Capitão
António dos Santos
À procura de
impossíveis, lá vou pedindo, telefonando, escrevendo, indo a casas onde nunca
tinha entrado e conversando com pessoas com quem nunca tinha conversado. E
assim fui falar, depois de já anunciada, com o Sr. Capitão António Tomé Santos.
De uma cajadada matava dois coelhos,
perdoe-se-me a expressão coloquial, pois ele, simpaticamente, me recebeu e me cedeu
alguns dados, dele e, sobretudo, neste caso, do Pai.
Homens arrojados,
valentes, corajosos, estes! Verdadeiros heróis!!! Não é que nunca me tinha
apercebido que o Sr. Capitão António dos Santos tinha naufragado três vezes,
duas delas, seguidas – no Normandie
(1941), no Maria da Glória (1942) e
no Leopoldina (1947)? Demais para um homem só!... Veleiros algo anacrónicos, de
madeira, já antigos, envelhecidos, conduziam a situações destas.
Tive acesso a uma
entrevista que o Capitão tinha dado ao jornal Comércio do Porto, a 7 de Novembro de 1934. Já vai distante, mas António dos Santos, à data, já contava
uma boa dezena de viagens. Li-a com interesse, achei-a curiosa, enaltecedora
dos seus homens, sobretudo, dos de Ílhavo, enternecedora e, espantosamente bem-humorada.
(…) No cais de
Massarelos, tendo estado à descarga, o Santa
Regina, comandado pelo capitão António dos
Santos, oficial sabedor, enérgico, decidido, arcaboiço de lutador dos mares,
homem experimentado nas lides da pesca do bacalhau, é na amurada de bombordo do
seu navio, que o capitão Santos descreve, com a maior simplicidade, em
conversa, a sua viagem deste ano à pesca do fiel amigo (…).
– Têm horas certas de trabalho, os
homens?
– Têm, mas, quando é preciso
aproveitar a maré, aproveita-se. É para benefício de todos…
– E demais, como é sempre dia… na
Gronelândia (…).
Uma faina de mil diabos, esta vida!
Ninguém imagina os trabalhos que a gente passa, quando comem, regaladamente,
uma posta de bacalhau assado ou um prato de bacalhau à Gomes de Sá…
– As montanhas de gelo são lá
frequentes, capitão?
– São, sim, senhor. Os icebergues, frequentes
e perigosos (…). Vê acolá aquela racha? – e aponta uma enorme fenda aberta no
cobre do casco. Aquilo foi, só, de roçar por um campo de gelo. Uma manobra
demorada demais para o evitar.
– E como procurar evitar esse
perigo?
– É conforme. Em último recurso,
entregamo-nos à Providência – concluiu o capitão – que desta vez, como de
tantas outras, foi a nossa boa protectora
– É certo os esquimós visitarem os
vossos navios?
– Eu não os vi, pois pesquei a 64
graus. Mas, aos que fundeiam mais para o Norte, a 68 graus, têm aparecido, a
trocar peles de animais por aguardente. O meu colega do Viajante 2º, que pescou pelas alturas da ilha de Disko, teve este
ano, a bordo, a visita de seis mulheres esquimós.
E, num olhar malicioso, num desabafo
de inveja, o capitão rematou:
– Que rico dia de pesca! Uma
marésada assim, não a apanha cá o velho…
– É toda de Ílhavo, a tripulação do Santa Regina?
– Não. Trago também homens da
Figueira, da Afurada e da Póvoa…
Verdadeiros heróis! – exclamou,
entusiasmado e orgulhoso, o capitão. E, depois com desalento, concluiu:
– Heroísmo ainda tão desconhecido e
mal avaliado, quando o Mar lhes não abre a sepultura, espera-os uma velhice
cheia de necessidades e misérias…
– E nos dias bonançosos e noites
serenas, que fazem os seus marinheiros?
