quinta-feira, 7 de março de 2024

João Juff, o "capitão preto" de veleiros, Comandante de uma "tripulação de brancos"

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João Juff

Vem isto a propósito do título que encima uma notícia/entrevista de 7 de Abril: “Para a pesca do bacalhau / O capitão preto [expressão sublinhada] seguiu hoje no ‘Navegante’ para a Terra Nova a comandar uma tripulação de brancos e contou-nos a sua história” .

Quem era então João Juff? Segundo a ficha/declaração destinada a marítimos matriculados para as campanhas bacalhoeiras existente no Museu Marítimo de Ílhavo, preenchida em 24 de Novembro de 1938, o seu nome completo era João Juff Tavares Ramos.

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Ficha do grémio
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Nascera em 5 de Setembro de 1891 em São Vicente de Cabo Verde, filho de Tomaz Juff e de Joana Tavares. Casado com a ilhavense Silvina de Jesus Ramos desde 12 de Novembro de 1913, residia no Largo da Capela, em Ílhavo. Livre da condição militar, começara a ir aos bancos da pesca do bacalhau em 1908 mas interrompeu a profissão de marítimo em 1914, por motivo de estudo.

Ora o nosso homem surge-nos com grande destaque no “Diário de Lisboa” de 7 de Abril de 1949, sob o título “Para a pesca do bacalhau / O capitão preto seguiu hoje no ‘Navegante’ para a Terra Nova a comandar uma tripulação de brancos e contou-nos a sua história”. Antes de reproduzirmos o que ele declarou, lembremos o que tinha sido a sua carreira de marítimo com responsabilidades de navegação até aí. Juff fora piloto por cinco vezes e imediato outras tantas, os postos de maior importância abaixo do de comandante, em lugres apenas à vela ou nalguns casos com motor. Após essas longas 10 viagens, na campanha de 1949 seguiria pela primeira (e afinal única) vez como comandante. Desta feita, do “Navegante II” , elegante lugre de casco de madeira e três mastros, feito em 1912 em Fão, ao qual tinha sido dado em 1936 um motor.

De tão significativa a introdução biográfica do capitão feita no jornal, transcrevemo-la na íntegra: “E é bem engraçada a história deste capitão Juff, do ‘Navegante II’! Tem cinquenta e tantos anos e é um cabo-verdiano dos quatro costados [não era assim tanto, como veremos], espadaúdo, de cor retinta, modesto e tímido, respeitado e amado da sua tripulação. Pela primeira vez, um capitão de cor vai à Terra Nova a comandar um grupo de brancos… Isto para um país de colonialistas, onde as leis não põem parágrafos restritivos, fechando as portas aos seus filhos de todas as latitudes e meridianos, seja qual for a tintura da sua pele – não é de admirar. Mas só é de distinguir, porque o caso é o primeiro.” Acontece que, segundo Juff, seu pai teria ido parar a Cabo Verde na qualidade de carpinteiro de obras públicas. Mas a mãe, dita de nascimento sul-africano, chamava-se Joana Tavares… Juff parecia bem ligado ainda à terra de nascimento. Dizia ele: “Tinha eu 13 anos, quando um dia vim para a Metrópole. Deixei a querida terra cabo-verdiana, as suas mornas tão doces, os seus tristes escarpados, tão gratos ao meu coração, quando em 1904 o sr. dr. Samuel Maia me trouxe para Ílhavo (…) era um bom médico. E também escrevia (…). Era (…) muito meu amigo. Vim para seu paquete e ouvi os seus conselhos (…). Meti-me a praticante de farmácia e, como Ílhavo é terra de pescadores e São Vicente de Cabo Verde é terra de mareantes, também um dia me fiz ao mar como moço de bordo.” Juff embarca em 1906 no “Luanda”, ganhando pela safra 90 mil réis, quando um pescador recebia 160.000. Depois, torna-se cozinheiro. E, já casado com uma ilhavense e pai de duas filhas, a conselho do seu protector Samuel Maia tira o curso de piloto no Porto e em Aveiro. O depoimento do capitão Juff terminava com alusão à morte recente de uma das suas filhas mas com alguma esperança: “É a primeira vez que vou à Terra Nova como capitão de um barco. Conheço aquilo tudo como as minhas mãos. A vida, sem dúvida, é agora menos dura. Temos o Mundo mais perto de nós, a rádio leva-nos notícias dos nossos, o médico vela por quem trabalha e os motores deixam descansar os músculos do homem. Este ano já não poderei ouvir a voz da minha filha, morta há um mês. Não posso, é como quem diz: ouço-a na minha saudade.”

Ora a vida de marítimo na pesca do bacalhau configurava-se de facto extremamente dura. Não eram raros os encalhes, incêndios e naufrágios, fora acidentes pessoais a bordo dos lugres e arrastões ou dos pequenos dóris que cada um transportava. Apenas a título de exemplo, poderemos recordar o incêndio com afundamento do “Júlia IV”, da praça da Figueira da Foz, já com 3000 quintais de pescado a bordo, para uma capacidade de 4300, neste caso sem perda de vidas humanas ou o arrastão “Águas Santas” que encalhou mas acabou por safar-se pelos próprios meios, embora com algumas avarias. Os primeiros barcos da campanha de 1949 regressaram no início de Setembro: o “João Costa”, da praça da Figueira da Foz, e o “Rio Lima”, da de Viana do Castelo. O “Coimbra”, de Leixões, arribou no final do mês e os restantes, mais ou menos por estes dias. Mas não o de João Juff…

A 25 de Agosto, o “Diário ide Lisboa” noticiava: “Naufragou na Terra Nova o lugre ‘Navegante II’ mas a tripulação está toda salva”. E de novo a cor da pele de João Juff alcançava honras de nota: “O barco era comandado pelo capitão Juff Tavares Ramos (o único capitão negro da frota de pesca portuguesa), tendo como imediato João Esteves Naia, ambos de Ílhavo, um motorista, um ajudante e mais 32 tripulantes e pescadores”. Do mal o menos, salvou-se toda a tripulação, recolhida por outros barcos da frota, para além de que carga, pescado e haveres dos tripulantes estavam no seguro. O mesmo jornal, no dia seguinte, dava mais pormenores. O “Maria Frederico” e o “Cova da Iria” deram o apoio necessário. Parte da tripulação regressou a Portugal neste e a restante no navio de apoio ou navio-hospital “Gil Eanes”.

Quanto ao nosso capitão, nunca mais o foi… Faria ainda as campanhas de 1950, 1951 e 1952 no “Maria Frederico” (que naufragou após incêndio a 12 de Julho de 1952 em Virgin Rocks, Terra Nova) e as de 1954 e 1955 no “Dom Denis” (que teria idêntico fim bastante mais tarde, em 26 de Agosto de 1966), todas como imediato, cargo honroso mas certamente injusto para um sábio lobo do mar como ele, detentor de enorme experiência. Em 1955, última vez que ouvimos falar deste são-vicentino, teria uns 64 anos de uma vida dura mas aventurosa.

 

Alguns dos navios em que andou João Juff:

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“Delães”

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“Novos Mares”
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“Senhora da Saúde”
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“Maria Frederico”
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“Dom Denis”
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Texto de Joaquim Saial, in “Revista Bordo Livre”, nº 154

Ficha de João Juff gentilmente cedida pelo MMI.

Ílhavo, 7 de Março de 2024.

AML

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