo, tinham descoberto o seu navio, o Rainha Santa, mesmo junto deles, a alegria foi indescritível (…).
O Groenlândia dirigiu-se também para lá. E a tripulação foi distribuída por vários lugres, entre eles o Groenlândia, que levava, a bordo, o jornalista. Desceram o bote já comigo (Jorge Simões) para o outro lugre, o Rainha Santa, de que o capitão lhes fez um acolhimento cordial.
Assim se perdeu o Silvina, no meio de chamas, no dia 25 de Maio de 1941.
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E neste belo e verídico relato, encontrámos referências elogiosas ao velho capitão Firmeza.
O Rainha Santa Izabel, como já referido, ex-Rainha Santa, foi construído para a firma Pascoal & Cravo, Lda., na Gafanha da Nazaré, em 1929, por José Maria Lopes de Almeida. Por dissolução desta empresa, em 1937, o navio alterou o nome para Rainha Santa Izabel, tendo sido, então, propriedade de Pascoal & Filhos, Lda. Foi seu capitão João de Sousa Firmeza, nas safras de 1942 e 43, tendo sido seu piloto João Juff Tavares Ramos, em 1942 e imediato, em 1943.
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À direita, João Firmeza e a meio, o armador, Manuel Pascoal. Entre 42 e 43
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No Rainha Santa Izabel, à nossa direita, o Cap. João Firmeza

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Nos anos de 1945 e 46, servira a empresa Testa & Cunhas no elegante lugre-motor de quatro mastros, que o meu avô estreara em 1938, o Novos Mares, como capitão, levando como imediato, em 1945, Francisco José Campos Evangelista, de Esposende, e Carlos Veiga Correia de Oliveira, em 46, natural de Setúbal.
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À entrada de Leixões, o Novos Mares. Fotomar.
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Na safra de 1948, o naufrágio do lugre Gaspar estava guardado para a responsabilidade do Capitão João Firmeza, já que durante vários anos anteriores, navegara sob o comando do nosso conterrâneo Manuel Mendes, falecido em 1947, na cidade de Viana. Segundo O Ilhavense de 20 de Setembro e o Comércio do Porto de 17 de Setembro de 1948, estando quase finda a época piscatória nos mares gelados da Groenlândia e Terra Nova, o destino não quis deixar de assinalar com mais uma tragédia a sua louca sofreguidão.
O lugre Gaspar, açoitado violentamente pelo vendaval que pairou, durante horas, em todo o Atlântico Norte, correra risco grave, ao ser abatido a tiro pelo cutter da Guarda Costeira Americana «Bibb», mas felizmente, o seu apelo fora captado.
O capitão lançou um SOS e logo em seu socorro rumou o navio-hospital «Gil Eanes», que saíra há dois dias de St. John’s, bem como a fragata americana
«Cecil N. Bean», o navio «Tropero», o cruzador «Albany» e o contratorpedeiro «Purdy», além de dois bombardeiros americanos e um hidro-avião de vigilância da costa, que procuraram localizá-lo, bem como recolher os seus tripulantes. Foram distribuídos por outros lugres, com excepção de Salvador Gonçalves Vieira, de Viana do Castelo, que fora levado por uma vaga que varrera o convés do navio, na véspera do acidente.

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O lugre Gaspar, em 1947
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O lugre Gaspar, ex-Sarah, construído em 1919, na Figueira da Foz, por Manuel Maria Bolais Mónica, foi comprado para a campanha de 1921 pela Empresa Novas Pescarias de Viana, Lda. Embora construído em madeira, estava revestido a chapas de ferro e era equipado com um motor de propulsão.
Uns anos mais tarde, o Cap. Firmeza retomou a pesca do bacalhau, mas, desta vez, no arrasto. Na safra de 1954, no arrastão João Álvares Fagundes da SNAB, na 1ª viagem, de imediato, sob o comando de José Nunes de Oliveira e, na segunda, de capitão.
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Na ponte do arrastão João Álvares Fagundes
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Após alguns hiatos, em que não se encontram referências, na safra de 1958, foi de imediato no arrastão Águas Santas, na 1ª viagem, sob o comando de Manuel Lourenço Catarino, também de Ílhavo. Este arrastão de aço foi construído para a Empresa Comercial e Industrial de Pesca, no estaleiro T. Van Duijvendijk’s Scheeepswerf em Lekkerk, Holanda, em 1949.
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Arrastão Águas Santas. Foto de autor desconhecido
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Depois da aposentação, integrou-se no grupo de oficiais com quem se dava, aparecendo em algumas fotos de grupo, já apresentadas, noutros locais, em conversas pelo jardim, em jogos de cartas no Sindicato dos Oficiais no segundo andar do edifício do Illiabum Clube e em almoços/encontros de circunstância, cá em Ílhavo, em Lisboa ou de visita a Évora.
Em 21 de Setembro de 1968, deixou-nos, depois de grande parte da vida passada sobre as salsas ondas do oceano, entre perigos, nevoeiros e gelos traiçoeiros, com 72 anos de idade.
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Fotos cedidas pelo neto João Paulo Firmeza.
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Ílhavo, 17 de Abril de 2018
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Ana Maria Lopes
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domingo, 29 de abril de 2018