O capitão não responde. Fica
pensativo, olhos fitos para além da barra. Mas, compreendendo-lhe o seu pensar,
ouvimo-lo dizer:
– Nas noites luarentas almas
resignadas dedilham a guitarra, a recordar a sua terrinha tão longe adormecida,
tantas milhas distante dos seus olhos saudosos… Nas horas vagas de brisa
fagueira, ou calmaria podre, dão largas ao seu instinto artístico. E à revessa
do castelo da proa, pegam num madeiro, num canivete, modelam um casco,
aparelham-no num requinte de gosto e apuro, sem a mínima falta dum pormenor e
das suas mãos, cortadas da linha da zagaia, gretadas da salga e dos ventos
glaciais, saem essas embarcações miniaturas, verdadeiras maravilhas de arte,
que são o pasmo e encanto de quem visita a sala marítima do Museu de Ílhavo.
Estava terminada a visita. Que os
trabalhos da descarga exigiam a presença do capitão. E, já na prancha do cais
ainda lhe ouvimos dizer, com aquela franqueza rude, característica da gente do
mar:
– Apareça mais vezes. Os amigos são
sempre bem-vindos.
Um pouco longa para intróito, mas, mesmo assim, foi decepada, quando achado
conveniente.
O
Sr. Capitão António dos Santos nasceu em Ílhavo em 6 de Janeiro de 1897. Filho de Tomé dos Santos e de
Josefa da Silva, casou com a Senhora D. Ermínia Rocha, de quem teve os filhos –
Maria Emília Rocha Santos e António Tomé Rocha Santos.
Possuía
a cédula marítima 8399 passada pela Capitania do Porto de Aveiro, sem data.
Teria ido cedo para o mar como muitos outros dos seus conterrâneos, pois
esse mar, esse mar danado, corria-lhe nas veias.
Consultados
os primeiros jornais, em 1928, foi
piloto do lugre Vega, que era o Altair e
que viria a ser o lugre Vaz, comandado pelo Capitão José
Cândido Vaz.
Nas
campanhas de 1929 e 30, foi capitão do lugre Ilhavense 2º.
Nos primeiros arquivos marítimos credíveis, coincidentes com os dados desta
entrevista, surge o Sr. Capitão António dos Santos, no
comando do lugre-escuna Santa Regina, desde 1934 a 1937, inclusive, da praça do Porto. Em 1936 e 37, foi seu
piloto, o também ilhavense João Maria da Madalena. Foi o Capitão Santos que
levou pela primeira vez, ao mar, o famoso Zé da Pardala, neste lugre-escuna, possivelmente na campanha
de 1935. Vide Memórias (1927-1983),
de José da Silva Cruz. Edição de Autor, 1986, p. 15 a 24.
Nas
safras de 1938 a 1941, continuou capitão, mas, agora do lugre-patacho, de madeira, Normandie.
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O lugre-patacho
Normandie
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Este foi o navio francês Normandie III, construído em Shelburne, Canadá, adquirido pela Empresa de Pesca de Portugal, Lda., desta vila, em hasta pública, que iniciou a sua actividade em 1935. O ano de 1941 teria sido fatídico para o navio, pois, no dia 30 de Maio, caíra sobre os bancos da Terra Nova, um forte temporal, do qual resultou ter sido varrido ao mar, de bordo do Normandie, o pescador António Francisco Coentrão de 28 anos, natural de Caxinas, Vila do Conde.
Este foi o navio francês Normandie III, construído em Shelburne, Canadá, adquirido pela Empresa de Pesca de Portugal, Lda., desta vila, em hasta pública, que iniciou a sua actividade em 1935. O ano de 1941 teria sido fatídico para o navio, pois, no dia 30 de Maio, caíra sobre os bancos da Terra Nova, um forte temporal, do qual resultou ter sido varrido ao mar, de bordo do Normandie, o pescador António Francisco Coentrão de 28 anos, natural de Caxinas, Vila do Conde.
Segundo notícia de O Ilhavense de
20 de Setembro de 1941, no dia 7, naufragou, com água aberta, como
já referimos, propriedade da Empresa de Pesca de Portugal, Lda., de que era
gerente o Sr. Francisco António de Abreu. Comandado pelo experimentado homem do
mar, António dos Santos e pilotado por Manuel Machado dos Santos (Praia),
estava com o carregamento completo. A tripulação foi toda salva e recolhida a
bordo do lugre com motor, de madeira, Ana
I que a terá trazido a Aveiro.
Foram também seus pilotos, António dos Santos Labrincha (38), Belarmino Ascenção de Oliveira (39) e José Estêvão da Maia (40).
