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Esta
história de um Homem do Mar, ou melhor de um Jovem do Mar, tardou a aparecer.
Porquê? Como? Quando?
Procuram-se,
mas só vêm ter connosco, quando menos pensamos. Depois, cruzam-se os dados do “puzzle”
e o jogo bate certo.
Aquando
da história de José Duarte Oliveira, que perdeu a vida, em pleno oceano, na
ânsia de carregar mais o bote, enquanto pescador do lugre-motor “D. Diniz”, na viagem de 1952, tendo deixado a
sua mulher, eterna viúva, com três filhas para criar, pelo menos a família,
emocionou-se com esta narrativa, pressagiada num belo e profundo sonho
premonitório.
Num
comentário ao sucedido, então, na dita Faina Maior, João Cândido Agra, através
do FB, informou-me que um seu tio/padrinho de quem tinha a cédula marítima,
também tinha perdido a vida na pesca do bacalhau, num dóri, enquanto pescador
do “Milena”, em 1955. O caso chocou-me, interessou-me e repliquei que
haveríamos de falar. Mas, outras tarefas se impuseram.
Eis
senão quando, há uns três anos, no Museu Marítimo de Ílhavo (o lugar certo),
enquanto apreciava os modelos de embarcações tradicionais apresentados a concurso,
dei de caras com o tal João Cândido Agra, ao apreciarmos, ambos, a mesma peça.
Deu-se a conhecer, pois já falara, virtualmente, comigo, e contou-me que tinha
construído aquele modelo de dóri, patinado pelo tempo, e corroído por alguma
ferrugem dos anos, em memória do seu tio/padrinho, que desaparecera, no dóri,
enquanto pescador verde (que pesca pela primeira vez), do lugre “Milena”, em 1955. Alto! O assunto
interessou-me, trocámos umas palavras e pedi-lhe que procurasse documentação que
tivesse dele, para acertarmos um encontro mais esclarecedor.
Mas,
a conversa ficou por ali.
Como
se chamava? – perguntei eu. Não tinha a certeza. João de Jesus?
Seria
melhor confirmar.
Ao
entardecer, a curiosidade despertou-me e toca de tentar encontrar o nome, entre
os maiores da Faina Maior. Mas só com João de Jesus, não chegava lá e os dados
não batiam certo. Experimentei teclar também Agra e surge-me um nome que
preenchia os requisitos – João de Jesus da Rocha Agra, nascido em Ílhavo, em 20
de Agosto de 1934. Tentei situar-me no tempo, na tragédia e debrucei-me numa
foto que já tinha dele – moço, jovem, aprumado, bonitão, de olhos grandes,
escuros, vivaços, cheios de sonhos, que se afundaram, eternamente nas águas do
oceano. Pareceu-me.
Quem
teria sido o capitão do “Milena”, em meados da década de 50? Mais
propriamente, em 1956…
Pensemos
nas situações que originavam estes desaparecimentos – o demasiado afastamento
do navio, neste caso de pescador-verde, a pouca experiência, uma brisa levantada
repentinamente que enraivecera o mar ou um forte nevoeiro, que, rapidamente,
toldara o horizonte. Qualquer uma destas razões poderia ter sido o motivo do
desaparecimento do jovem João de Jesus Agra. Ou, então, nenhuma destas.
Depois do encontro com o sobrinho e do que me contou, algo mais compôs o cenário, mas, o resultado era aquele e só ele – afundara-se no oceano, enquanto pescava.
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Teria, porventura, pais, que terão sofrido uma dor profunda e eterna, não tinha ainda família constituída, mas, sempre uma mulher, de permeio. Deixara, uma jovem namorada, na sua terra natal – Ílhavo – a sua prometida, com quem tencionava casar, no Dezembro seguinte, após a viagem. Dor sem fim, virara viúva antes do tempo.