Naufrágio do lugre «Islândia»

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Quer saber algo mais sobre o lugre Islândia? Aproveite, pois notícias de navios do comércio, antigos e pequenos, aparecem muito poucas. Nem sempre encontro o que busco, mas, por vezes, encontro o que não busco.
Islândia, nome de lugre? Pois então.
Em O Ilhavense de 20 de Março de 1945, dei com notícia, de título idêntico.
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A Cruz Vermelha Internacional fretou há dias o lugre-motor Islândia para transportar cerca de 200 toneladas de víveres destinados à população belga. A preciosa carga seria descarregada no porto espanhol Pasajes, donde sairia em camião e caminho de ferro para a Bélgica.
O Islândia saiu do Tejo a 9 do corrente para aquele porto espanhol, sob o comando do Sr. Amândio Fernandes Matias.
O navio, ao navegar no golfo da Biscaia, foi assolado por um vendaval, de que conseguiu safar-se à custa de denodados esforços da tripulação e da mão firme do seu capitão, que passou a manobrar o leme, durante as horas de perigo. Na madrugada do dia 14, quando seguia rumo próximo da costa asturiana, um denso nevoeiro caiu sobre o mar. Navegando com as maiores precauções, o Islândia foi sulcando as águas, mas daí a pouco tempo, encalhava ao largo do Cabo Peñas.
Naufragado o lugre, a tripulação, de dez homens, foi salva e recolhida a bordo do vapor espanhol Hita, que a desembarcou no porto espanhol de El Musel.
Até aqui, desconhecia.

O Islândia, na barra de Aveiro
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O que sabia era que o Islândia, lugre de madeira, de três mastros, era o ex-Rosita, o ex-Edith M. Cavell, construído em Melburne, Nova Escócia, em 1916. Propriedade de Armadores do Norte, gerência de ilhavenses, entre eles, Copérnico da Conceição da Rocha, participou nas campanhas de bacalhau de 1936 a 38. Em 1939, foi destinado ao comércio.
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Foto - Espólio de F. Marques
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Ílhavo, 29 de Abril de 2018
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Ana Maria Lopes
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domingo, 22 de abril de 2018

Curiosidades - O Mar de Sines


Na última sexta-feira, assisti no MMI, integrado no Mar Film Festival, a um documentário extraordinário sobre o Mar de Sines – A resiliência das gentes do mar. Confesso que gostei. Relevava as «artes» de pesca tradicionais de que eu tinha conhecimento existirem em Sines. Sempre as observei do lado de terra, enquanto que, no documentário também me era dado observá-las, em acção, no interior da embarcação, o que completava a minha visão. Algumas delas:  caixote do aparelho de anzóis e a sua preparação, a rede do tresmalho, a rede de cerco, o alcatruz para o polvo, a penosa arte de mariscador, a descarga de peixe, sobre os antigos chapéus de lata, a venda em lota, no areal, a toneira para a lula, o chinchorro, os covos já de plástico, e outras, que não memorizei. Todas me eram familiares, tendo gostado de as ver ao vivo, bem como o amor ao mar, manifestado em entrevista, por quem as praticava.
Curioso é que, há uns três anos, recebera um pedido, por e-mail, de um realizador de Sines, Diogo Vilhena, para utilização do livro de que sou co-autora, Faina Maior – A Pescado Bacalhau nos Mares da Terra Nova, encontrado nas mãos de pessoa ainda entre nós, que se identificara numa fotografia, neste livro, que, em primeira edição (Quetzal, 1996) lhe havia sido oferecido por pessoa amiga. Claro que autorizei. Além de outras imagens que tive o prazer de rever no filme, esta era a principal, o dono do livro e protagonista na imagem.
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Imagem 76, do espólio de Francisco Marques