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Não terão sido excessivas, para uma só pessoa, tantas tormentas,
inimagináveis?
No ano seguinte, exactamente o de 1942,
em tempos de guerra, aceitou pilotar o lugre
Maria da Glória, um pouco mais
recente, liderado pelo capitão Sílvio Ramalheira. O Maria da Glória, ex-Portugália, construído na Gafanha da Nazaré em 1921, tomou este
nome, na campanha de 1927, então propriedade da Empresa União de Aveiro Lda.
Afundado em 5 de Junho de 1942 por um
submarino alemão, em viagem para os Grandes Bancos, constituiu uma das maiores
tragédias que assolaram a nossa vila maruja. Dentre os 44 tripulantes, apenas
se salvaram 8, em condições sobre-humanas, em dois botes carentes de tudo. E António dos Santos foi um dos que se salvou.
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O lugre Maria da Glória
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E agora? É caso para perguntar… A fé é que nos salva – pensa o povo e assim pensara o ex-piloto. O susto fora tão grande que, na sua aflição, António dos Santos prometera ir ao Santuário da Nossa Senhora de Fátima, todos os anos, a pé, o que vinha cumprindo desde aquele terrível acontecimento, já lá iam dez anos.
E agora? É caso para perguntar… A fé é que nos salva – pensa o povo e assim pensara o ex-piloto. O susto fora tão grande que, na sua aflição, António dos Santos prometera ir ao Santuário da Nossa Senhora de Fátima, todos os anos, a pé, o que vinha cumprindo desde aquele terrível acontecimento, já lá iam dez anos.
Mas não esmorecera e o apelo do mar e o sustento da família chamavam-no com
fervor.
No ano seguinte, na campanha de 1943,
tornara-se capitão do lugre de
madeira Leopoldina, pertencente à
praça da Figueira da Foz. O Leopoldina
tinha sido construído em Caminha por A. D. dos Santos Borda, em 1902, e fora propriedade de Manuel Moreira Rato & Filhos,
de Lisboa, e de um grupo de sócios figueirenses. Em 1906, tornou-se propriedade
da Lusitânia – Companhia Portuguesa de Pesca, então formada.
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O lugre Leopoldina
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Entre as campanhas de 1943 e 1947 (inclusive), comandara-o o Sr. Capitão António dos Santos, até lhe sentir o peso e o perigo do seu afundamento, com água aberta, no Virgin Rocks, em 1947. Em 1943, pilotara-o Bernardino José G. Barbosa e em 1944, o ilhavense Benjamim dos Santos Marcela, Pardal.
Entre as campanhas de 1943 e 1947 (inclusive), comandara-o o Sr. Capitão António dos Santos, até lhe sentir o peso e o perigo do seu afundamento, com água aberta, no Virgin Rocks, em 1947. Em 1943, pilotara-o Bernardino José G. Barbosa e em 1944, o ilhavense Benjamim dos Santos Marcela, Pardal.
Na campanha de 1948,
transferira-se para capitão do lugre com
motor Trombetas, da mesma empresa
armadora.
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Ainda com forças para enfrentar o mar, António dos Santos embarcou de
capitão, na safra de 1949, no lugre de madeira Paços de Brandão, da praça do Porto. Construído na Terra Nova, fora
reconstruído em 1923, em Vila Nova de Gaia para a firma Veloso, Pinheiro &
Cª., Lda. Acabou por ter o seu fim, com água aberta, em 1951, já sob o comando
de João André Alão. Pilotara-o nessa viagem, o ílhavo António Nunes Júnior, o Rão.
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O lugre Paços de Brandão
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Mais do que com razões para sentir na
pele a dureza da vida de mar, o Sr. Capitão António dos Santos, muito
estimado por todos os seus colegas, depois de três anos em terra, de
recobro, partiu cedo e repentinamente, com 56 anos, em 19 de Outubro de 1953, tendo estado a bandeira do
Sindicato dos Oficiais, a meia-haste, durante três
dias.
A biografia marítima deste nosso Homem do Mar, quase que se poderia
intitular, na senda dos naufrágios… três foram eles, e dois completamente
seguidos.
Imagens
– Arquivo
pessoal e gentil cedência do filho
Ílhavo, 20 de Novembro de 2016
Ana Maria Lopes
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