Alto,
forte, espadaúdo, um castelo de um jovem, engolido pelas águas – assim era o
João Agra, nascido em Ílhavo, em 29 de Agosto de 1934, filho de Manuel da Rocha
Agra e de Leonor de Jesus. Com a cédula passada pela Capitania do Porto de
Aveiro, em 21 de Janeiro de 1951, tinha a formação da Escola de Pesca e fora
tripulante do “Milena”
de 1951 a 1956, como como moço nos dois primeiros anos, passando a verde,
a maduro e a 2ª linha, à data do acidente
Nada
como tentar escalpelizar e procurar pormenores… No Ciemar, porventura,
encontraria a resposta, se a sorte me rondasse. Pedi “O Ilhavense” e perguntei se havia o Diário Náutico do “Milena”, da campanha de 1956 (era essa a
data certa). E havia. Folheei-o emocionalmente, à espera de algo que me
esclarecesse completamente. De folha em folha, cheguei a 6 de Maio e aí, nas observações, surge-me a nota esclarecedora, que
procurava – Bom tempo. Chamou-se às 16
15. Pelas 19.30, como todos os botes estivessem dentro, deu-se por falta do
número seis, João de Jesus da Rocha Agra, que se afundou com a embarcação que
tripulava. Mais uma página, e abanada pela emoção, deparei com o:
Termo
de Óbito
Aos sete
dias do mês de Maio de mil novecentos e cincoenta e seis, o lugre-motor Milena, propriedade da Indústria de
Aveirense de Pesca, Limitada, na posição estimada quarenta e seis graus e
quatro minutos Norte e quarenta e nove graus cincoenta e nove minutos Oeste de
Greenwich, arriou este navio a sua campanha para o exercício da faina da pesca
às treze horas e trinta minutos com vento fraco e bonançoso de Oeste-Noroeste,
mar encrespado e boa visibilidade, condições estas consideradas como boas e
normais para trabalhar, tendo todos os navios arriado e estando à vista, com os
botes na água, os bacalhoeiros «Maria das Flores» e «S. Jorge». Pelas dezasseis
horas, o Capitão do navio suspendeu e navegou trinta minutos para Les-Sueste,
ficando assim todos botes a barlavento.
Pelas dezasseis horas e quinse minutos,
içou a bandeira chamando para bordo a sua companha. Os botes começaram a chegar
a bordo pelas desassete horas e quinse minutos.
Às dezanove horas e trinta minutos, estando
já todos os pescadores dentro, deu-se pela falta do número seis, João de Jesus
da Rocha Agra, natural da freguesia e concelho de Ílhavo, nascido a vinte e
nove de Agosto de mil novecentos e trinta e quatro, filho de Manuel da Rocha
Agra e de Leonor de Jesus e inscrito marítimo na Capitania de Aveiro, sob o
número vinte e seis mil seiscentos e trinta. Segundo informações do pescador
José Borda d’Água Hilário, o tripulante em questão encontrava-se ao Norte do
navio alando o seu aparelho.
Imediatamente o capitão suspendeu e se dirigiu
para rumo indicado. Depois de várias pesquisas até ao anoitecer viemos para
sotavento da posição indicada onde permanecemos fundeados até ao alvorecer.
Pelas cinco horas do dia oito suspendeu e
navegou durante quatro horas e meia a vários rumos contornando a posição em que
se encontrava aquele pescador.
Depois de todas estas tentativas e como
não se encontrassem quaisquer vestígios, reuniu o Capitão os seus oficiais e
principais da equipagem, concordando todos que o desditoso pescador se afundou
juntamente com o bote que tripulava quando se encontrava a alar o aparelho
tanto mais que as botas de cabedal e o fato de oleado que usava quando pescava
lhe dificultavam bastante os movimentos.
A atestar esta afirmação tomamos em linha
de conta, em virtude de se encontrarem perto o lugre «Maria das Flores» e
navio-motor «São Jorge», pescando também, o facto de por nenhum deles ter sido
recolhido, tanto mais que as condições de visibilidade eram esplêndidas. Como
aliás o eram inicialmente.
Em fé do que se lavrou o presente termo de
óbito, que vai ser assinado pelo capitão e principais da equipagem.
Joaquim Manuel Marques Bela – capitão
Silvério Conde Teixeira – imediato
Flávio da Silva Pereira – piloto
Francisco Malaquias Matias Lau – 1º
motorista
Albino Domingues Gafanha – 1ª linha
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Folheando
o diário, no sentido de saber como se passou o dia seguinte, a bordo, deparei
com este registo, no dia 8 – Bom tempo,
mar e horizonte. Não se arriou em sinal de luto.
No
jornal O Ilhavense de 20 de Maio de
1956, a notícia VARRIDO ao MAR
dá-nos conta que de bordo do lugre
«Milena» foi varrido ao mar o pescador ilhavense João de Jesus Rocha Agra,
solteiro, de Cimo do de Vila.
Consultado o Jornal do Pescador desse ano, não encontrei qualquer referência. No ano de 1953, no mês de Janeiro, p. 16, nas Notas de elogio dos capitães, relativas ao aproveitamento dos alunos da Escola Profissional de Pesca, embarcados na campanha de 1952, o capitão do Milena, Carlos Augusto de Castro, sobre o João de Jesus da Rocha Agra, refere que cumpriu a contento todas as suas obrigações.
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E por aqui fica o relato de acontecimento tão triste e da preocupação da tripulação em localizar e salvar o desditoso jovem, cuja sepultura foram as profundezas geladas do Oceano.
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Ílhavo,
21 de Maio de 2021
Ana Maria Lopes
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