O jovem moço que sustentava o gigantesco bacalhau é João da Silva Faria, nascido em 19 de Novembro de 1931, em Sines, moço, nas campanhas de 1951 1952, no lugre Labrador – assim testemunha a ficha do Grémio. Que coincidência e como o mundo é pequeno. Tudo batia certo.
Cerca de três dias, antes da exibição do documentário em Ílhavo, recebi o gentil convite do produtor António Campos, para estar presente, se possível, à sua exibição. E estive.
No final, entabulou-se entre nós uma agradável conversa sobre as artes tradicionais, que conhecera na minha estadia em Sines, nos anos sessenta, em pesquisa para a minha tese de licenciatura, O Vocabulário Marítimo Português e o Problema dos Mediterrarreísmos, que tiveram o prazer de folhear e levar. As imagens desse tempo manifestaram-se, para eles, uma raridade. Outro projecto teriam em vista, para as quais poderiam ser muito úteis. Possivelmente, a seu tempo, conversaremos, de novo. E assim foi o encontro de gentes de Sines, em Ílhavo.
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Botes em Sines. Anos 60
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Sines. Lota no areal.
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Ílhavo, 22 de Abril de 2018
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Ana Maria Lopes
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sexta-feira, 20 de abril de 2018

Dois pauzinhos para o «Marintimidades»

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Colecção Capitão Marques da Silva
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onze anos, andava em ensaios para criar um blogue, exactamente, quando estava em exposição no Museu Marítimo de Ílhavo (MMI), a Colecção Capitão Marques da Silva, na Sala de Exposições Temporárias, até 27 do corrente mês. Mesmo depois desse prazo, seria integrada, pelo menos o seu núcleo principal, na Sala dos Mares do referido Museu.
O protocolo do depósito desta colecção foi assinado no museu, a 5 desse mês de Abril, bem como lançado um pormenorizado Catálogo da mesma. Como co-autora e coordenadora de edição, não me compete a mim avaliá-lo. Direi apenas que, quem o adquirir, levará a exposição para casa, pois é ilustrado por 30 boas fotografias de Carlos Pelicas das 30 peças expostas.

Capa do Catálogo

Para mim, foi muito gratificante trabalhar com Marques da Silva, consolidando uma amizade já com alguns anos, aquando do seu empréstimo ao museu de algumas peças que figuraram na 1ª exposição Faina Maior, em 1992. Não há palavras que qualifiquem as suas mãos nem a sua paciência, que fazem dele um modelista pedagógico de primeira água. Só mesmo as peças falam por si.

Modelo do lugre-motor Creoula
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Curioso ainda o facto de termos em comum um gosto forte pela Faina Maior e pelas embarcações tradicionais portuguesas.

Louvável, a todos os níveis, o seu acto de depósito da maravilhosa Colecção, dando possibilidade a todos os visitantes do Museu de a observarem de perto.

O barco moliceiro

E assim foi criado o Marintimidades, que hoje festeja 11 anos, para falar das coisas do mar, da ria, de embarcações, de artes, de museologia marítima e de eventos que surjam dentro desta área, publicitando-os, e sobre eles detendo um olhar…

Uma recordação desse dia… e nestes onze anos, muita água passou por baixo das pontes…



 Ílhavo, 20 de Abril de 2019
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Ana Maria Lopes
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segunda-feira, 16 de abril de 2018

Homens do Mar - Alexandre Simões Ré - 45

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Cap. Alexandre Simões Ré

À laia de introito:

Circula por aí, entre a família Ré, a foto seguinte extremamente curiosa, que ainda não tinha conseguido.
Pessoa amiga, bisneta de um dos fotografados, ofereceu-ma, há dias bem como a sua identificação. Preciosa!!!Um rico folar de Páscoa!...
Trata-se de uma foto de estúdio, creio, à época, do jovem curso de pilotagem, em 1900.
O trajar dos rapazes seduziu-me – fatinho de calça, paletó e colete, camisa de colarinhos gomados e levantados, gravata, botim ou sapato fino, lencinho no bolso do casaco, à janota.
A maioria, de bigodinho a preceito, todos de cabeça coberta por chapéu de feltro escuro ou panamá, de palhinha, tipo galã. Que pose!... Fazendo parte de um curso de pilotagem de 1900, em Lisboa, viriam a ser futuros homens do mar – pilotos, imediatos e, mais tarde, capitães. Imagino…
Por grande curiosidade, estão todos identificados, bem como denominada a terra de onde são provenientes.
Dos dezassete fotografados, 9 são naturais de Ílhavo e dois, de Aveiro.
Constituem um belo quadro do nosso passado ílhavo! Mais uma prova de que Ílhavo forneceu grande quantidade de oficiais para o mar!
Dos de Ílhavo, em terceiro plano, chamo a atenção para o primeiro à nossa direita, também todo ajanotado – Alexandre Simões Ré (patriarca da família Ré, nascido em 1880), – o biografado de hoje.

Curso de pilotagem de 1900

Ora a origem do nosso Alexandre Ré começa logo com uma curiosidade – ele não é natural de Ílhavo, mas sim de Lisboa, freguesia de Belém, filho de João Simões Ré Júnior e de Ana Maria S. José, nascido a 19 de Agosto de 1880. Lembrei-me imediatamente dos ílhavos que iam para Lisboa, por esses tempos, e logo namoriscavam, acabando por casar com alguma das bonitas e elegantes varinas da capital. Teria sido um desses casos? Nada que não pudesse ter acontecido
Do casamento, em Ílhavo, a 22 de Fevereiro de 1902, com Maria Nunes Vidal, conhecida pela avó Ramízia, nasceu uma prole de oito irmãos – seis pequenos (João, José, Armindo, Manuel, Armando e Alexandre) e duas pequenas, Célia e Maria. Dos seis varões, quatro foram oficiais da Marinha Mercante e outro, Alexandre, foi também marítimo – motorista, tendo exercido funções de oficial maquinista. Depois de já me ter ocupado dos capitães Armindo e João Ré e do Sr. Alexandre Vidal Simões, nasceu-me uma vontade gradual de escodrilhar o percurso marítimo do velho Alexandre Ré, como, por vezes, era apelidado, que deveria, pelo menos, nos primeiros tempos, ter sido difícil e variado.
Era portador da cédula marítima nº 6845, passada na Capitania do Porto de Lisboa, em 6 de Maio de 1916, tendo exercido a profissão de pescador do bacalhau desde 1907.
Claro, tive de aceitar um percurso com algumas lacunas, que não consegui ultrapassar, mas também dei de caras com uma panóplia de lugres, cujo nome não me era nada familiar.
Surgiu-me pela primeira vez o seu nome como capitão, na escuna Loanda (1908-1917), no ano de 1912, pertença da Sociedade Africana da Pesca do Bacalhau, com praça na Figueira da Foz.
Nos anos de 1913 e 14, «saltou» para capitão do lugre-patacho Mindello (1902 a 1921), da mesma empresa armadora e da mesma praça, de que, curiosamente, obtive, há uns anos, um postal, num alfarrabista, em Vila do Conde.

Lugre-patacho, ao centro, na Figueira da Foz, num postal datado de 1905

Entre 1915 e 19, fiz os impossíveis, mas perdi-lhe o rasto. Tempos de guerra…, quem sabe?, mas socorrendo-me do livro Sete Séculos no Mar (XIV a XX), A Construção de Embarcações, de José Eduardo de Sousa Felgueiras, Volume III, pp. 224 a 226, edição do Centro Marítimo de Esposende, Fórum Esposendense, 2010, de que respigo umas frases-chave, relativas ao nosso capitão, encontrei-lhe o rasto.
Tenho, pois, de me reportar, ao lugre (?) Fãozense, construído para a Sociedade Marítima Progresso, Lda., de Fão, nos estaleiros locais por Domingos Carlos Ferreira & Filho, entre os anos 1919 e 1920. O primeiro capitão deste navio foi Alexandre Simões Ré, de Ílhavo, de quem a imprensa local dá conta da sua estadia em Fão, para acompanhar a construção.
Em 1921, o navio foi vendido à Parceria de Pesca Patriota, do Porto, que lhe deu o nome de Patriota 2º.

O Fãozense, já baptizado de Patriota 2º, aparelhado como lugre.

Entre 1921 e 1924 (inclusive), foi comandado por Alexandre Simões Ré. E mais uma vez se unem os chicotes. O jornal O Ilhavense de 21 de Maio de 1922 e o de 13 de Maio de 1923, assim o confirmam. Na viagem de 1922 (e possivelmente, também em 23), foi seu piloto, o filho, João Simões Ré.
Na safra de 1925, surge como capitão do lugre Paços de Brandão, também da praça do Porto. O Paços de Brandão era um lugre de madeira construído em 1920 em Marystom, Terra Nova, que veio a ser reconstruído em 1923 em Vila Nova de Gaia, para participar na campanha de 1924, sob a propriedade da firma Veloso, Pinheiro & Cª., Lda.

O lugre Paços de Brandão

E na safra de 1926? O nosso jornal de 9 de Maio de 1926, dá-o como capitão do lugre Silva Rios, sendo seu piloto, o filho José Simões Ré. Faltava-me mais este lugre. E não ficaremos por aqui.
Recorrendo a blogues credíveis, que no final citarei, o lugre Silva Rios foi o ex-Rio Minho, construído para o armador de Caminha, Francisco Odorico Dantas Carneiro, pelo construtor, também de Caminha, Manuel F. Rodrigues, em 1921. No final da década de 20, o navio foi vendido a Silva Rios, Lda., do Porto, que lhe alterou o registo para o Porto, lhe fez uma reconstrução e lhe mudou o nome para Silva Rios.
E as safras de 1927 e 28? Às vezes, não se encontram duas pecinhas de um puzzle, mas não há que desanimar. Alexandre Ré reapareceu.
Na safra de 1929, foi capitão do lugre de madeira Maria Carlota – o ex- Estrela I construído em 1918, em Dayspring, Canadá. Tomou o nome de Maria Carlota na campanha de 1927, propriedade de Nuno Freire Temudo de Viana do Castelo.
E de lugre em lugre, lá foi andando, num vaivém, de barra a barra.
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Lugre Maria Carlota. Foto de autor desconhecido.
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Segundo o jornal Beira-Mar de 27 de Abril de 1930, Alexandre Ré surge como capitão do lugre Adamastor, da praça do Porto, levando o seu filho José Ré, como piloto.O Adamastor, longe de ser o Adamastor cantado por Camões, foi um lugre construído em 1916, em Vila do Conde, por Jeremias Martins Novais, para o armador Estêvão Soares, do Porto, tendo sido vendido, em inícios de 1918, à Empreza de Navegação Portugal e Américas, Lda., também do Porto. Ao longo da sua existência, sofreu algumas transformações a bordo e novas classificações, tendo o armador, a partir de 1922, mudado a designação comercial para Empreza de Pesca e Navegação Portugal e Américas, Lda. Segundo o jornal Beira-Mar de 26 de Abril de 1931, Alexandre Ré surge como capitão do lugre América, da praça do Porto, levando o seu filho Armindo, como piloto. Este lugre de madeira, também sob encomenda de Francisco E. Soares, armador do Porto, saiu dos estaleiros de Vila do Conde, das mãos do construtor Jeremias Martins Novais, em 1915.
Em anos de crise, no ano de 1930 revelou um resultado catastrófico, tendo no ano de 1931, o produto da pesca melhorado consideravelmente, ao que se juntou o rendimento do óleo de fígado de bacalhau. O lugre foi colocado à venda em 1934, tendo sido adquirido pela Companhia de Pesca Transatlântica, Lda., igualmente com sede no Porto. O novo proprietário renovou a matrícula na capitania do Douro, rebaptizando-o com o nome de Infante, continuando a integrar a frota de navios da pesca longínqua.
E o «nosso» Alexandre Ré, de quem nos ocupamos, presentemente?
Nos anos de 1932 a 36, por lacunas de informação, e, provavelmente, por tempos de crise, perdi-lhe a esteira, mas, na safra de 1937, encontrei-o de novo, como capitão do velhinho Argus, pertença da PGP., com o filho Armindo, como piloto. Jamais as suas vidas profissionais se separaram. Na safra seguinte, de 1938, os papéis inverteram-se, tendo matriculado como capitão, o Armindo Ré, que, desta vez, levou como piloto, o seu pai, Alexandre. E a partir daqui, foi sempre assim.
E passemos ao lugre-motor, de aço, Creoula, de 1937, também pertença da PGP., o actual NTM, que é bem conhecido de todos nós.
Nas campanhas de 1939 e 40, Alexandre Ré foi o piloto, Armindo Ré o imediato, sob o comando de João Pereira Ramalheira (o Vitorino).
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À nossa direita, Alexandre Ré, no Creoula, em 39/40

Nas campanhas de 1941 a 43, seguiu-se o Argus, o novo/velho Argus, de aço, construído na Holanda, em 1939, imortalizado pela obra A Campanha do Argus de Alan Villiers. O trio da oficialidade manteve-se, já que em equipa ganhadora não se mexe.
Mas o lugre-patacho Gazela Primeiro meteu-se de permeio e tendo-se tornado Armindo Ré capitão deste mítico navio, o pai exerceu o cargo de imediato.
E assim foi entre as safras de 1944 a 48, inclusive. 
Constava tratar-se de pessoa sarcástica, de língua afiada, cáustico, má língua e com espírito de humor. Mas, toda a companha nutria por ele um certo respeito e carinho e tratava-o também por capitão pelo hábito de tantos anos que comandou. Já com avançada idade, embarcado no Gazela I em que, depois de tantos anos de capitão, exercia agora as funções de imediato sob o comando do filho Armindo, já descontraído e sem grandes preocupações, certo dia, enquanto os botes andavam fora a pescar, desceu do convés ao rancho e, cheio de frio dirige-se ao cozinheiro: – Eh Gestas, está um frio levado dum raio, arranjas-me aí uma canequinha de café, pá? Ao que o cozinheiro prontamente respondeu: – É para já, sô capitão. E o Gestas trata de encher uma caneca de café, da cafeteira sempre pronta em cima do fogão, e satisfez assim a vontade do velho Alexandre que, depois de se aquecer interiormente e exultar a boa qualidade do café, agradece e acrescenta: –  Ah rapaz, não há café como o teu. E sobe a escada de volta ao convés onde encontra o contramestre e comenta com ar de maldisposto: – Eh contramestre, o Gestas deu-me agora uma zurrapa dum café que até estou agoniado...
Estamos perante um caso de doze anos de fidelidade à Parceria Geral de Pescarias, de filho e pai, até ao momento em que Armindo Ré se estreou como capitão do navio-motor Vaz, da empresa Brites, Vaz & Irmãos, Lda., da praça de Aveiro. De saco de lona às costas, numa «nova emposta», lá ficaram mais perto de casa, pai e filho.
Durante as safras de 1949 a 51, Alexandre Ré aí foi imediato do filho Armindo, que, no seu navio, prolongou a carreira até 1969.
Aposentou-se em Novembro de 1957, depois de cerca de 50 anos de mar, servindo uma panóplia de veleiros de madeira e de aço, tão diversificados, de praças desde o Porto a Lisboa, passando por Figueira da Foz e Aveiro, onde finalizou o seu labor de mar, sem esquecer uma estadia em Fão para acompanhar uma referida construção.
Ainda lhe restaram alguns anos, para saborear a sua reforma, entre a família numerosa, que era.
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Saboreando o solzinho, no seu jardim.

Chamava malagueta à bengalita, com que se equilibrava na última etapa da vida. E não só, outros objectos da vida comum eram chamados como se de objectos marítimos se tratasse – de tal modo a vida marítima lhe estava interiorizada.
Deixou-nos a 2 de Fevereiro de 1967, vítima de uma trombose, com 86 anos.
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Ílhavo, 12 de Março de 2018
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NB. Consultados os blogues Navios e Navegadores, Navios à Vista e Piloto Prático do Douro e Leixões.
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Fotos – Amavelmente cedidas pela família e arquivo pessoal
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Ana Maria Lopes
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